domingo, setembro 28, 2014

Cobrar direitos.

A GDA-Direitos dos Artistas é mais uma de várias organizações de gestão colectiva de taxas que se tem de pagar quando se toca num concerto, se tem música ambiente, se organiza festas ou até se compra folhas de papel*. É como a SPA, Passmúsica, AGECOP e afins. Em particular, a GDA «tem como missão a gestão coletiva dos Direitos Conexos ao Direito de Autor dos Artistas, Intérpretes ou Executantes, onde se incluem atores, bailarinos e músicos bem como os seus sucessores.»(1) Isto porque, ao contrário dos outros profissionais, o artista que seja contratado e pago para fazer um trabalho tem o “direito” de continuar a receber dinheiro durante mais setenta anos. Não directamente, mas sempre por intermédio de organizações privadas de “gestão colectiva” desses direitos e que, naturalmente, têm as suas despesas. Por exemplo, na página 27 do Relatório e Contas de 2013 da SPA podemos ver que esta organização recebeu 36 milhões de euros e gastou sete milhões em “Pagamentos ao pessoal” (2). Apesar da alegada eficiência do sector privado, quando se entrega milhões de euros de taxas e impostos à gestão privada, muito do dinheiro acaba nos bolsos dos “gestores”. Não admira, por isso, que estas organizações estejam muito satisfeitas com a alegada justiça de nos cobrar mais quinze milhões de euros de taxa sobre telemóveis, discos rígidos e cartões de memória.

Hoje à noite, na sede do Bloco de Esquerda, a Paula Simões, da Associação Ensino Livre, vai debater esta taxa com o Pedro Wallenstein, presidente da GDA (3). Como não devo poder ir, deixo já aqui o meu apoio à Paula e alguns comentários às tretas da GDA. E quem não puder assistir ao vivo pode assistir à transmissão em directo no site esquerda.net.

A justificação para esta nova taxa é tratar-se de «uma compensação aos artistas, autores e produtores pelas cópias que os consumidores de obras protegidas pelo direito de autor e direitos conexos, todos nós, realizamos na e para a nossa esfera privada.»(4) O primeiro ponto que queria salientar é o uso falacioso do termo “consumidores”. É falacioso porque este termo tem uma conotação negativa e, neste caso, enganadora. Um consumidor é alguém que usufrui de algo destruindo ou degradando o seu valor. É o que se faz quando se consome cerveja, gasolina ou electricidade. Quem assiste a uma peça de teatro, lê um livro ou ouve uma música não está a destruir nada nem a degradar o seu valor. Pelo contrário. Quanto mais audiência uma obra de arte tiver maior é o seu valor cultural. É importante contrariar este engodo do artista produtor e do público consumidor porque o valor da cultura advém da participação colectiva de todos. Do que escreve e dos milhões que lêem; do que compõe e dos milhões que ouvem; do que representa e dos milhões que assistem. Uma obra sem público não tem valor cultural.

Outro problema é o da compensação. O Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) estipula que a cópia privada só é legal se não «atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.» (artigo 75º, ponto 4). Mas se a cópia privada não atingir a exploração normal da obra não faz sentido exigir uma compensação por um alegado prejuízo nessa exploração. Por outro lado, se houver prejuízo então a cópia não será legal. Como a redacção da lei já exclui a possibilidade de danos pela cópia privada legal, não faz sentido cobrar uma taxa compensatória por este direito.

Outro problema está na noção da cópia privada como uma excepção ao alegado direito que esta gente toda tem de nos restringir o uso da nossa propriedade privada: «É entendimento generalizado que estas cópias se realizam sem que seja possível ou mesmo desejável, para proteger a nossa privacidade e permitir o melhor usufruto da obra, obter a necessária autorização específica por parte dos criadores da obra cultural, Artistas, Autores e Produtores.» Mas o artigo 217º do CDADC estipula ser ilegal neutralizar «qualquer medida eficaz de carácter tecnológico» que vise restringir a cópia ou outra utilização da obra. Como isto inclui «toda a técnica, dispositivo ou componente que, no decurso do seu funcionamento normal, se destinem a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas, que não sejam autorizados pelo titular dos direitos de propriedade intelectual», este artigo elimina o direito legal à cópia privada não autorizada no domínio digital. Ao autor que não queira autorizar a cópia basta incluir na representação digital da sua obra qualquer elemento tecnológico que restrinja o seu uso e reprodução. A taxa sobre o equipamento digital visa cobrar por um direito que, na prática, não existe no domínio digital.

Há muitos outros problemas fundamentais na linha de inferências que pretende justificar esta taxa, desde a gestão destas taxas por organizações privadas (5) até ao próprio fundamento deste suposto direito de mandar no que é dos outros. Mas, para este debate acerca da taxa sobre suportes digitais para compensar os autores pela excepção aos seus direitos, há dois pontos importantes que não devem ser polémicos. Primeiro, a lei que já temos só admite a cópia privada legal quando esta não atinge a exploração comercial da obra. Por isso, não pode haver prejuízo pela cópia legal. E, em segundo lugar, a lei dá ao gestor dos direitos o poder de impedir a cópia legal, no domínio digital, pelo recurso às tais medidas tecnológicas que, hoje em dia, são triviais de incluir até em CD. São ineficazes para impedir a cópia mas suficientes para que a cópia se torne ilegal e, por isso, fora do âmbito de qualquer taxa compensatória.

PS: A Paula Simões tem, no seu blog, uma análise mais profunda deste problema: Exercício: Qual é o prejuízo decorrente da cópia privada?

