domingo, abril 28, 2013

Treta da semana (passada): o acordo.

Num depoimento apresentado ao grupo parlamentar de Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico, José Mário Costa, jornalista e coordenador do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, esclarece algumas «inverdades à volta do Acordo Ortográfico»(1). Aponta que é falso (“inverdadeiro”?) que o Brasil tenha adiado a aplicação do AO, que o AO complique o uso do hífen e que aumente o número de palavras com formas de escrita diferentes, e salienta que muitos meios de comunicação, instituições e até software já usam a nova ortografia. Porreiro. Parece-me que o José Mário Costa sabe o que diz e, ainda para mais, gosto imenso do site que ele coordena. Por isso, não me custa dar-lhe razão nestas coisas. Se este fosse um acordo entre académicos de vários países, dele resultasse um conjunto de recomendações e uma data de gente as seguisse por serem tão virtuosas como o José Mário Costa defende, provavelmente eu já o tinha adoptado, adotado e até adoçado de tanta adoção. Mas na defesa das virtudes académicas do AO o José Mário Costa acaba por salientar os seus piores defeitos.

Segundo cita o José Mário Costa, já em 1967 «alguns dos principais filólogos portugueses e brasileiros» consideravam conveniente uniformizar a ortografia: «Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica». Concordo. Até seria mais prático fazer como alguns fazem nos SMS e substituir os “qu” por “k”, usar acrónimos como LOL e WTF e assim por diante. Nem seria difícil arranjar regras para isso. O problema é que lá por algo ser convencional não quer dizer que se deva subordinar a convenção a um conjunto de regras. O significado das palavras, a gramática e até o simples facto de falarmos Português em vez de Inglês ou Russo são também fruto de convenção, mas não derivam de um conjunto de regras. A ideia parece ser termos um só dicionário, mas esquecem-se que o papel do dicionário é descrever o uso corrente da língua e não ditar como a língua se usa.

A minha primeira objecção ao AO é que não reconhece a ortografia como uma convenção do mesmo tipo da dicção, da semântica, dos gestos e dos costumes. Com legislação adequada é possível alterar estas convenções numa geração ou duas. Já o fizeram várias vezes com a ortografia. Reúne-se uns doutos ortógrafos, transcreve-se para lei as suas recomendações e o pessoal acaba por alinhar. Mas a língua é uma coisa viva e, como a história demonstra, volta e meia lá têm de inventar outra carrada de regras e incomodar o pessoal novamente só para fazer de conta que o dicionário manda em vez de descrever. O que determina a ortografia correcta, tal como a dicção e a semântica, é a forma como as pessoas usam a língua. Se as pessoas num certo sítio escrevem “acção” e o dicionário diz que se escreve “ação”, o dicionário está tão errado, para esse sítio, como se dissesse que “pardal” se escreve “sparrow”. São convenções, mas não é o dicionário, nem os linguistas nem o governo que determinam qual a convenção correcta. Somos todos nós, colectivamente. O que o AO pretende, no fundo, é que passemos todos a escrever de forma incorrecta na esperança de que essa se torne a forma correcta a tempo de a alterar novamente. Já no tempo do papel era duvidoso que valesse a pena este incómodo só para poupar nos dicionários. Hoje, com publicação electrónica e correctores ortográficos automáticos é uma parvoíce sem sentido nenhum.

Mas a minha objecção fundamental é outra. Escreve o José Mário Costa que «só daqui a três anos deixa de poder usar-se, no plano público, a ortografia [anterior, no Brasil e em Portugal]. Até lá, [...] a ortografia anterior continua a poder ser seguida por quem assim entender fazê-lo no seu uso pessoal.» Isto, para mim, é incompreensível. Nos próximos três anos vou poder seguir a ortografia que entender no meu uso pessoal. Muito bem. Mas depois acontece o quê? Serei castigado por escrever “acção” da mesma forma que agora me castigam se escrever “pharmácia”? O problema fundamental neste AO é o Estado transgredir os limites das suas competências legítimas. É verdade que já houve outros acordos desta natureza, mas o último que precedeu este de 1990 foi em 1945. O Estado era bem diferente nessa altura.

Em suma, a minha objecção a este AO não é uma objecção à ortografia proposta, acerca da qual não me pronuncio. Em parte, é a objecção à ideia destes linguistas de que mandam na língua que é de todos. Mas, principalmente, é a objecção a que um Estado democrático tenha o poder de regular a forma como os cidadãos escrevem.

1- Página da comissão e o documento, em pdf. Via ILC contra o Acordo Ortográfico.

sábado, abril 27, 2013

Adenda.

