sábado, agosto 31, 2013

O argumento cosmológico.

O Bernardo Motta gosta muito deste argumento que, alegadamente, demonstra a existência do deus preferido do Bernardo Motta. A parte explícita deste argumento é assim (1):

«Premissa 1. Tudo o que começou a existir tem uma causa
Premissa 2. O Universo começou a existir
Conclusão: Por "modus ponens" das premissas 1 e 2, o Universo tem uma causa.»


A parte implícita é que essa causa é Deus, Pai todo-poderoso, e Jesus Cristo, seu único Filho, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, que nasceu da Virgem Maria, morreu e ressuscitou, e mais uma data de coisas cuja inferência destas premissas não se consegue justificar. Mesmo que este argumento fosse sólido, não se podia concluir que o Universo teve sequer um criador inteligente e, na verdade, o argumento não é sólido porque as premissas não são aceitáveis na forma que suportaria a conclusão.

Segundo o que sabemos da física moderna, há coisas que começam a existir e que não têm causa. O Bernardo diz que é um erro «tomar a materialização de partículas subatómicas a partir do vácuo quântico como um exemplo de algo surgir do nada» porque «o vácuo quântico não é "nada"». Mas o que está em causa não é a semântica do termo “nada”. O facto é que há coisas que começam a existir e que não têm causa. Logo, a primeira premissa é falsa. Mais do que isso, para que a primeira premissa suporte a conclusão que o Bernardo deseja, não pode afirmar apenas que cada coisa que começa tem a sua causa. Precisa que tudo – todo o universo – tenha, em conjunto, uma só causa. Mas mesmo que todas as coisas tivessem causas, não se poderia assumir que o conjunto de todas as coisas teria uma causa. É a diferença entre as árvores surgirem de sementes e toda a floresta surgir da mesma semente. O Bernardo menciona esta falácia da composição mas, pelo que escreve, não parece ter percebido o problema. Limita-se a afirmar que «É simplesmente absurdo defender que algo pode surgir absolutamente do nada», o que é irrelevante. Para mim, também me parece absurdo que a Terra distorça o espaço-tempo porque nem consigo imaginar como é que o espaço-tempo pode ser distorcido. No entanto, seria presunçoso assumir que nada no Universo pode estar além da minha capacidade de o compreender. Se é absurdo, azar nosso.

A segunda premissa também é falsa. É verdade que o Universo – pelo menos esta bolha de espaço-tempo em que vivemos – dura há tempo finito. Pouco mais de treze mil milhões de anos. Mas o Bernardo precisa que o Universo tenha tido um começo no sentido de haver um instante antes do Universo surgir, depois o instante em que o Universo surge e, a partir daí, Universo até hoje. Só nessas condições é que podemos falar de causalidade porque a causa tem de preceder o seu efeito. Mas como o Universo inclui o espaço-tempo, é evidente que não podia haver um “antes do Universo”. Pode nem sequer ter havido um começo para o Universo. Segundo Hartle e Hawking, por exemplo, o tempo só se separou do espaço com o Universo já formado, pelo que o Universo tem uma duração finita mas não um começo no tempo. Matematicamente, o tempo em que o Universo existe é um intervalo aberto no limite inferior (2). Seja como for, não há aqui um começo ao qual se possa aplicar o conceito de causa.

O Bernardo defende que há algo eterno, fora do espaço e do tempo, do qual o Universo surgiu. Isso é também o que a física moderna defende. O tal “vácuo quântico” é eterno e está fora do espaço e do tempo. Não teve início nem terá fim. E foi daí que o Universo surgiu. O problema do Bernardo é que, não fazendo sentido rezar ao vácuo quântico, pedir-lhe favores, louvar o seu nome ou assumir que ele guia o Papa de forma infalível, precisa de inventar uma causa para o Universo. Que nem pode ser uma causa qualquer. Tem de ser uma pessoa inteligente que não só ama o Bernardo mas que também se preocupa com as nossas crenças, a nossa vida pessoal e até o que fazemos na cama. Como as próprias noções de causalidade, tempo e começo que aplicamos ao que acontece dentro do Universo não se podem aplicar ao Universo como um todo, o argumento cosmológico nem sequer este primeiro passo consegue justificar. Quanto ao resto, já nem sequer é equívoco. É pura fantasia.

1- Bernardo Motta, Objecções ao Argumento Cosmológico "Kalam"
2- Wikipedia, Hartle-Hawking state

quarta-feira, agosto 28, 2013

Austeridade, parte 2: taxas de juro.

Na primeira parte argumentei que o aumento da dívida pública em Portugal não se deveu a anos de “boa vida” mas sim aos problemas do sector bancário e, por consequência, da economia privada (1). Entre 1991 e 2009 a dívida pública portuguesa oscilou entre os 60% e 70% do PIB. Foi de 2009 em diante que cresceu para mais do dobro, por problemas que a austeridade só tem agravado. Nesta parte vou abordar a história de que nos endividámos demais, os mercados perderam confiança e é por isso que as taxas de juro subiram e precisámos de resgates. No fundo, que a culpa é nossa e não estaria cá a troika se não tivéssemos esbanjado tanto.

Superficialmente, isto parece ser verdade para a Grécia. A Grécia aldrabou as contas e, no início de 2010, quando as taxas de juro apertaram, tinha uma dívida pública de 140%. No entanto, mesmo para a Grécia a história não pode ser tão simples. Os investidores que “perderam a confiança” ao saber das aldrabices dos gregos eram os que tinham ajudado os gregos a aldrabar (2) e toda a gente sabia das aldrabices, só fingia não saber porque não dava jeito (3). Até 2008, com a dívida pública quase a 120% do PIB, as taxas de juro da Grécia eram iguais às da Alemanha. E de 2012 para cá têm diminuído apesar do perdão de boa parte da dívida pública grega. Claramente, não pode ser uma simples questão de “confiança dos investidores”.