*Errata: O papel foi só até 2004. A Lei nº 50 de 2004 passou a excluir o papel dos suportes virgens a taxar.

1- GDA, O que é a GDA?
2- SPA, Relatório e Contas
3- Esquerda.net, Bloco promove debate sobre cópia privada
4- GDA, Cópia Privada, finalmente a justiça de uma lei que favoreça a Cultura e não as margens de lucro da indústria?
5- Ver, por exemplo, este artigo do Rick Falkvinge: COPYRIGHT COLLECTING SOCIETIES A MORASS OF BAD INCENTIVES

Treta da semana (passada): a treta fracturada.

Alexandre Homem de Cristo escreveu que «a esquerda fracturante» sofreu uma «importante derrota política» porque tem afirmado «que o aquecimento global é uma evidência dos nossos tempos […] E com uma causa simples de identificar: a poluição causada pelo homem». Mas agora, segundo Cristo, está demonstrado que «O aquecimento global estagnou»(1), daí a alegada derrota. Isto no início do texto. No fim, Cristo admite que a sua premissa é falsa ao afirmar que «a questão-chave nunca foi reconhecer que há aquecimento global ou que a acção humana pode contribuir para o efeito estufa (isso está efectivamente demonstrado)». No entanto, para Cristo a falsidade assumida da premissa nada interfere na validade da conclusão.

Não se querendo ficar pela confusão lógica de suportar a sua conclusão negando a premissa da qual esta depende, Cristo dedica também boa parte do seu texto à confusão conceptual entre aquecimento global e alterações climáticas. Afirma que «as evidências [para o aquecimento global] deixaram de ser evidentes» porque «um artigo publicado na reputada revista “Science” […] mostra como é complexo o equilíbrio de factores que têm influência sobre o clima». O aquecimento global é o aumento da temperatura média da Terra. A Terra recebe energia do Sol e irradia energia para o espaço. Conforme aumentamos a concentração de CO2 na atmosfera diminuímos a quantidade de energia que a Terra irradia àquela temperatura. Como passa a receber mais energia do que perde, a temperatura média aumenta até atingir um novo equilíbrio entre a energia que perde e a que recebe do Sol. As alterações climáticas são os efeitos que este aumento de temperatura tem no clima. Este é um problema muito diferente, e muito mais complexo, porque o clima de cada região depende de muitos factores, entre os quais a distribuição das temperaturas, que não é uniforme. O artigo que Cristo menciona é sobre este problema e não tem nada que indique que «o aquecimento global estagnou no início deste século». Pelo contrário.

Consistente com o rigor da sua análise, Cristo refere o artigo apenas como «um artigo publicado na reputada revista “Science”». Ao leitor que queira verificar as suas alegações resta o Google e o contexto para encontrar o artigo (2). O que talvez não tenha sido acidental porque o artigo não suporta em nada a tese de Cristo. Segundo Cristo, o artigo afirma que «o aquecimento global estagnou no início deste século e, tudo indica, assim permanecerá até cerca de 2030». No entanto, o que o artigo afirma é que «Um escoadouro global de calor a profundidades intermédias dos oceanos está associado a diferentes regimes climáticos de aquecimento da superfície sob efeito antropogénico: A parte final do século XX viu um aquecimento global rápido porque mais calor permaneceu à superfície. No século XXI, o aquecimento da superfície abrandou conforme mais calor se deslocou para os oceanos profundos.» (3).

Ao contrário da confusão que Cristo faz, este artigo não indica que o aquecimento global abrandou. Algumas outras explicações propostas para o abrandamento do aquecimento da superfície incluem o abrandamento do aquecimento global. Por exemplo, aumento da irradiação pela redução da concentração de vapor de água na atmosfera ou o efeito de outros poluentes que reflectem parte da luz do Sol. Mas este artigo indica precisamente o contrário: que a diferença está apenas no aquecimento à superfície e não no aquecimento global. Enquanto que no final do Século XX a superfície dos oceanos aqueceu mais rapidamente, agora são as águas profundas que estão a aquecer, como demonstram as medições de temperatura a várias profundidades. Os autores propõem que esta transferência de calor se deve a correntes verticais geradas por variações na salinidade e que este fenómeno é cíclico, pelo que podemos esperar que, após um período em que aquecem as águas profundas dos oceanos, volte a aquecer novamente a superfície. Mas, globalmente, se este artigo estiver correcto, o aquecimento continua e não há razão para ficarmos mais descansados por o aquecimento actual ocorrer nas águas profundas. O nível dos oceanos continua a subir, porque um mecanismo importante é a expansão térmica da água (4); alterações na temperatura afectam as correntes oceânicas que, por sua vez, têm muita influência no clima; e o fundo dos oceanos contém quantidades muito grandes de gases de estufa, como o metano, sequestrados pela combinação de pressões altas e temperaturas baixas (5). O aquecimento dessa parte dos oceanos não é boa notícia.

É irónico que o argumento de Cristo para demonstrar a suposta aldrabice ideologicamente motivada da «esquerda fracturante» seja esta aldrabice confusa e auto contraditória que, fora de um quadro clínico, só se explica por uma forte influência ideológica. De outra forma, não se compreende porque é que ele haveria de suportar a sua tese num artigo que diz o contrário do que ele defende. O aquecimento global não arrefeceu e a complexidade dos efeitos deste aquecimento é mais uma boa razão para o tentarmos travar. E isto não é um problema só da “esquerda fracturante”. É um problema de todos que só a direita pateta tem dificuldade em perceber.

