Demarcação.
A defesa do aborto como um direito incondicional exige distinguir, por algum critério, o feto que ainda não conta do feto que já tem direitos. Como os atributos que nos tornam pessoas – personalidade, auto-consciência, capacidade de raciocínio, memória biográfica e afins – só surgem gradualmente após o parto acaba por não haver critérios adequados que sirvam o propósito de colocar a fronteira à volta das dez semanas. Mas este é o problema menor. O erro principal nisto é avaliar o acto ao contrário, derivando direitos antes de deveres.
Dizer que eu tenho o direito de que não me matem em virtude de atributos como auto-consciência e afins é uma simplificação conveniente mas fundamentalmente errada. Se eu estiver fechado numa sala com um leão esfomeado eu não tenho qualquer direito de não ser morto porque falta ao leão o necessário para que seja eticamente imputável e tenha um dever moral de não me matar. Terei o direito de não ser morto se estiver num quarto com uma pessoa armada que, pelos seus atributos, já tem o dever de não me dar tiros. É desse dever que surge o meu direito de não ser morto. Ou seja, o direito à vida não advém automaticamente dos atributos do objecto em si, até porque valores não brotam espontaneamente de meros factos. O direito à vida, ou qualquer outro, deriva da avaliação ética daquele acto cometido por aquele agente sobre aquele sujeito naquelas condições. É por aí que temos de começar.
Para isso temos de considerar factores como as limitações cognitivas do agente, a sua liberdade para escolher entre as várias opções e a relação causal entre a sua escolha e os efeitos que dela resultarem. Vou assumir que os primeiros são constantes e focar apenas os efeitos e a sua relação causal com a decisão, dando alguns exemplos concretos. Vou chamar feto-antes ao feto que ainda não tem os atributos considerados necessários para ter direitos e feto-depois ao que já os tem, assumindo apenas que esses atributos têm algo que ver com a mente mas sem me preocupar com quais sejam em detalhe. O primeiro exemplo será o de retirar ou não os olhos a um feto-antes. O que está em causa são décadas futuras de cegueira ou visão, conforme a opção, e essa grande diferença será claramente efeito da decisão de retirar ou não os olhos. Por isso, avaliando o acto, concluímos que é eticamente inadmissível cegar um feto em qualquer estado de desenvolvimento, seja antes ou depois da linha de demarcação. O método inverso, de começar pelos atributos e direitos do feto, chega à mesma conclusão mas revela já um problema. Apesar do feto-antes não ter quaisquer direitos, se o cegarmos então o feto-depois surgirá cego. Como esse tem o direito de não ser cego não é admissível cegar o primeiro, pois tal afectaria o segundo. O estranho aqui é defender que não é legítimo cegar nenhum dos fetos ao mesmo tempo que se defende que só um deles tem o direito de não ser cego.
No caso do aborto as conclusões divergem. Se começarmos por avaliar o acto concluímos o mesmo que no caso anterior. Matar o feto-antes é inadmissível porque toda aquela vida que seria vivida se não o matássemos não será vivida se o matarmos, e isto claramente por causa da opção de o matar. Mas se começarmos pela atribuição de direitos podemos considerar que, ao contrário da cegueira, a morte só conta na altura em que o feto-antes é morto e como nunca surge sequer um feto com direitos então não há problema. Ou seja, apesar do feto-antes não poder ser cego porque o feto-depois tem o direito de não ser cego, o feto-antes pode ser morto mesmo que o feto-depois tenha o direito de não ser morto porque nunca chega a existir um feto com os atributos necessários para ter direitos.
Consideremos então a possibilidade de retirar ao feto-antes tudo aquilo que, nessa abordagem dos direitos, iria conceder o direito à vida. Seja auto-consciência, raciocínio, memória, o que for. Amputamos uma parte do cérebro em formação e garantimos que esse feto irá crescer fisicamente normal mas num estado vegetativo permanente, desprovido de qualquer atributo de pessoa. Será até uma fonte conveniente de órgãos para doação, se algum parente próximo precisar. Avaliando o acto, a conclusão é a mesma. Há uma diferença enorme entre as duas alternativas. Por um lado, uma vida plena e, por outro, uma vida em estado de vegetal. E essa diferença tem por causa principal a nossa decisão de obliterar parte do cérebro do feto. Por isso, é inadmissível fazer isto a qualquer feto. Mas se começarmos pelos atributos e direitos, concluímos que, tal como no caso do aborto, como nunca chega a surgir nada que possa ter direitos não se viola direitos de ninguém e o acto será admissível. Mesmo sabendo que aquele corpo de vinte anos está ali a babar-se virado para a parede em vez de no cinema com a namorada só porque decidimos amputar-lhe parte do cérebro no início do seu desenvolvimento. Eu proponho que isto está errado. Não proponho que esteja errado por causa deste exemplo, que serve só para ilustrar o problema. Proponho que está errado porque os direitos são reflexo de deveres que resultam da avaliação ética dos actos e, por isso, é um erro tentar avaliar os actos começando por atribuir ou negar direitos*. Os exemplos servem apenas para ilustrar o disparate que daí resulta.
Resta o problema dos espermatozóides. Muita gente acha necessário fundamentar a avaliação nos atributos do objecto da acção para evitar ter de proteger os gâmetas, que também têm o potencial de resultar numa vida consciente e com direitos. Além disto ser uma aldrabice, porque se vamos fundamentar a ética conforme o que é mais conveniente então mais vale deitarmos fora a ética e fazermos o que nos dá na gana, é desnecessário porque um factor importante para avaliar um acto é a relação causal entre a escolha e os seus efeitos. Já escrevi sobre isso antes** mas voltarei ao problema num próximo post.
*Um erro que não surge apenas nestes exemplos mas também, historicamente, em todos os casos de escravatura, racismo, genocídios, discriminação e afins, onde se começou igualmente por decidir que um certo grupo não tinha direitos porque lhe faltava certos atributos em vez de pensar nos actos em si e na sua legitimidade. Passa-se o mesmo agora com os direitos dos animais também.
**Várias vezes, mas aqui vai uma relativamente recente: Dawkins, a filosofia, e o aborto.