Quando consideramos Portugal e a Irlanda, a discrepância entre a narrativa da confiança e a realidade é ainda maior. O gráfico abaixo mostra a variação das taxas de juro e da dívida pública para a Alemanha (DE), Grécia (GR), Irlanda (IR) e Portugal (PT). Os dados são do Banco Central Europeu (BCE) (4), o valor da dívida pública para cada ano foi atribuído ao dia 31 de Dezembro desse ano e os valores das taxas de juro às datas indicadas pelo BCE*.


(clique a imagem para ver maior)

A Irlanda tinha uma dívida pública muito baixa até ter de salvar os bancos privados. Não havia indícios de excessos na função pública. No entanto, em 2010, depois de subirem as taxas de juro da Grécia e quando a dívida pública da Irlanda ainda era semelhante à da Alemanha, as taxas de juro da Irlanda dispararam também. Com Portugal foi quase o mesmo. A dívida pública era maior do que a irlandesa, mas o aumento inicial não foi tão brusco e acompanhou, aproximadamente, a da Alemanha, que também se endividou mais nessa altura de crise. Mas enquanto as taxas de juro dos outros países dispararam, pondo em perigo o próprio Euro, as taxas de juro da Alemanha caíram tanto que chegaram a ficar abaixo da inflação. Aparentemente, conforme a Alemanha se endividava, “os mercados” ganhavam tanta confiança que estavam dispostos a ter prejuízo só para emprestar dinheiro ao Estado alemão. Quando consideramos os factos, a história da confiança dos mercados não faz sentido nenhum.

Há outra explicação mais plausível. Segundo os números que consegui encontrar, há cerca de 80 biliões de dólares em títulos de dívida no mercado e, só nos EUA, 800 mil milhões trocam de mãos em cada dia (5). Extrapolando para o mundo todo, o volume diário de transacções andará à volta dos 2% do total. Como os títulos de dívida pública têm prazos típicos de cinco a dez anos, este mercado secundário será facilmente dezenas de vezes maior do que o mercado primário. Este volume imenso deve-se ao uso destes títulos para muitos fins, desde especulação e garantias para empréstimos até detalhes de logística. Por exemplo, se é preciso notas e moedas na filial de Paris, mais vale vender alguns activos a um banco francês que leve lá o dinheiro do que transportar toneladas de euros pela Europa em carros blindados. A consequência é que o preço dos títulos de dívida – e, portanto, as taxas de juro – é mais determinado pela oferta e procura no mercado secundário do que pela tal “confiança” do investidor.

Apesar de, oficialmente, os títulos de dívida serem todos iguais na zona Euro – como foram na prática até 2008 – quando os bancos tiveram de os vender para tapar o buraco dos créditos sub-prime, começaram naturalmente pelos menos desejáveis. Se muitos tentam vender a mesma coisa o preço baixa. E quando, vendo o preço baixar, tentam despachar tudo o mais depressa possível, o preço colapsa. Foi isso que fez disparar as taxas de juro da Grécia, depois da Irlanda e de Portugal. Por outro lado, com todos a refugiarem-se nos títulos de dívida alemães, o preço destes subiu, fazendo descer as taxas de juro. Só com este efeito secundário da crise a Alemanha já poupou quarenta mil milhões de euros (6). Vendo a coisa mal parada, no final de 2011 o BCE criou um programa de empréstimos bancários a 1% aceitando como garantia títulos de dívida de qualquer país europeu (7). Isto deu a todos os bancos privados a possibilidade de usar os títulos de dívida para obter dinheiro fácil e fez cair as taxas de juro. A subida até final de 2011 e a descida a seguir não se devem à confiança, à austeridade ou ao sacrifício das pessoas. Resultam apenas das pressões do mercado secundário e das políticas do BCE.

O barrete de ser preciso a troika porque nos portámos mal e a austeridade para “reconquistar os mercados” serve apenas para nos tapar os olhos enquanto saqueiam o Estado ainda mais do que os governos anteriores. Olhem, austeridade e tal, por isso é preciso cortar nas pensões para nacionalizar o banco falido dos nossos amigos e, já agora, vendemos-lhes o CTT por meia pevide que a vida está cara e eles não podem pagar mais. Na verdade, precisámos do dinheiro da troika porque o sistema bancário europeu está mal regulado, não há austeridade que resolva o problema das taxas de juro porque aquilo que as determina está fora das nossas mãos, e isto é tudo uma fantochada para ver se o sistema bancário europeu encolhe antes de explodir. Mas isso fica para o próximo episódio.

* O João Vasco já tinha publicado um gráfico sobre isto, em Os mitos da crise, 1, mas eu prefiro não agregar os países e apontar as diferenças entre eles.

1- Austeridade, parte 1: a crise da dívida pública.
2- Por exemplo, a Goldman Sachs: Spiegel, Greek Debt Crisis: How Goldman Sachs Helped Greece to Mask its True Debt
3- The Epoch Times, EU Knew Greece Cooked its Books When it Joined Eurozone
4- Statistical Data Warehouse, ECB 5- Wikipedia, Bond Market
6- Spiegel, Profiteering: Crisis Has Saved Germany 40 Billion Euros
7- European Central Bank

domingo, agosto 25, 2013

Treta da semana: isso não se diz...

Há uns dias o Dawkins escreveu 130 caracteres no Twitter comentando que «Todos os muçulmanos do mundo tiveram menos prémios Nobel do que o Trinity College de Cambridge. Mas fizeram grandes coisas na Idade Média». Foi logo acusado de preconceituoso e intolerante (bigoted) por vários ateus, outros apontaram que os muçulmanos tiveram mais prémios Nobel do que o Dawkins, como se o Dawkins fosse 23% da população mundial, e alguns até o acusaram de racismo, nem percebendo quão racistas estavam a ser ao confundir o Islão com uma raça (1). Por cá, em conversa semi-privada no Facebook, também encontrei ateus a defender que a afirmação era repugnante, que culpava os muçulmanos inocentes e que era uma generalização injusta. Disparates.