1- Observador, O aquecimento global arrefeceu a esquerda fracturante
2- Chen, Xianyao, and Ka-Kit Tung. "Varying planetary heat sink led to global-warming slowdown and acceleration." Science 345.6199 (2014): 897-903. (pdf disponível aqui)
3- « A vacillating global heat sink at intermediate ocean depths is associated with different climate regimes of surface warming under anthropogenic forcing: The latter part of the 20th century saw rapid global warming as more heat stayed near the surface. In the 21st century, surface warming slowed as more heat moved into deeper oceans.»
4- Wikipedia, Current sea level rise
5- Wikipedia, Methane clathrate

domingo, setembro 21, 2014

Três confusões.

Adivinhando-se um reavivar da contenda pelo copyright, a propósito da nova taxa, achei pertinente apontar três confusões nos conceitos que se invoca para justificar que todos devemos dinheiro aos autores por trabalho que não lhes encomendámos.

Se um cozinheiro profissional trabalha e não lhe pagam é claro que estão a violar os seus direitos e que isso tem de ser ilegal. O mesmo para qualquer outro profissional, seja cabeleireiro, professor, canalizador ou o que calhar. Por isso, se afirmam que a lei deve garantir que os músicos profissionais têm direito a uma remuneração, ninguém estranha. No entanto, neste caso, há um abuso do termo “profissional”. Quando pensamos num profissional pensamos em alguém que trabalha sob contrato, desempenhando uma tarefa que lhe prometeram remunerar ou vendendo algo a quem se comprometeu comprar. Por exemplo, se o cozinheiro tem um contrato com o restaurante ou o músico tem um contrato com a orquestra e não lhes pagam o prometido, então a lei deve intervir. Mas alguém que inventa receitas na esperança de as vender não é um cozinheiro profissional. E se, como é quase certo, os seus potenciais clientes preferirem partilhar as receitas gratuitamente entre si em vez de lhas comprar, não tem qualquer legitimidade para exigir pagamento porque ninguém lhe encomendou nada.

Há artistas e autores que trabalham como profissionais. Em jornais, orquestras e corpos de baile, por exemplo. E, com a tecnologia que temos, qualquer um pode trabalhar de forma profissional se acordar com o seu público a remuneração pelo trabalho que vai fazer. Também já há artistas a fazer isto pela Internet, até porque o princípio é o mesmo que vender bilhetes para um concerto. Tal como nas outras profissões, também na arte o trabalho profissional, no sentido rigoroso do termo, não carece de direitos especiais para garantir uma remuneração justa porque esta é acordada entre as partes à partida. O problema do copyright só persiste porque, por pressão dos distribuidores e pelas limitações tecnológicas de outrora, tornou-se tradição os autores trabalharem sem qualquer garantia de remuneração e só depois tentarem encontrar quem lhes dê alguma coisa. É uma abordagem legítima, mas fazer as coisas por essa ordem é característica de amadores e não de profissionais.

Mesmo admitindo que monopólios, taxas e restrições sobre a cópia só são necessários por falta do profissionalismo de garantir a remuneração antes de fazer o trabalho, há quem argumente que, ainda assim, um artista que produz algo que outros apreciem merece ser remunerado. Em muitos casos a alegação é duvidosa. Por exemplo, quando penso no que o Tozé Brito merece pelo que fez à música portuguesa, não é remuneração que me ocorre. Mas mesmo que o artista mereça ser remunerado é preciso distinguir dois sentidos de “merecer”. Num sentido, a coisa merecida é tão importante e justa que todos temos a obrigação de a garantir. Por exemplo, quando dizemos que as crianças merecem ter acesso à educação ou que um trabalhador merece receber o salário que lhe prometeram pelo trabalho que fez estamos a dizer que deve ser assim nem que seja pela força, cobrando impostos ou ameaçando procedimentos judiciais. Mas quando dizemos que os bombeiros merecem ganhar mais do que os futebolistas estamos a afirmar que seria justo mas sem defender que a lei o obrigue. Esta distinção é importante quando se invoca o mérito dos autores, que até o podem ter, para justificar legislação que esse mérito não justifica. Mérito por mérito, diria ser maior o do bombeiro que o do músico.

Finalmente, os “direitos do autor”. Isto pode referir um conjunto de privilégios que se atribui ao autor por ser diferente dos restantes cidadãos, uma noção que ninguém estranharia no século XVI, quando se inventou estas leis. Um exemplo extremo deste conceito é o (mítico) droit du seigneur, segundo o qual o nobre teria o direito de desvirginar as filhas dos plebeus. Mas o sentido mais adequado à sociedade moderna é o que usamos nos “direitos do trabalhador estudante” ou “direitos do eleitor”. Estas expressões não designam privilégios exclusivos dos membros de uma classe mas, pelo contrário, direitos concedidos a todos para que seja mais fácil desempenharem esse papel na sociedade. Por exemplo, o direito de faltar ao trabalho para fazer exames não é uma recompensa nem um privilégio. Serve para tornar mais fácil a quem trabalha continuar os estudos. Esta mudança de perspectiva inverte o que devem ser os “direitos do autor”. Em vez do direito, de uns poucos, de receberem dinheiro pelo que outros fazem ou proibirem a partilha de informação, devem ser direitos de todos para que seja mais fácil qualquer um ser autor. E isto dá o contrário do que temos. Em vez do monopólio sobre a obra o direito do autor devia ser o direito de acesso e partilha de informação, porque é disso que ele precisa para criar. Em vez do direito de proibir a criação de obras derivadas, o autor devia ter o direito de transformar livremente qualquer elemento da sua cultura. Quer por justiça quer para incentivar a criatividade, em vez de conceder privilégios a quem já criou devíamos conceder a todos os direitos que os ajudem a criar.