O post anterior, sobre a convergência dos contratos de trabalho entre o sector público e o privado, suscitou algumas objecções. Segundo o NG, é errado afirmar que os salários no sector público sejam determinados por decisão política porque «Os salários no sector público vêm da disponibilidade de dinheiro para os pagar.»(1) O erro aqui é imaginar que a quantidade de dinheiro é fixa pela realidade, como se fosse ouro. Em última análise, quanto dinheiro está disponível ao Estado, quanto dinheiro existe nesse Estado e o que é que conta como dinheiro nesse Estado são tudo decisões políticas. É verdade que a expansão monetária tem consequências na economia, mas os líderes políticos têm sempre uma escolha.

O Pedro F perguntou o que aconteceria se o mercado fosse invadido por médicos, tornando a oferta deste serviço muito maior do que a procura, e se isso não determinaria o salário dos médicos na função pública. Não. O preço médio da venda do trabalho de um médico no mercado iria diminuir, mas a opção do Estado de baixar os salários levando à substituição dos melhores médicos no sector público por médicos mais baratos, ou a opção de manter os salários para atrair os médicos melhores seria política. Nenhuma “força de mercado”, por si só, obrigaria a escolher uma em detrimento da outra. O Estado não está obrigado a dar lucro.

Tanto o Pedro F como o LL obstaram à minha afirmação de que não devemos facilitar o despedimento de funcionários públicos porque não se deve dar a funcionários públicos o poder de despedir. A objecção deles foi que dificultar o despedimento reduz o incentivo ao trabalho competente e dificulta a substituição de funcionários incompetentes que nunca deviam ter sido contratados. Não discordo destes problemas enquanto factores pontuais, mas o que importa é o efeito global e, nisso, estes acabam por ser factores menores. Quer no sector público quer no sector privado, o problema da contratação inadequada é combatido principalmente nos processos de selecção e com períodos experimentais. Se há contratação excessiva de incompetentes é por aí que se tem de começar. Tanto que a causa principal de despedimento no sector privado não é a descoberta súbita de que afinal o empregado é incompetente mas sim a redução na rentabilidade económica de comercializar o trabalho daquele empregado devido a variações no mercado. Como no sector público o factor determinante deve ser garantir que toda a população tem acesso a certos serviços e não garantir rendimentos aos accionistas, há menos razão para despedir no sector público do que no sector privado. Além disso, no sector privado os chefes têm incentivos financeiros para despedir subordinados incompetentes, como bónus por desempenho, comparticipação nos lucros e até acções da empresa, que dependem do sucesso da empresa, e o sucesso é facilmente medido pela rentabilidade económica. No serviço público não é assim. Não se pode avaliar o sucesso de serviços como escolas ou hospitais públicos pelo lucro, apesar de alguns tentarem, nem se consegue alinhar a ganância individual com o desempenho colectivo. Por isso, o poder de despedir na função pública terá menos utilidade mesmo quando bem usado, será mais prejudicial quando abusado e será muito mais usado ao serviço de interesses individuais e em prejuízo da organização. É claro que podemos apontar contra-exemplos aqui e ali, mas o que interessa não é colher cerejas. O relevante é que, em média, há diferenças significativas entre aquilo que motiva o dono de uma pequena empresa e o que motiva o chefe de repartição.

À parte destes aspectos de funcionamento e conflito de interesses, e independente deles, há também a questão da legitimidade para despedir. No sector privado há empregados e patrões. Há uma assimetria óbvia entre a pessoa que compra o trabalho dos outros e aqueles que lhe vendem o seu trabalho. Logo à partida, tem o direito de decidir se compra ou não compra, mesmo que esse direito seja limitado por contratos e legislação. Em contraste, no sector público não há patrões nem dono. São todos empregados e os administradores no topo da hierarquia são eleitos democraticamente. Ou, pelo menos, deviam ser. Sem um dono com a legitimidade para mandar em tudo, no sector público o poder de despedir é algo extraordinário e que exige um mandato específico dos eleitores. Se extrapolarmos para toda a função pública a pouca vergonha que se vê com os cargos de confiança política, é fácil perceber que não é do nosso interesse dar a funcionários públicos o mesmo poder sobre a administração do Estado que os empresários têm sobre as suas empresas.