As mulheres são 50% da população mundial mas apenas 17 dos cerca de 600 galardoados com prémios Nobel em ciência foram mulheres (2), 18 vezes menos do que as 300 que seria de esperar sem correlação entre o sexo e a probabilidade de ganhar um Nobel em ciência. Esta afirmação não é misógina, racista, repugnante ou intolerante. É um facto. Se a reacção à expressão deste facto fosse sempre a de repúdio visceral nunca se teria tomado medidas para mitigar o problema. Não se tentaria combater a discriminação contra as mulheres nem oferecer condições para que uma mãe não tenha de abandonar a carreira para cuidar de filhos pequenos, por exemplo. Durante este século e pouco de Nobel muito foi mudando nestes aspectos e encarar os factos como eles são foi uma condição indispensável para que isso acontecesse.

Os muçulmanos são 23% da população mundial e receberam, no total, dois prémios Nobel em ciência (3), 70 vezes menos do que seria de esperar sem correlação e uma proporção em relação a esse valor esperado quatro vezes inferior à das mulheres. Este facto também indica algum problema. Os homens muçulmanos não perdem mais tempo com gravidez e aleitamento do que os outros homens que ganham prémios Nobel e é pouco plausível que tenham sofrido quatro vezes mais discriminação do que as mulheres. A natureza repressiva dos regimes de muitos países muçulmanos, o Islão ser uma obrigação legal para muitos dos seus seguidores e os castigos por qualquer opinião fora do que essa religião lhes permite parecem factores mais importantes. É claro que o problema é complexo e pode haver dissensão acerca dos factores principais, mas isso é muito diferente de ignorar o problema para repudiar quem o aponta.

A reacção de alguns ateus a um artigo analisando estudos sobre religiosidade e inteligência (4) teve menos acrimónia mas também incluiu exemplos semelhantes de irracionalidade. O sociólogo Frank Furedi acusou os autores de «“cientismo” do pior»(5) sem dizer nada acerca da análise em si ou dos estudos em que se basearam. Especulou sobre a cultura e intenções, insinuou que foram muito mauzinhos, alegou que «a relação entre “a investigação mostra” e a verdade é muitas vezes tão dúbia quanto a da alegação de que “Deus disse” com o que realmente acontece» e concluiu com uma contradição: «Como ateu discordo da alegação de que a minha posição é produto da minha inteligência […] Acredito que fiz uma escolha inteligente em não acreditar». Foi uma escolha inteligente mas não tem qualquer relação com a sua inteligência. Pois claro. Entre os ateus de cá, também houve quem endossasse estes disparates de que a investigação científica é o mesmo que “Deus disse” e de criticar um artigo científico divagando sobre tudo menos o conteúdo do artigo (6).

O artigo merece algumas críticas, como qualquer artigo científico. Recolhe dados de estudos diferentes e tenta normalizar medidas diferentes, o que não é trivial, e há mecanismos alternativos que podem explicar a correlação por factores comuns. Por exemplo, pessoas com menos poder económico têm pior alimentação, educação e estímulos e mais probabilidade de necessitar do apoio de instituições religiosas. Isto pode explicar a correlação sem implicar qualquer relação causal entre religião e inteligência. Pode também ser um efeito de alguns pontos extremos. Pessoas com muito pouca inteligência são menos independentes e podem-se associar mais a grupos religiosos, alterando a média sem que haja diferenças entre os restantes ateus e crentes. Há muitas possibilidades a considerar para tentar perceber o que está por trás desta correlação negativa entre religiosidade e inteligência. Incluindo, obviamente, a de que pessoas com mais inteligência tenham menos propensão para acreditar nas histórias que as religiões contam. Podem não ser possibilidades agradáveis, mas para lidar com os factos é preciso controlar as tripas.

Esta indignação, muitas vezes fingida, e a demagogia falaciosa do apelo à emoção e ao preconceito, já incomodam bastante quando vêm de crentes e apologistas da religião. Mas desses é tão comum que uma pessoa acaba por se habituar. Mais deprimente é ver os que se dizem livres pensadores deitar fora toda a objectividade e fazerem-se de beatas ofendidas só para parecerem politicamente correctos.

1- Guardian, Richard Dawkins criticised for Twitter comment about Muslims
2- Nobelprize.org, Nobel Prize Awarded Women
3- Wikipedia, List of Muslim Nobel Laureates
4- Zuckerman et al, The Relation Between Intelligence and Religiosity A Meta-Analysis and Some Proposed Explanations (pdf)
5- The Independent, Atheists are more intelligent than religious people? That's ‘sciencism’ at its worst
6- Não gosto de omitir referências, mas como não sei com que expectativas de privacidade as pessoas usam o Facebook é melhor deixar assim.

sexta-feira, agosto 23, 2013

Impostos: para que servem.

Nos últimos tempos tenho encontrado várias ideias sobre os impostos que me parecem fundamentalmente erradas. Assim de cabeça, o Mário Valente sobre os socialistas, «Quando vêem um pobrezinho na rua querem sempre dar-lhe a minha camisa» (1); um familiar que insistia comigo que a carga fiscal em Portugal era muito alta, obrigando-me a sacar da Wikipedia para lhe mostrar que a de Portugal (37% do PIB) é significativamente inferior à de países como a Alemanha (40,6%), Austria (43.4%), França (44,6%) ou Dinamarca (49%) (2); o espanto do Ronaldo pagar mais de impostos do que os 17 milhões de euros que vai receber, coitado(3); e a recomendação do Henrique Monteiro, «Cortem os impostos (e serão recompensados)» (4), sem que a recompensa se refira a cargos de administração nas empresas beneficiadas. Há aqui muita confusão, a começar logo pela camisa.