Prevejo que, nos próximos tempos, se fale muito dos direitos dos autores profissionais e de como merecem ser pagos pelo seu trabalho. Gostava que, sempre que isso acontecesse, se lembrassem destas três confusões. Qualquer profissional, no sentido rigoroso do termo, tem o direito à remuneração garantido por lei em virtude do contrato que celebrou pela venda do seu trabalho. Se não tem é amador. Muita gente merece muita coisa, mas só em casos excepcionais é que isso justifica coagir terceiros pela força da lei. E, finalmente, numa sociedade igualitária e digital, os direitos do autor não devem ser privilégios aristocráticos dos membros da SPA. Devem ser direitos de todos e devem facilitar o acesso, a partilha e a transformação das obras para que se maximize a criatividade.

sábado, setembro 20, 2014

Treta da semana (passada): profissionais da pobreza.

A semana passada a Isabel Jonet “alertou” que «Há profissionais da pobreza em Portugal» (1). À primeira vista, pode parecer que acusá-la de ser um dos principais profissionais da pobreza é como acusar os médicos de serem profissionais da doença ou os bombeiros de serem profissionais da desgraça. Mas há uma grande diferença entre Jonet e os restantes. Os médicos e os bombeiros fazem o que podem para prevenir os problemas, depois fazem o que podem para os resolver e só em casos extremos é que administram paliativos ou deixam a casa arder. Em contraste, a Isabel Jonet não só se limita a disfarçar os sintomas da pobreza, sem nada fazer para a prevenir ou reduzir, como também deturpa os factos e defende ideologias que impedem que o problema se resolva.

Aponta que «Em Portugal há aquilo a que chamamos a transmissão intergeracional da pobreza e temos que quebrar com essa transmissão». É verdade. Poucos ficarão surpreendidos em saber que os filhos de pais pobres tendem a ser mais pobres do que filhos de pais ricos e que as crianças de famílias pobres enfrentam obstáculos enormes simplesmente por serem pobres. Têm pior alimentação. Têm menos apoio dos pais, que normalmente têm menos formação e menos disponibilidade para passar tempo de qualidade com os filhos. Uma pausa serena para conversar ou brincar com os filhos é um luxo pouco acessível a quem passa cada momento a esgravetar trocos para a refeição seguinte. E estas crianças crescem num ambiente mais pobre. As avós ajudam muito, e são de graça, mas o contacto com outras crianças e educadores é importante e dificilmente se consegue que seja bom e gratuito.

Há também uma diferença grande entre a atitude de quem é pobre e a de quem não é, por força das circunstâncias. Quem tem estabilidade económica pode fazer planos a longo prazo mas, para quem vive da mão para a boca e sem qualquer segurança, isso não faz sentido. Não vale a pena planear poupar por uns anos, ou sequer uns meses, quando sobra tão pouco e se a qualquer momento se pode ficar sem nada por factores que não se controla. É fácil, para quem vive confortavelmente, criticar os pobres por “esbanjarem” o pouco que têm em coisas supérfluas. Mas se tivessem regularmente de almoçar pão com chá e nunca soubessem como iriam estar daí a umas semanas provavelmente também não lhes daria para pôr no banco os cinquenta euros que por algum feliz acaso sobrassem naquele mês.

Finalmente, há também o efeito da própria forma como se apoia os pobres. Aqui em casa, seria difícil pagarmos colégio privado aos nossos três filhos. Por isso, recorremos à ajuda do Estado pondo-os na escola pública. O que não é vergonha nenhuma porque a escola pública é para toda a gente que lá queira ter os filhos. Mas a situação seria diferente se, em vez de um sistema de educação universal, as escolas públicas fossem só para pobrezinhos, só admitindo os filhos de quem demonstrasse não ter dinheiro para o colégio privado. A ajuda condicionada à pobreza do beneficiário não é só humilhante e injusta. É também uma barreira à saída da pobreza porque faz com que uma melhoria no rendimento possa resultar na perda de apoios indispensáveis.

Mas o mundo de Jonet é mais simples. A pobreza não resulta de problemas sociais e económicos, nem de desigualdades, nem das trafulhices dos ricos. Deve-se simplesmente à preguiça dos pobres. «Há profissionais da pobreza habituados a andar de mão estendida, sem qualquer preocupação em mudar». E a solução não tem de considerar coisas aborrecidas como a discriminação, a justiça ou a redistribuição. Isso afecta o rendimento dos ricos e, como toda a gente sabe, os ricos são sempre os mais trabalhadores. O importante, para Jonet, é que «quando se ajuda uma família pobre, deve-se procurar que essa família queira deixar de ser pobre e não encare a assistência como uma forma de vida». Não basta garantir que o pobrezinho que se ajuda tem certificado de pobreza. É preciso também confirmar que quer largar o vício de ser pobre, deixar de ser mandrião e tornar-se rico como as pessoas decentes. Não se vai desperdiçar recursos com aquele tipo de pobre que teima em continuar pobre mesmo depois de lhe darmos uma sopa e um pacote de arroz.

Há quem julgue que pessoas como a Isabel Jonet ajudam a combater a pobreza. Mas, quanto mais a senhora fala, mais me convence do contrário. Por um lado, porque apenas disfarçam o problema. Enquanto houver caridadezinha nas paróquias e voluntários a distribuir latas de conserva pode-se fingir que o problema está a ser resolvido. Isto também ajuda a manter os pobres calados, não vão tirar-lhes a sopa se não se portarem bem. Por outro lado, dirigir instituições de “solidariedade” cria uma ilusão de autoridade moral que torna mais fácil empurrar a opinião pública para longe de qualquer solução eficaz.