PS: também a propósito da diferença entre público e privado: «Os gestores Carlos Santos Ferreira (antigo CEO do banco), Vítor Fernandes e António Ramalho (atual presidente da Estradas de Portugal), que saíram do BCP em fevereiro de 2012, receberam uma indemnização de 3,4 milhões de euros, equivalente ao que receberiam se ficassem até ao final do seu mandato.» (CM)

1- Comentários em Treta da semana (passada): a convergência.

domingo, abril 21, 2013

Treta da semana (passada): a convergência.

O nosso primeiro ministro quer «a aplicação de uma tabela salarial única, a convergência da legislação laboral e dos sistemas de pensões do sector público e privado»(1). A desculpa é a de que «o acórdão do Tribunal Constitucional põe grande ênfase na equidade», fingindo não perceber que a Constituição obriga o Estado a usar a força coerciva da lei de forma equitativa mas não o obriga a garantir que os contratos e remunerações são todos iguais. Mas o problema não é só com a desculpa.

Nalguns casos é óbvio o problema de tentar aproximar salários do público e do privado. Juízes, polícias, militares e fiscais das finanças, por exemplo, não têm homólogos no sector privado. Mas se pudessem exercer legalmente a sua autoridade a soldo de interesses privados ganhariam quase tanto como alguns políticos e ex-políticos. A convergência entre público e privado, nestes casos, seria desastrosa. Nos restantes casos o problema é menos óbvio mas igualmente grave. O salário no sector privado é determinado por quanto o empregador consegue vender esse trabalho e a fracção desse preço que o trabalhador consegue para si. Se os clientes gastam mais em operações plásticas os donos das clínicas têm mais lucro e os cirurgiões plásticos conseguir negociar um aumento no salário. Mas num hospital público isto não faz sentido porque o objectivo não é lucrar com o trabalho dos cirurgiões mas sim garantir cuidados de saúde mesmo a quem não os pode pagar. É certo que o salário no sector privado influencia as escolhas dos profissionais. O médico pode preferir ajeitar as mamas às dondocas em vez de tratar doenças sérias por uma fracção do ordenado. Mas isto é apenas um dos factores que afectam a qualidade do resultado para um certo investimento, a par com a educação, a burocracia, honestidade ou falta dela e muitos outros. Em última análise, quanto o Estado paga aos médicos pelo seu trabalho é uma decisão política. Não é uma mera função de oferta e procura. Por isso, se o Estado baixa os salários dos médicos é apenas porque decide investir menos no serviço público de saúde. Isto não tem nada que ver com o sucesso comercial dos implantes de silicone.

Uma consequência importante desta diferença é que os salários no sector público são muito mais justos. Uma universidade pública pode ter milhares de empregados, com muitos cargos diferentes e níveis de formação que vão desde o mínimo obrigatório até ao mais elevado do país. Mas enquanto os administradores de empresas privadas podem ganhar cem vezes mais do que o salário médio da empresa (2), o salário líquido do reitor é cerca de dez vezes o salário dos funcionários menos remunerados e o dobro do salário médio da universidade. Se alguma convergência é desejável será no sentido contrário ao que o Passos Coelho sugere.

Outra diferença que apontam como um defeito do sector público é a dificuldade em despedir funcionários públicos. Mas esta vantagem para os funcionários públicos é também uma vantagem para todos. Para todos os donos da empresa, por assim dizer. Numa empresa privada, o poder último de decidir quem fica ou sai pertence ao dono. Como o dono será um dos prejudicados se a empresa afundar não só tem um incentivo para não contratar o primo ou o amigo da filha em vez de um funcionário mais competente como também, por ser dono, a decisão será legitimamente dele e dos restantes accionistas. No Estado é diferente. Por um lado porque os burocratas em cargos administrativos que exerceriam o poder de despedir não teriam qualquer incentivo para preferir competência em vez de amizade ou conluio, e subordinados competentes ou demasiado honestos são sempre uma ameaça para chefes incompetentes ou corruptos. Por outro lado, ao contrário do que acontece na fábrica de detergentes ou na firma de contabilidade, isto no Estado prejudicaria toda a gente, tanto no sector privado como no público. A estabilidade do contrato na função pública não serve apenas para proteger o funcionário. Isso é até um efeito secundário. O seu papel principal é limitar o poder dos burocratas.