Os direitos de propriedade são direitos negativos. A camisa ser minha quer dizer simplesmente que outras pessoas não me podem privar de usufruir dela. Se eu fosse a única pessoa no mundo estariam garantidas todas as minhas liberdades de proprietário da camisa. Porque estas não incluem, por exemplo, o dever de terceiros de aceitar a minha camisa como pagamento por bens ou serviços. É fácil perceber que ter euros é diferente de ter camisas. Ao contrário da camisa, se eu for a única pessoa no mundo não terei dinheiro. Mesmo que tenha notas e moedas deixarão de ser dinheiro se não houver mais ninguém que as aceite como tal. Os euros só são úteis porque há um compromisso colectivo, com garantias legais, de que serão aceites como pagamento. Só posso pagar as compras no supermercado com a camisa se o dono do supermercado permitir, mas se pago em euros tem de aceitar. Não me pode exigir dólares, nem pesetas nem a camisa. Por isso, o dinheiro que “dou” no supermercado não era meu no mesmo sentido em que a camisa é minha. Faz parte de um sistema colectivo de transacções que me atribui certos pontos, os tais euros, e garante a esses euros um valor convencional sem o qual de nada serviria “ter” dinheiro. O Estado ficar com 23%, 50% ou até 100% dos euros transaccionados tem impacto na economia mas não viola direitos de propriedade porque o dinheiro, enquanto tal, é um compromisso colectivo e não propriedade privada.

Este sistema de contabilizar transacções com marcadores abstractos e de valor meramente convencional é muito melhor para trocar coisas e guardar riqueza do que sal, conchas, pedaços de ouro ou tudo o que foi experimentado antes. E precisamente por ser mais eficiente como meio de troca e de reserva, agrava o problema da acumulação de riqueza. Os ricos sempre tiveram poder, mas quando a riqueza era hectares de terra ou barras de ouro a sua influência era localizada e tinham de alocar muitos dos benefícios a quem lhes mantivesse e protegesse a riqueza. Hoje podem ter milhares de milhões no banco que a sociedade encarrega-se de garantir que ficam à sua disposição, e uma dúzia de magnatas em Wall Street podem condenar dezenas de milhões de pessoas à fome, pelo mundo todo, só com os negócios que fazem (5). Quanto mais rico se for, mais influência se tem sobre o próprio sistema monetário e mais facilmente se aumenta a riqueza. Como este sistema é intrinsecamente instável, o papel mais importante do Estado tem de ser contrariar esta tendência. Ou seja, redistribuir o dinheiro.

O Henrique Monteiro aponta que os impostos financiam «coisas indispensáveis: saúde, reformas, educação, investigação, segurança, estradas... mas outras totalmente dispensáveis - burocracias várias, obras inúteis, sinecuras, subsídios duvidosos.» Concordo que o Estado deve financiar as primeiras, mas a ineficiência não é problema desde que espalhe pela maioria remediada o dinheiro recolhido dos mais ricos e evite fazer o contrário com coisas como as PPP, os submarinos, o BPN e as privatizações. Quanto ao «Cortem os impostos e verão a economia a recompensar essa medida», essa ideia é um perigo.

Cortar os impostos é cobrar menos aos mais ricos e, forçosamente, dar menos aos mais pobres. Este corte na redistribuição acelera o desequilibro da economia e da sociedade. Quanto menos apoio do Estado a maioria tiver, mais barato será o seu tempo e trabalho, menos capacidade terá para usar o sistema monetário em seu proveito e maior será a parte do bolo que fica para os que já têm muito. O coeficiente de Gini do rendimento disponível em Portugal, dos maiores da Europa, desceu até 2010 mas já voltou a subir, padrão que se repete nos outros países da austeridade como Espanha, Grécia e Irlanda (6). A preocupação com a magnitude dos impostos, a eficiência da economia e o ordenado do Ronaldo é desavisada quando se descura o problema mais sério. Cortar a redistribuição corta as possibilidades de quem tem menos usufruir da riqueza gerada por este sistema monetário, legal e social. Se este grupo, maioritário e cada vez maior, concluir que não já não tem possibilidades dentro do sistema, o problema não serão as minudências do défice, do PIB ou dos impostos que o Ronaldo paga. O problema será a Europa desatar toda à batatada. Como já aconteceu várias vezes, e por razões parecidas.

Uma vizinha da minha mãe, tendo perdido a válvula da panela de pressão, decidiu substituí-la por um pedaço de rolha. Sem o “imposto” regular sobre a pressão interna a cozedura tornou-se muito mais eficiente. Durante um tempo. Foi sorte não estar ninguém na cozinha quando o sistema, abruptamente, se reequilibrou.

1- Mário Valente, O Estado “Social”.
2- Wikipedia, List of countries by tax revenue as percentage of GDP
3- Jornal de Negócios, Finanças espanholas vão ganhar mais que Ronaldo com o seu novo contrato
4- Henrique Monteiro, Cortem os impostos (e serão recompensados)
5- The Independent, The real hunger games: How banks gamble on food prices – and the poor lose out
6- Eurostat, Gini coefficient of equivalised disposable income

domingo, agosto 18, 2013

Treta da semana: especial silly season.

Gonçalo Portocarrero de Almada lamenta que uma tal «dominante moda unissexo» tenha feito perder «a noção da riqueza específica da feminilidade e da masculinidade»(1). É provável que lhe escape a ironia desta preocupação vir de quem abdicou de qualquer relação sexual ou da possibilidade de ter filhos, visto que argumenta que homens e mulheres são fundamentalmente diferentes porque «Deus, quando criou o ser humano à sua imagem e semelhança, criou-o homem e mulher.» O raciocínio deve ser assim: Deus é três pessoas numa só substância; mesmo que as três pessoas de Deus sejam do género masculino, também pode ter duas imagens e semelhanças, uma de homem e outra de mulher, ao mesmo tempo que só tem uma, pois se três é um dois ainda mais facilmente o será; assim sendo, um padre é a melhor pessoa para falar sobre a «riqueza específica da feminilidade e da masculinidade». Se isto parecer não ter lógica nenhuma, melhor ainda. É um Mistério da Fé.