O PIB dividido pelos agregados familiares, segundo a Pordata e as minhas contas, dá uma média de 3.500€ por mês, ou 2.100€ depois de retirados os impostos. Com este dinheiro seria perfeitamente viável dar umas centenas de euros por mês a todas as famílias, sem restrições, o que eliminaria os problemas principais do sistema que temos. Haveria menos barreiras para sair da pobreza, menos discriminação dos pobres, mais estabilidade para todos poderem planear a sua vida e, logo à partida, menos pobreza. Mas como isto implica menos dinheiro para os mais ricos, abençoada seja a Isabel Jonet e as suas ideias parvas...

1- Jornal de Notícias, "Há profissionais da pobreza em Portugal", alerta Isabel Jonet

terça-feira, setembro 16, 2014

O que faltou ontem.

Como qualquer circo, o Prós e Contras de ontem teve praticamente de tudo. Mas houve três falhas que tentarei aqui colmatar.

Primeiro, não ficou claro que não existe o direito à cópia privada no domínio digital. O Rui Seabra mencionou isso mas, com pouco tempo para falar e uma linguagem demasiado técnica, a mensagem acabou por não passar. A cópia privada é uma excepção legal que permite a cópia para uso pessoal sem a autorização do detentor do direito de cópia. Por exemplo, tirar uma fotocópia de um livro pode ser legal mesmo que a editora o proíba. É esta excepção que justifica a compensação pela cópia privada, se bem que esse direito só seja reconhecido quando não causa prejuízo, o que faz questionar a necessidade de compensação. Seja como for, isto funciona com livros em papel e cassetes de música mas não funciona com e-books, DVD ou músicas digitais. No domínio digital, a lei proíbe que se contorne mecanismos de restrição de cópia, o que dá aos detentores dos direitos a possibilidade de impedir a cópia legal caso não a queiram autorizar. Sendo assim, no domínio digital não há forma legal de copiar contra a vontade dos detentores dos monopólios, ficando logo excluída a necessidade de compensação.

Faltou também esclarecer que os portugueses não se dividem em vinte e tal mil autores de um lado e dez milhões de “consumidores” do outro. Em primeiro lugar, porque a cultura não se consome. Consumir implica destruir valor, como quando queimamos gasolina ou comemos batatas fritas, mas a cultura tem tanto mais valor quanto mais pessoas a partilhem. Mais relevante ainda, do ponto de vista jurídico, a lei protege todas as obras por igual, quer provenham de profissionais e tenham fins lucrativos quer provenham de amadores pelo simples prazer de criar. E, se bem que o domínio analógico fosse dominado pelos profissionais, o domínio digital é claramente dominado pelos amadores. Como a lei considera tanto autor quem filmou os filhos nas férias ou escreveu um email como quem realizou um documentário ou publicou um livro, a nossa preocupação não pode ser com os vinte e tal mil associados da SPA. Tem de ser com os dez milhões de autores portugueses.

Finalmente, talvez por lapso da produção, faltou o convite à Sociedade de Autores de Culinária e Afins, cujo comunicado me pediram para divulgar e que transcrevo abaixo.

É com pesar, e alguma revolta, que mais uma vez a Sociedade de Autores de Culinária e Afins (SACA) se vê excluída de um importante diálogo sobre a Propriedade Intelectual e os Direitos de Autor. Há anos que pugnamos para esclarecer os consumidores, tal como tentaram fazer os Exmos. Secretário de Estado da Cultura, Presidente da SPA e Vice-Presidente da SPA. De facto, a maioria da população sofre da ilusão de que, quando compram algo, têm o direito de fazer com a sua propriedade o que entenderem. Este é um erro crasso de quem não compreende a diferença fundamental entre ser dono do suporte ou da sua Forma, uma diferença reconhecida já desde o tempo de Platão.

Considere-se, por exemplo, o Pastel de Nata, um dos grandes símbolos de Portugal e, segundo o saudoso Ministro Álvaro Santos Pereira, de todos os bolos com creme o que mais potencial teria para tirar Portugal da crise. Nas lojas, o exmo. Consumidor pode adquirir este produto na sua forma mais simples ou, com um valor ligeiramente superior, acompanhado de um pacotinho de canela. Desta maneira, o autor culinário pode gerir o mercado de forma a oferecer a cada cliente o que este mais deseja. No entanto, muitas pessoas não percebem que a compra daquele suporte de massa e creme onde o Pastel foi instanciado não lhes dá o direito de usufruir do Pastel de formas não autorizadas. Por isso, compram o pastel mais barato para depois usufruir dele com canela comprada nas grandes superfícies. Este abuso dos direitos de usufruto do Pastel é apenas um exemplo dos inúmeros ataques que constantemente assolam a nossa indústria culinária e de restauração.

Com o advento da Internet e das chamadas “novas tecnologias”, generalizou-se a pirataria das receitas. A poderosa indústria dos electrodomésticos, além de ter tomado conta da blogoesfera, tem lucrado milhões vendendo auxiliares de pirataria, que vão de tachos a robots de cozinha, passando por batedeiras e varinhas mágicas. Estamos cientes de que o problema da pirataria é muito diferente de permitir, com a devida compensação, que o comprador do suporte usufrua da obra de formas não autorizadas, seja pela alteração do formato seja pela adição da canela. Mas é importante explicar o contexto que assola uma indústria fundamental para o nosso país. A música e os livros são coisas importantes, com certeza, mas a alimentação tem de vir primeiro. Não se pode permitir que as pessoas continuem a cozinhar e a partilhar receitas sem regras, e que uma indústria tão importante seja arrasada por amadores quando cozinheiros profissionais passam fome. Assim, propomos ao Exmo. Sr. Secretário de Estado da Cultura que estenda a taxa sobre o equipamento digital a todos os condimentos, ingredientes, aparelhos de cozinha e livros. Reconhecemos que há livros que não são de culinária, mas esses são uma rara excepção e não é justo que a indústria livreira lucre à custa dos profissionais da Criação Alimentar.

