O argumento cosmológico.
O Bernardo Motta gosta muito deste argumento que, alegadamente, demonstra a existência do deus preferido do Bernardo Motta. A parte explícita deste argumento é assim (1):
«Premissa 1. Tudo o que começou a existir tem uma causa
Premissa 2. O Universo começou a existir
Conclusão: Por "modus ponens" das premissas 1 e 2, o Universo tem uma causa.»
A parte implícita é que essa causa é Deus, Pai todo-poderoso, e Jesus Cristo, seu único Filho, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, que nasceu da Virgem Maria, morreu e ressuscitou, e mais uma data de coisas cuja inferência destas premissas não se consegue justificar. Mesmo que este argumento fosse sólido, não se podia concluir que o Universo teve sequer um criador inteligente e, na verdade, o argumento não é sólido porque as premissas não são aceitáveis na forma que suportaria a conclusão.
Segundo o que sabemos da física moderna, há coisas que começam a existir e que não têm causa. O Bernardo diz que é um erro «tomar a materialização de partículas subatómicas a partir do vácuo quântico como um exemplo de algo surgir do nada» porque «o vácuo quântico não é "nada"». Mas o que está em causa não é a semântica do termo “nada”. O facto é que há coisas que começam a existir e que não têm causa. Logo, a primeira premissa é falsa. Mais do que isso, para que a primeira premissa suporte a conclusão que o Bernardo deseja, não pode afirmar apenas que cada coisa que começa tem a sua causa. Precisa que tudo – todo o universo – tenha, em conjunto, uma só causa. Mas mesmo que todas as coisas tivessem causas, não se poderia assumir que o conjunto de todas as coisas teria uma causa. É a diferença entre as árvores surgirem de sementes e toda a floresta surgir da mesma semente. O Bernardo menciona esta falácia da composição mas, pelo que escreve, não parece ter percebido o problema. Limita-se a afirmar que «É simplesmente absurdo defender que algo pode surgir absolutamente do nada», o que é irrelevante. Para mim, também me parece absurdo que a Terra distorça o espaço-tempo porque nem consigo imaginar como é que o espaço-tempo pode ser distorcido. No entanto, seria presunçoso assumir que nada no Universo pode estar além da minha capacidade de o compreender. Se é absurdo, azar nosso.
A segunda premissa também é falsa. É verdade que o Universo – pelo menos esta bolha de espaço-tempo em que vivemos – dura há tempo finito. Pouco mais de treze mil milhões de anos. Mas o Bernardo precisa que o Universo tenha tido um começo no sentido de haver um instante antes do Universo surgir, depois o instante em que o Universo surge e, a partir daí, Universo até hoje. Só nessas condições é que podemos falar de causalidade porque a causa tem de preceder o seu efeito. Mas como o Universo inclui o espaço-tempo, é evidente que não podia haver um “antes do Universo”. Pode nem sequer ter havido um começo para o Universo. Segundo Hartle e Hawking, por exemplo, o tempo só se separou do espaço com o Universo já formado, pelo que o Universo tem uma duração finita mas não um começo no tempo. Matematicamente, o tempo em que o Universo existe é um intervalo aberto no limite inferior (2). Seja como for, não há aqui um começo ao qual se possa aplicar o conceito de causa.
O Bernardo defende que há algo eterno, fora do espaço e do tempo, do qual o Universo surgiu. Isso é também o que a física moderna defende. O tal “vácuo quântico” é eterno e está fora do espaço e do tempo. Não teve início nem terá fim. E foi daí que o Universo surgiu. O problema do Bernardo é que, não fazendo sentido rezar ao vácuo quântico, pedir-lhe favores, louvar o seu nome ou assumir que ele guia o Papa de forma infalível, precisa de inventar uma causa para o Universo. Que nem pode ser uma causa qualquer. Tem de ser uma pessoa inteligente que não só ama o Bernardo mas que também se preocupa com as nossas crenças, a nossa vida pessoal e até o que fazemos na cama. Como as próprias noções de causalidade, tempo e começo que aplicamos ao que acontece dentro do Universo não se podem aplicar ao Universo como um todo, o argumento cosmológico nem sequer este primeiro passo consegue justificar. Quanto ao resto, já nem sequer é equívoco. É pura fantasia.
1- Bernardo Motta, Objecções ao Argumento Cosmológico "Kalam"
2- Wikipedia, Hartle-Hawking state