Talvez o Gonçalo se preocupasse menos com este problema se vivesse de forma mais plena a “riqueza específica” da sua masculinidade. Para combater o stress é uma maravilha. No fundo, o que apoquenta o Gonçalo, e muita gente da mesma linha ideológica, tem uma solução trivial. Eis como eu resolvo o suposto drama da alegada «confusão dos géneros». Sou do sexo masculino e sinto-me do género masculino. Gosto de mulheres, repugna-me a ideia de ter relações sexuais com um homem e não tenciono vestir saias nem depilar as pernas. Mas – e esta é a parte importante – se algum homem tiver gostos diferentes dos meus, estou-me nas tintas. Não tenho nada que ver com isso. Pronto, problema resolvido.

Mais interessante é o problema teológico que o Gonçalo inadvertidamente apresenta. Não é que seja especialmente interessante em si, mas estamos em Agosto e, seja como for, qualquer coisa é mais interessante do que preocupar-se com a orientação sexual de desconhecidos. Escreve o Gonçalo que «quando o Pai eterno enviou ao mundo o seu Filho, deu-Lhe uma mãe, Maria, e um pai, José. Graças à feminilidade da donzela de Nazaré e à masculinidade do carpinteiro da casa e família de David, Jesus «crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens». Graças à harmonia conjugada das salutares diferenças da «cheia de graça» e do varão «justo», Cristo não só é Deus perfeito, mas também perfeito homem.»

Perfeito homem. Masculino. Mas se a humanidade é composta por homens e mulheres e os sexos têm as suas “riquezas específicas”, então o Jesus perfeito homem não foi plenamente humano. Nem o Pai nem o Espírito Santo parecem fazer a mínima ideia do que é ser mulher. Esta lacuna na cobertura demográfica pode alienar parte do público feminino, um segmento de mercado cada vez mais importante agora que ser religioso é mais missas e “espiritualidade” e menos perseguir infiéis para roubar terras e viúvas, levando muitos homens a preferir o futebol. Assumir Maria como divindade será difícil, que quatro pessoas na mesma substância já começa a ficar apertado, mas talvez a própria «moda unissexo» que o Gonçalo lamenta possa ajudar o empreendimento católico. Conforme a sociedade se habituar à ideia de que a sexualidade humana é mais complexa do que a mera questão de ter ovários ou testículos, mais fácil será anunciar que o sexo de Jesus afinal era metafórico. Este truque de dizer "é metáfora" já safou a teologia de muitos embaraços. Nem é preciso especificar o que é que a metáfora representa. Criação em sete dias, apedrejar crianças, hemorróidas de ouro (2), se tudo isso pode ser metáfora, também o sexo de Jesus pode ser. O único senão é que teriam de deixar de implicar com os homossexuais. Mas a vida é assim, não se pode ter tudo...

1- I Online, Extinção dos Machos
2- 1 Samuel 6:17-19

sexta-feira, agosto 16, 2013

O mito da autoridade.

Comenta o Carlos Soares que eu não tenho «estaleca de cientista. O distanciamento, a objectividade, a imparcialidade, a neutralidade, o desinteresse, o desapego...»(1). Esta ideia está ligada à tese, muitas vezes defendida por apologistas religiosos, de que a fé é tão importante na ciência como nas religiões porque o fundamento de qualquer afirmação é sempre a confiança numa fonte autoritária. No caso da ciência, reza este mito, temos fé no cientista porque este é perfeitamente objectivo, imparcial e essas coisas. O que é obviamente treta. Não há gente assim. O grande forte da ciência é precisamente aceitar que todos temos paixões, interesses e pontos de vista subjectivos. Por isso, em vez da fé em alegações de quem se assume especial, prescreve a dúvida sistemática para filtrar os erros. Em ciência não se confia no cientista perfeitamente objectivo e isento. Exige-se é que o suporte das alegações não dependa de subjectividades, crenças ou interesses de quem as propõe.

Isto foi uma grande mudança. Durante milénios, o critério universal para apurar a verdade de qualquer alegação foi a autoridade da fonte. Ainda hoje, fora da ciência, é esta a regra. Dos pitagóricos aos cristãos e dos cientólogos aos astrólogos, o fundamental sempre foi ter o fundador mais santo ou o livro mais sagrado. A ciência é radicalmente diferente. Em vez de exigir a perfeição do praticante exige a descrição detalhada de como testou o que alega. Nenhuma encíclica papal, manual de astrologia, livro de dianética, evangelho ou sura descreve o método que usaram para obter aquelas conclusões de forma a permitir uma confirmação independente dos resultados. A ciência sujeita todas as alegações a essa verificação independente. Quando a Maya apresentou o seu novo método de tarot ou Pio XII afirmou que o corpo de Maria ascendeu fisicamente ao Céu, a comunidade dos respectivos fieis simplesmente aceitou que era verdade por vir de quem vinha. Em ciência não importa se a ideia vem de Einstein ou do Zé da Esquina; a sua avaliação não depende do mérito ou demérito da fonte.

Esta diferença entre a ciência e coisas como religiões, astrologias, vidências e afins é tão grande que devia ser facilmente reconhecida. Em ciência não se considera algo verdadeiro porque está escrito num livro ou foi dito pelo mestre. Escreve-se nos livros e ensina-se aquilo que passou suficientes testes para que, provisoriamente, mereça confiar-se que é verdade. No entanto, o sucesso desta abordagem criou um problema às tais “formas alternativas de conhecimento”. Por um lado, é contraditório dizerem-se amantes da “Verdade” sem terem qualquer método para testar o que defendem de forma independente das suas crenças. A desculpa de que estudam o transcendente, o inefável e o misterioso, e por isso não podem testar o que afirmam, não justifica depositar qualquer confiança nas suas teses. Por outro lado, também não podem avaliar os seus dogmas com o rigor que a ciência exige. Como a ciência procura a verdade, seja qual esta for, não tem problemas em rever ou descartar qualquer tese. É cada religião e superstição que assenta a sua identidade em dogmas pré-concebidos sem os quais deixa de existir. Não pode haver cientologia sem a crença nos textos de Hubbard nem cristianismo sem a crença na divindade de Jesus. Por isso, não podem avaliar os seus pressupostos sem a fé que depositam neles. Resta-lhes então tentar fazer parecer que a ciência é apenas mais uma fé, quando a ciência é precisamente aquilo com que resta quando se justifica as alegações sem recurso à fé.