José Rendeiro da Cunha,
Chefe de Culinária e Presidente da SACA.

segunda-feira, setembro 15, 2014

Ciência e filosofia

são a mesma coisa. Se bem que hoje pareça uma afirmação estranha, até meados do século XIX nem sequer havia cientistas. Desde que uns gregos trocaram a mitologia por uma abordagem crítica e racional até que William Whewell cunhou o termo “cientista”, quem procurava o conhecimento era filósofo*. Mesmo o “cientista” original era somente quem estudava as filosofias naturais, excluindo disciplinas como a psicologia, a história ou a sociologia. Só a especialização crescente em vários campos é que fez calcificar a noção da ciência como separada da filosofia. Uma noção que, além de falsa, é prejudicial para ambas.

Normalmente, invoca-se uma de duas razões para separar filosofia e ciência: a de que são métodos diferentes ou a de que abordam problemas diferentes. A primeira é fácil de descartar porque o melhor método para responder a qualquer questão é sempre o de pensar criticamente nas respostas à luz da experiência. Aristóteles propôs que as pedras caíam porque o seu lugar natural era em baixo. Por experiência, sabia ser errado propor que as pedras subiriam por o seu lugar natural ser no céu. É também esta a abordagem da física moderna e, se Aristóteles soubesse o que se sabe hoje, teria proposto algo semelhante ao que se propõe agora. A abordagem racional e crítica é a mesma quer se chame filosofia quer se chame ciência. O que dá a sensação de serem diferentes é, por vezes, interpretar-se as perguntas de forma diferente. O que nos traz à segunda razão que se invoca para distinguir ciência e filosofia.

Vamos considerar, como exemplos, as questões “o que é a matéria?” e “o que é o bem?”. Os proponentes da separação dirão que a primeira questão é científica por ser abordada de forma empírica enquanto que a segunda é filosófica por ser debatida pela argumentação crítica. Mas, em qualquer área, a fronteira do conhecimento é sempre parca em experiência. A física moderna é um enorme edifício conceptual testado e fundamentado empiricamente mas o seu limite, onde a construção decorre, é dominado pela argumentação. Enquanto não se consegue testar as teorias mais sofisticadas, os físicos teóricos argumentam entre si como fazem os filósofos da ética e como faziam os gregos na antiguidade. A diferença está apenas na quantidade de conhecimento prévio que isto exige. Enquanto que o conhecimento empírico necessário para perceber Aristóteles ou a filosofia ética é apenas o que qualquer pessoa normal já tem, para filosofar na física moderna é preciso saber muito mais e quem percorra esse caminho acaba rotulado de “físico” e “cientista” o que, por preconceito, exclui que o reconheçam como filósofo também. Mas a diferença no fundamento empírico é apenas de grau e não de categoria.

Também quem filosofar na ética tem de usar o seu conhecimento empírico para filtrar as hipóteses que apresenta. É por isso que não se vê filósofos a propor que o bem moral seja definido em função de fazer cócegas, lavar mais branco ou ter a embalagem mais atraente. Por experiência, sabemos que faz mais sentido olhar para factores como expectativas, consequências, actos ou virtudes. A ilusão de que a filosofia ética não é empírica resulta apenas do conhecimento empírico necessário, neste momento, estar facilmente acessível a todos. Assim, o estudo adicional que a filosofia ética exige foca os argumentos em vez das experiências e das hipóteses que delas surjam. Mas isto pode mudar. Se a neuropsicologia descrever em detalhe como factores externos e mecanismos internos restringem as nossas decisões, e como quantificar experiências subjectivas, esse conhecimento informado pela experiência passará a ser indispensável para a filosofia da ética. Não só por eliminar hipóteses factualmente incorrectas, como já aconteceu a boa parte das éticas de inspiração religiosa, mas porque a nossa capacidade de conceptualizar detalhes é muito limitada e, sem ajuda da experiência, só conseguimos formular ideias vagas.

Resumindo, eu considero a filosofia e a ciência como extremos num contínuo, com a filosofia exigindo menos dados empíricos (mas sempre alguns) e mais argumentação e a ciência exigindo menos argumentação (mas sempre alguma) e mais conhecimento empírico. Isto facilmente induz o erro de ver a filosofia como uma fase primitiva da ciência, erro que eu próprio tenho cometido até começar a escrever este post. Esse erro advém de olhar para um ponto fixo por onde o conhecimento avança. Mas, se acompanharmos essa fronteira em expansão, vemos que a filosofia está sempre na crista da onda, abrindo o caminho para a consolidação empírica a que chamamos ciência. E, mesmo sendo a frente mais filosófica e a cauda mais científica, não há uma fronteira definida entre elas nem se pode separar as duas porque a abordagem é a mesma, só as circunstâncias é que vão gradualmente mudando e tornando uma na outra.

Perceber que filosofia e ciência são partes de um contínuo indivisível é importante quer para cientistas quer para filósofos. Pode ajudar os cientistas que dizem desprezar a filosofia a perceber que nunca podem prescindir dela e pode ajudar, por exemplo, o Dawkins a lembrar-se de que tem sempre de ter cuidado com a consistência dos argumentos que apresenta. Também pode ajudar os filósofos que acusam os cientistas de serem “filosoficamente ingénuos” a perceber que, estando a filosofia à frente da ciência, é um erro ignorar a investigação científica. Por exemplo, acusar Krauss de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” do nada pode ser um disparate tão grande como o de, sem compreender a teoria da relatividade, acusar Einstein de ter um conceito “filosoficamente ingénuo” da gravidade só porque nunca citou Aristóteles nos seus artigos. Imaginar que a filosofia e a ciência estão separadas permite acusações cómodas de parte a parte por dispensar o conhecimento dos factos ou a reflexão adequada. Mas o resultado tende a ser um disparate que seria fácil evitar se percebessem que não se pode reflectir sem informação nem se pode compreender sem reflexão.

* Também havia teólogos, místicos, profetas e essa gaita toda. Mas isso sempre foi aldrabice.

domingo, setembro 07, 2014

Treta da semana: Gonçalismo.

Gonçalo Portocarrero de Almada propôs que «Apesar de, na aparência, a nossa sociedade ser machista, na realidade são elas que mandam!» (1). Passou depois a apresentar exemplos que sugerem precisamente o contrário. Começou por contar que, «no relato bíblico, foi a mulher que obrigou o homem a comer o fruto proibido». Se reconhecermos que este relato não é uma descrição correcta dos factos mas sim um mito inventado por homens, é evidente o machismo na atribuição da culpa à mulher. E a interpretação de Portocarrero é ainda mais machista porque a expressão original é simplesmente «tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela» (Gen. 3:6). Interpretar isto como obrigar Adão a comer o fruto não está longe de interpretar uma mini-saia como “estar a pedi-las”.

Mais à frente, Portocarrero aponta que «Muitos privilégios da condição feminina não são extensivos aos homens: a consorte do rei é rainha, como as plebeias Letícia de Espanha, Sílvia da Suécia e Sónia da Noruega. Mas o marido da rainha só é príncipe, como Filipe de Edimburgo, Bernardo da Holanda ou Frederico da Dinamarca». A mulher que se case com um rei será rainha porque se presume que, havendo um rei, a rainha não manda nada e é simplesmente a esposa do rei. Para que a rainha seja a regente não pode estar casada com um rei e é por isso que o marido da rainha reinante tem de ser menos que rei. Senão seria ele a mandar. Isto só pode parecer discriminação em favor da mulher a quem também acreditar que três é um e que a bolacha é Deus. Para qualquer pessoa com discernimento é mais um exemplo de machismo e não de “privilégios da condição feminina”.

Portocarrero também critica a assimetria entre machismo e feminismo. «Um homem que considera as mulheres menos aptas para o exercício de um cargo ou profissão é, obviamente, machista. Mas, se uma senhora tecer a mesma opinião em relação aos cavalheiros, ninguém a acusará de feminista […] Em tese, também poderia haver um machismo bom e um feminismo mau.» Um machismo bom, duvido. Mas um feminismo mau, sim. O feminismo bom será o que defende a igualdade de direitos e rejeita a discriminação em função do sexo ou do género. O feminismo mau é também discriminatório, como o machismo. Por exemplo, é um feminismo bom defender que mulheres e homens devem poder fazer parte de corporações de bombeiros, ou de forças de segurança, sem discriminação. Mas será um feminismo mau o que defender que os testes físicos das mulheres devem ser mais fáceis do que os dos homens. Além de discriminatório, isto ignora o facto incontornável de que as exigências físicas das tarefas a executar não diminuem magicamente quando as tarefas são executadas por uma mulher.

No entanto, há uma grande diferença entre o machismo e o feminismo mau porque o machismo tem muitos séculos de tradição e uma aceitação social muito mais enraizada que qualquer feminismo, bom ou mau. Até os exemplos que Portocarrero escolheu demonstram isso claramente. Portanto, é como na canoagem. Quem remar olhando para o umbigo espera haver uma simetria entre a canoa apontar para aquele lado ou para o outro. Mas quem estiver atento à margem verá que é mais fácil empurrar a canoa a favor da corrente do que para o outro lado. Em águas paradas poderia ser como Portocarrero reclama mas, infelizmente, estamos muito longe disso. Tão longe que é preciso remar contra a corrente só para ficar parado e chamar feminismo à ideia tão simples de que devemos ter todos os mesmos direitos.

No entanto, concordo com Portocarrero quando afirma que «Impor restrições, por razão do sexo, no acesso aos cargos políticos, ou outros, é perverter a ordem da justiça». Mas lamento que seja inconsistente na aplicação desse princípio. Sendo padre, dá «graças a Deus por me ter chamado para a única profissão que elas nunca poderão exercer!» Não poderão porque, por razão do seu sexo, lhes impõem restrições no acesso a esse cargo. Mas, se não fosse essa perversão da ordem da justiça, poderiam perfeitamente fazer o que o senhor padre faz. Podem não ser muitas as mulheres com essa vocação, mas há com certeza algumas capazes de proferir disparates da mesma magnitude.

1- I Online, Eles e Elas.

sábado, setembro 06, 2014

Incentivo.