O Carlos quer que os cientistas sejam santos da objectividade e desprovidos de paixão. Máquinas de calcular com braços, para garantir que se limitam a fazer contas e não opinam acerca de nada que possa contrariar o Carlos. Infelizmente para o Carlos, os cientistas são pessoas. Sentem, desejam, têm opinião e até exprimem o que pensam. Felizmente para todos, a ciência foi pensada tendo em conta a natureza humana e é por isso que funciona muito melhor do que qualquer treta que dependa de santos.

1- Comentário em Treta da semana (passada): escala.

segunda-feira, agosto 12, 2013

Treta da semana (passada): conflitos de interesses.

O Paulo Pereira de Almeida publicou no DN um post de opinião sobre a vídeo-vigilância. Segundo o Paulo, a vantagem de filmar tudo o que fazemos ficou demonstrada por dois exemplos dramáticos. «Para os paladinos de uma suposta defesa da privacidade, a resolução da investigação aos atentados de Boston, nos Estados Unidos da América, e ao recente e trágico acidente ferroviário, em Espanha, são uma derrota definitiva.Doravante, quem se pretende continuar a opor a uma regulação séria do assunto e tentar contrariar a difusão destes mecanismos de prevenção da criminalidade está, pois, e em definitivo, a ser cúmplice dos crimes que ocorram.»(1) Apesar de escrever disparates não ser crime, também não quero ser cúmplice disso. Portanto, tenho de apontar ao Paulo que, nos exemplos que ele escolheu, os sistemas de vídeo-vigilância não preveniram nada. Não é sequer plausível que a vídeo-vigilância previna atentados terroristas e descarrilamentos, nem tampouco são exemplos em que tenha resolvido a investigação. O FBI apenas publicou as fotos dos bombistas de Boston porque havia tantas imagens disponíveis, obtidas por cidadãos privados e publicadas na Internet, que já se andava a acusar pessoas inocentes. E os irmãos Tsarnaev nem foram identificados pelas imagens. Foram identificados pelo carro que usaram para raptar uma pessoa depois de matar um polícia (2). Quanto ao descarrilamento na Galiza, aqueles segundos de vídeo serviram para mostrar nos noticiários mas os detalhes importantes estavam na caixa preta do comboio e nos registos do sistema de comunicações e controlo de tráfego ferroviário.

Noutro exercício de auto-refutação, escreve o Paulo que aqueles «que defendem uma suposta perspetiva garantivista dos direitos e das liberdades, esquecendo, de caminho, que a liberdade de uns termina, como é sabido, onde começa a liberdade dos outros. Provavelmente - e ainda bem que assim é - tratar-se-á de cidadãos que verdadeiramente nunca foram confrontados com a situação limite de rapto de um familiar próximo, ou com uma ocorrência ou incidente de polícia e criminal mais grave.» É natural que uma pessoa que não goste de sair à noite e veja o seu carro vandalizado todas as manhãs seja a favor de um recolher obrigatório. Ou que quem receba ameaças por telefone seja a favor de que a polícia grave as conversas de toda a gente, para apanhar os culpados. Mas o mero interesse pessoal não torna legítimo aplicar medidas que afectam todos. Os muitos que não roubam, não raptam e não matam têm o direito de não serem constantemente tratados como suspeitos. O direito filmar e vigiar toda a gente acaba no direito de cada inocente a ser tratado como tal.

Mesmo pondo de parte os exemplos mal escolhidos e ignorando a questão dos direitos, a vídeo-vigilância generalizada é um desperdício. Pontualmente, as câmaras servem para dissuadir delitos menores como vandalismo em parques de estacionamento ou pequenos furtos em supermercados. Mas uma medida tecnológica que se derrota com um bigode postiço não afecta crimes mais sérios. O Reino Unido tem um sistema generalizado de vídeo-vigilância com, em média, uma câmara para cada 14 habitantes. Nos anos 90, 78% do orçamento da investigação criminal foi gasto em vídeo-vigilância. Ambos os relatórios do Home Office sobre o desempenho deste sistema, em 2002 e 2005, concluíram que a vídeo-vigilância generalizada não contribua para a prevenção do crime (3). Quanto à investigação de crimes ocorridos, a estimativa é de que se resolve um crime por ano, em média, por cada mil câmaras (4). A conclusão clara é que as centenas de milhões de libras que o Reino Unido gastou em vídeo-vigilância teriam sido melhor empregues no reforço dos polícias que andam nas ruas. Esses têm um papel comprovado na prevenção do crime. Mas aqui começam os conflitos de interesse.

Investir em mais e melhor polícia implica distribuir o dinheiro por muitos candidatos, em treino e salários, nenhum dos quais pode recompensar o decisor por esta medida. Em contraste, investir em equipamento permite adjudicar encomendas de milhões a uma empresa que pode pagar o favor a quem tomar tal decisão. Por exemplo, os chips nas matrículas, que supostamente eram uma medida de segurança, acabaram por ser uma excelente opção de carreira para o assessor que, depois de organizar as coisas do lado do Estado, passou a representar a empresa fornecedora em Portugal (5).

Estes conflitos entre os nossos interesses e os interesses de quem queremos que zele pelos nossos direitos devem ser a preocupação principal nestas medidas. Os poderes que já concedemos à polícia resultam de séculos de procura pelo equilíbrio entre o valor do que queremos defender, a necessidade de conceder poderes especiais a certas pessoas e a reserva com que podemos confiar nessas pessoas. É preciso ter sempre em mente que os polícias são tão humanos, tão falíveis e tão movidos pelos seus próprios interesses como qualquer outra pessoa, pelo que passar os limites já testados é arriscar abusos. Os sistemas de vigilância podem servir para apanhar ladrões, mas também para perseguir opositores políticos e activistas ou para lucrar com espionagem industrial. O incentivo para abusar é muito grande. Outro problema da vídeo-vigilância é que, enquanto não contribui para prevenir o crime, ajuda a manipular a percepção do crime. As imagens de um assalto violento assustam muito mais do que as estatísticas. Aqui temos um conflito de interesses fundamental. Quanto menor for a criminalidade, maior a preocupação dos cidadãos em evitar abusos de poder pelas forças policiais. Pelo contrário, se o crime parecer assustador, a tendência é para desculpar os atropelos. Isto é especialmente importante pela frequência cada vez maior com que usam o medo para nos convencer a abdicar dos nossos direitos. É preciso resistir a esta pressão porque a única justificação para termos leis, tribunais, polícia e prisões é para que protejam os nossos direitos, e nunca para que nos privem deles.