O Samuel Henriques criticou o meu post anterior sobre a taxa pela cópia privada. Uma das críticas foi a de que eu refiro sempre o copyright quando «O direito de autor português não corresponde ao copyright anglosaxónico»(1). É precisamente por isso. Eu não sou contra o direito do autor ser reconhecido como criador da obra, de não ser associado a deturpações do que criou e de decidir se publica a obra ou se a mantém privada, por exemplo. O que oponho é a concessão de um monopólio legal sobre a cópia e sobre a criação de obras derivadas. Ou seja, o copyright. O Samuel também apontou que é fácil criticar a taxa sobre equipamento digital sem atacar o monopólio sobre a cópia. Até pode ser. No entanto, o problema maior aqui não é pagar 4€ de taxa na compra de um disco rígido. Muito pior é ser crime partilhar informação que está publicamente disponível em qualquer loja.

O Samuel desafiou-me também a propor uma «solução que melhor ajude a criação artística». A premissa parece ser a de que estes monopólios incentivam os autores a criar as suas obras e que só podemos abolir esta legislação se a substituirmos por algo que incentive ainda mais. Aceito o desafio, mas tenho de desfazer os mal entendidos primeiro.

O Reino Unido foi pioneiro nestas coisas. Em 1538 passou a exigir aprovação e censura prévia de todo o material impresso e, em 1662, atribuiu à guilda dos tipógrafos o direito exclusivo de imprimir o que a Coroa autorizasse. Quando um tipógrafo registava uma obra ficava com o direito exclusivo e perpétuo de a imprimir, sem que o autor fosse sequer consultado. Eventualmente, os protestos dos autores levaram, em 1710, à primeira legislação de copyright. Esta mantinha o sistema de monopólio mas concedia ao autor o monopólio inicial e limitava a sua duração a 14 anos (2). É importante perceber como o contexto em que este sistema surgiu diferia do copyright moderno, especialmente no domínio digital. O monopólio era concedido sobre a tipografia, uma actividade industrial acessível apenas a uns poucos comerciantes e fora do alcance da generalidade dos autores e dos leitores. Além disso, a concessão do monopólio aos autores foi uma reacção à injustiça de o conceder logo aos tipógrafos e assumia que, de qualquer forma, os autores teriam de ceder esse monopólio por não serem donos de tipografias. No fundo, algum monopólio existiria, com ou sem a lei, pelas restrições que a tecnologia impunha e ao contrário do que acontece agora.

Há também evidências de que o copyright era menos benéfico para os autores do que um mercado livre e competitivo. Por exemplo, a falta desta legislação na Alemanha do século XIX levou a preços mais baixos e a maiores volumes de vendas do que no Reino Unido, beneficiando autores, leitores e a cultura em geral (3). Hoje também é evidente que o monopólio só serve os distribuidores. O decréscimo dramático na venda de discos fez encerrar muitas lojas e causou prejuízos às editoras mas não resultou em qualquer decréscimo na composição de músicas novas nem em prejuízo, em média, para os artistas (4). Nada disto deve surpreender quem percebe como um monopólio funciona: um monopólio permite aumentar os lucros por limitar a concorrência. Por exemplo, hoje estão a ser reeditados mais livros escritos nas décadas de 1900 e 1910 do que em qualquer década entre 1920 e 1980. O número de títulos com edições novas apenas ultrapassa o de 1910 para obras mais recentes do que 1990. Este buraco de 80 anos corresponde à duração média do copyright dessas obras, período durante o qual o detentor do monopólio opta por não editar títulos que possam concorrer com outros que esteja a promover (5).

Outro erro é julgar que os autores precisam de um incentivo para criar. É claro que, depois de terem sucesso, vão sempre querer mais monopólios, por mais tempo, para ganharem mais dinheiro (6). Mas um artista precisa de tanto incentivo para se exprimir pela arte como eu preciso para comer chocolate. O que temos de dar ao autor são condições para que possa criar, condições essas que o copyright degrada significativamente por dificultar o acesso à cultura, por obrigar os jovens artistas a competir com detentores de vastos monopólios e por proibir a criação de obras derivadas.

Para responder ao Samuel, há alternativas melhores para ajudar a criação cultural. Maior investimento na educação artística aumentaria muito a qualidade das obras, quer por formar melhor os autores quer por tornar o público mais exigente. Melhor apoio social a famílias carenciadas reduziria o número de autores que perdemos por lhes ser impossível começar essa carreira. A quem precisa de comer agora não adianta uma promessa vaga de, eventualmente, receber royalties durante setenta anos. Em geral, o que mais ajuda a criação artística é o que mais ajudar cada pessoa a seguir os seus interesses e a aproveitar a suas aptidões. Mas se queremos uma medida imediata, eficaz e de custo zero para fomentar a criatividade artística, então a melhor alternativa ao copyright é simplesmente aboli-lo. Com a tecnologia que temos, esse sistema monopolista do tempo de Gutenberg faz muito mais mal do que bem.

No entanto, nada disto importa. Discutir os efeitos económicos do copyright é como discutir se a escravatura seria boa ou má para a economia. O copyright usa os nossos impostos para financiar medidas coercivas que restringem o que podemos fazer com o nosso equipamento, e a informação que podemos partilhar, só para rentabilizar um modelo de negócio que, no fundo, consiste em vender números. Ao lado deste absurdo, qualquer questão de ajudar ou dificultar a criação artística torna-se irrelevante.

1- Treta da semana (passada): “direitos”, “autores” e “cultura”.
2- Wikipedia, Statute of Anne
3- Quem lucra.
4- Torrent Freak, ARTISTS MAKE MORE MONEY IN FILE-SHARING AGE THAN BEFORE IT
5- Heald, How Copyright Keeps Works Disappeared Illinois Program in Law, Behavior and Social Science Paper No. LBSS14-07; Illinois Public Law Research Paper No. 13-54.
6- Por exemplo, BBC, Rock veterans win copyright fight