1- DN, O "big brother" venceu
. Obrigado ao João Vasco pela referência.
2- Wikipedia, Boston Marathon bombings
3- ACLU, What Criminologists and Others Studying Cameras Have Found
4-BBC (2009), 1,000 cameras 'solve one crime'
5- Expresso (2009), Ex-assessor do Governo vende chips para SCUT

sábado, agosto 10, 2013

Treta da semana (passada): escala.

Nós temos uma boa noção do tamanho de objectos próximos da nossa escala. Uma pessoa ao longe, um pombo, uma casa ou uma colina, por exemplo. Mas fora desta gama a imaginação falha-nos. A Lua tem três mil e quinhentos quilómetros de diâmetro mas a impressão que dá é de ter algumas centenas de metros ou poucos quilómetros. Uma montanha no céu, não mais do que isso. As “estrelas”, umas com milhões de vezes o tamanho da Terra e outras que até são galáxias, parecem pontinhos insignificantes. Mesmo sabendo o que são, não conseguimos que a imaginação lhes faça justiça. Por isso, é natural que nunca tenha ocorrido aos antigos a dimensão real do universo e que tenham concebido dualidades que, em retrospectiva, são ridículas. Por exemplo, o livro do Génesis começa «No princípio criou Deus o céu e a terra». Isto é várias ordens de magnitude mais disparatado do que dizer que criou um certo grão de areia e o resto do planeta. Nem é apenas uma questão de ignorância. É uma limitação cognitiva, porque mesmo sabendo como o universo é não conseguimos imaginar a enorme diferença de escala entre “cá em baixo” e “lá em cima”.

Isto vem a propósito de uma entrevista, na Revista 2 do Público, à Maria Flávia de Monsaraz, fundadora do “Quiron - Centro Português de Astrologia”. A entrevista desilude porque, perante afirmações como a de que a “Ciência Esotérica” «É a Ciência que rege a dimensão oculta do mundo e que infelizmente a maior parte das pessoas ignora. Ensina que a Vida é Una, Eterna, Indivisa e Incriada. Tudo isto são atributos de Deus. [...] Hoje, a Física Quântica já aceita que há um campo unitário que sustém toda a divisão, toda a unidade, todo o movimento», a jornalista limita-se a perguntas que mais parecem de um spot publicitário. «Nos últimos 26 anos, vem cumprindo uma missão de ensinamento no Quíron. É certo que os cursos são pagos, mas tanto quanto sei tem gerido a sua herança e o Quíron para conseguir cumprir esta missão. Mas é mesmo verdade que não cobra nada às pessoas que lhe pedem aconselhamento e ajuda?»(1). E se telefonar já receberá ainda duas extraordinárias facas de fruta.

Apesar desta ser, alegadamente, «a sua primeira grande entrevista», há outra no Sapo Astral. Talvez não seja “grande”, mas deprime menos por esse site não ter reputação que se manche com estas coisas. Nessa entrevista, Maria Flávia conta como «Sempre me guiei pelos livros que sempre me vinham parar às mãos» e dá-nos uma ideia do seu método de investigação: «Ao ler uma revista deparei-me, a dado momento, com um parágrafo que dizia que o Universo era Holístico, organizado em Sistemas, dentro de Sistemas, e que todos eles se correspondiam. Então pensei: se todos os Sistemas se correspondem, há realmente uma Ordem. É por aqui que eu vou perceber quem Sou. Esta foi uma descoberta fascinante»(2).

Subjacente a estas noções da astrologia, dos “Sistemas”, da vida ser una e o demais, está a ideia de que o que nos acontece aqui está ao nível do que acontece por outros planetas, estrelas e galáxias. Uma equivalência entre «a Mãe Terra e o Pai Céu». Segundo a Maria Flávia, Cristo ensina que «O Amor é a única vibração capaz de unir o Céu e a Terra em nós.» Tal como a astrologia, o cristianismo e demais religiões também dependem desta ilusão de que o universo é feito à nossa medida. No fundo, a ilusão de que as estrelas são pontinhos e que isto foi criado ontem para nós. A astrologia assume que os astros simbolizarem aspectos da nossa vida pessoal tem algum efeito, como se atribuir um significado a Júpiter ou a um padrão de estrelas tornasse os astros menos indiferentes às vicissitudes da nossa vida. As religiões assumem que isto foi criado de propósito, ou que o amor governa tudo, ou que tudo é uma consciência universal e assim por diante. Como se essas coisas passassem a ter alguma importância para o universo como um todo só por serem preciosas para nós.

A ciência é uma ferramenta conceptual que nos permite ir além da imaginação. Além da nossa escala. Permite lidar com quantidades que não conseguimos visualizar, como um nanossegundo ou um ano luz, especificar modelos que a nossa intuição não consegue interpretar, como a relatividade do tempo, e testar as hipóteses que daí deriva. Esta abordagem revelou um universo não só maior do que se imaginava mas maior e mais estranho do que é possível imaginar. Um universo indiferente ao que nos é mais querido – justiça, amor, propósito, sentido, felicidade e afins – e onde “o que está cá em baixo” não é o mesmo que “está lá em cima”, mas apenas um caso muito particular, pontual e, à escala das galáxias, sem impacto.

A “Ciência Esotérica” da Maria Flávia, tal como as teologias, gnosticismos e misticismos afins, apenas finge que o universo está à nossa escala. Tentar responder à pergunta pelo sentido disto tudo presume que o universo como um todo tem sentido ou propósito. Mas isso são coisinhas nossas. Parecem-nos importantes neste cantinho, durante as nossas breves vidas, mas desaparecem por completo à escala dos treze mil milhões de anos, dos milhões de galáxias e milhares de milhões de anos-luz. A ciência a sério, por testar hipóteses em vez de se limitar a acreditar nelas só porque vêm num livro, dá-nos uma imagem mais correcta da realidade. Mais desconfortável, é verdade, porque este universo é grande demais para nós. Mas é assim que as coisas são. Ironicamente, acusam a ciência de precisar deste complemento de misticismos por ser reducionista. Na verdade, a ciência é perfeitamente capaz de identificar propósito e sentido sem misticismos. Os arqueólogos e psicólogos fazem-no regularmente. Se o universo tivesse um propósito seria pela ciência, e não a ler revistas, que o encontraríamos. Estes misticismos é que são reducionistas porque precisam de assumir que o universo é apenas o quintal da Terra, criado para nós pela personificação de um Grande Chefe idealizado.

1- Estas coisas do Público só estão disponíveis a assinantes. Obrigado pelo email com a entrevista.
2- Sapo Astral, Entrevista a MARIA FLÁVIA DE MONSARAZ

domingo, agosto 04, 2013

Treta da semana (passada): política e a língua portuguesa.

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudónimo de George Orwell, morreu em 1950 com 47 anos. Em 1946 tinha escrito o ensaio Politics and the English Language(1), lamentando o desleixo linguístico dos políticos da sua época e as consequências desse desleixo não só para a sua língua como para a própria capacidade de raciocinar. Passaram quase sete décadas e continua tudo na mesma.

Um problema que Orwell apontou é o mau uso de metáforas. Qualquer língua é rica em metáforas mortas, como “nascer do Sol” e “Lua cheia”, que já não funcionam como metáforas porque adquiriram um significado convencional preciso. Nestas já nem se nota o carácter metafórico. No outro extremo, podemos usar uma metáfora para despertar a atenção para algum aspecto particular do que se discute. “Necrópole de Belém” em vez de “Palácio de Belém”, por exemplo. O problema está na gama intermédia de metáforas gastas que nem contribuem nada de novo nem têm um significado suficientemente convencional para passarem despercebidas. São chavões que poupam trabalho ao autor, que assim evita pensar no que quer dizer, mas que só contribuem para tornar vaga e enfadonha a mensagem.

José Ribeiro e Castro, deputado do CDS, tenta argumentar contra a co-adopção em casais homossexuais sem parecer homofóbico. Não conseguindo apontar problemas na co-adopção que derivem unicamente do sexo do co-adoptante, acaba por argumentar contra a co-adopção em geral, alegando ser desnecessário co-adoptar porque «existem na lei suficientes instrumentos jurídicos para prevenir qualquer abuso ou usurpação afectiva contrária aos desejos do pai ou da mãe da criança ou aos sentimentos do menor»(2). Sem especificar os instrumentos a que alude, tenta disfarçar o buraco no seu argumento com metáforas requentadas. A co-adopção em casais homossexuais não se deve «ao interesse da criança, mas a uma guerra de adultos. A discussão foi bem emblemática do dedo em riste, do início de uma perseguição contra a dita "homofobia"». A “guerra”, o “dedo em riste” e a “perseguição” não têm nada que ver com a co-adopção. Mas, talvez espere o autor, se enfadar o leitor com estes chavões pode passar despercebida a incoerência do argumento.

Além do copy-paste de metáforas, os políticos recorrem também à verborreia pela necessidade de preencher tempo de antena quando nada têm a dizer. O nosso Presidente é exímio nesta arte. No passado dia 21, conseguiu dizer “bem, então fica tudo na mesma” em mil e trezentas palavras. Para conseguir tal feito precisou de torturar o Português de várias maneiras. Por exemplo, em vez de usar um verbo específico como “concordar”, claro mas demasiado sucinto, combinou o verbo “alcançar” com substantivos para dizer o mesmo de forma mais vaga: «alcançar entendimentos alargados». Usou também palavras só para encher espaço. Por exemplo, em vez de um curto e claro “a médio prazo”, o nosso Presidente optou por «num horizonte temporal de médio prazo». Este “horizonte temporal” é um excelente exemplo de palha verbal. Uma passagem magistral, a ler e reler, é esta onde diz que o Governo deve estimular a economia e combater o desemprego: «Afigura-se igualmente fundamental que todo o Governo assuma como prioridade o reforço da aplicação de medidas de relançamento da economia e de combate ao desemprego.»

Infelizmente, este abuso da linguagem não é apenas uma forma ineficiente de transmitir ideias. Tentar explicar algo de forma clara e sucinta obriga a pensar bem no que se quer dizer, torna evidente incoerências e contradições, permite avaliar a relevância do que se defende e ajuda a melhorar as ideias que se pode melhorar e a rejeitar as que não têm emenda. A mera evacuação verbal, mesmo que prolífica, dificilmente dá algo que se aproveite. Além disso, este cancro espalha-se por todo o lado, desde o discurso do Presidente à burocracia do Estado e até ao supermercado que nos pede o favor de “utilizar a saída pelas caixas”. Utilizar a saída é sair. Já temos verbo para isso.

Dada a preocupação com a produtividade e a competitividade, uma boa medida seria eliminar da burocracia o contorcionismo verbal que agora é norma. Poupava-se tempo, quer a escrever quer a desenlear o texto, poupava-se papel e, sobretudo, eliminava-se a maioria dos disparates e mal-entendidos que atravancam a economia. O único senão é que esta opacidade ajuda a disfarçar incompetências e aldrabices, e enquanto forem os aldrabões e incompetentes a mandar não haverá interesse em acabar com isto.

1- George Orwell, Politics and the English Language.
2- José Ribeiro e Castro, Adopção e dualidade pai/mãe
3- Presidência da República Portuguesa, Comunicação ao País do Presidente da República