Esta ideia da convergência entre o público e o privado é mais um disparate perigoso da direita que, com a desculpa da austeridade, vai submetendo cada vez mais o bem público aos interesses de quem manda no sector privado. No sector privado a procura do lucro garante que quem tem dinheiro terá sempre onde o gastar para obter o que quer, o que é bom para essas pessoas e não é coisa que se consiga com planeamento central e burocracia. Por outro lado, o sector público garante que mesmo quem não tem dinheiro não fica privado do mínimo a que tem direito numa sociedade justa, e isso não se pode fazer com mecanismos de mercado ou pela maximização do lucro. Não pode haver convergência entre os dois porque enquanto os salários no sector privado vêm da venda do trabalho a quem pagar mais por ele, os salários no sector público vêm da decisão política de garantir certos recursos e serviços mesmo a quem não os pode pagar. São duas soluções opostas para dois problemas fundamentalmente diferentes e que não faz sentido misturar.

1- Sol, Passos quer aproximar salários do público e do privado
2- Expresso, Deco "chumba" empresas por salários astronómicos de administradores.

sábado, abril 13, 2013

Treta da semana (passada): constitucionalices.

Nos últimos dias tenho lido várias críticas ao Tribunal Constitucional por ter declarado inconstitucionais algumas medidas mais discriminatórias do Orçamento do Estado para 2013. Uma parte das críticas foca aspectos formais acerca dos quais não tenho opinião, como se o TC tem ou não legitimidade para propor alternativas ou se os juízes têm o direito de exprimir opiniões nos acórdãos. Mas isso também não importa porque são aspectos irrelevantes do acórdão. Só é consequente terem declarado inconstitucionais os artigos que visavam tirar dinheiro a alguns grupos de pessoas, com a justificação de não ser legítimo o Estado discriminar os contribuintes dessa forma. Os críticos, como o Henrique Raposo, discordam desta decisão mas as razões que apresentam deixam muito a desejar.

A primeira objecção do Henrique, mesmo antes da decisão do TC, foi de ser fútil declarar que «a realidade é inconstitucional»(1). Segundo o Henrique, a Constituição tem de se vergar perante a realidade de que é preciso austeridade. Como a receita da austeridade não é consensual entre os peritos, é questionável assumir que dar cabo da economia é a única forma de acertar as contas na Europa. Seria mais correcto chamar a isto opinião do que realidade. Mas mesmo concedendo este ponto ao Henrique, a crítica dele continua a falhar o alvo porque o TC não se está a pronunciar acerca da austeridade em si. Apenas está a julgar a forma como o Estado reparte os sacrifícios que exige. Infelizmente, não é inconstitucional enterrar a economia como desculpa para fazer negociatas com privatizações e resgates à banca. Mas é inconstitucional distribuir o esforço da austeridade discriminando alguns grupos profissionais para favorecer outros que dêem mais votos.

Reconhecendo, num post posterior, que o problema está na equidade dos sacrifícios que o Estado exige, o Henrique argumenta então que «não existe logo à partida qualquer equidade entre funcionalismo público e os restantes trabalhadores.»(2) O truque aqui é usar dois sentidos diferentes para “equidade”. É verdade que não há equidade entre trabalhadores se, por equidade, referirmos a igualdade de remuneração e condições contratuais. Há contratos muito diferentes, quer entre os sectores quer dentro de cada um, público ou privado, e mesmo que os do Estado sejam melhores do que muitos no sector privado também há contratos no sector privado muito melhores do que qualquer contrato que o Estado ofereça. A segurança do contrato de trabalho na função pública é uma coisa boa mas não tão boa como as indemnizações milionárias que alguns administradores no sector privado recebem. No entanto, em toda a desigualdade dos contratos de trabalho há uma equidade fundamental no sentido de serem todos acordos voluntários. Isso é igual para qualquer trabalhador, no sector público ou privado.

Os artigos no Orçamento do Estado pelos quais o Estado pode unilateralmente subtrair partes do salário a algumas pessoas, cobrar impostos e taxas e, basicamente, tentar fazer o que lhe der na telha sem o acordo dos visados são um bicho de outra raça. Não são acordos voluntários entre duas partes. São imposições legais de uma parte sobre a outra, e a equidade à qual a Constituição se refere não é a igualdade dos contratos que pessoas voluntariamente celebram entre si mas a igualdade de todos perante a lei. É nos impostos que o Estado cobra e nos cortes que o Estado impõe que importa exigir equidade.

Um papel importante da Constituição é limitar o poder coercivo do Estado. Uma restrição fundamental é a de que o Estado não pode usar esse poder de forma discriminatória. Isto não tem nada que ver com os contratos de trabalho celebrados voluntariamente entre empregados e empregadores. Desde que a Lei garanta que os contratos são celebrados de forma voluntária e respeitando os direitos das pessoas não há razão para exigir equidade. Não é preciso que todos recebam o mesmo salário, as mesmas garantias, as mesmas indemnizações ou a mesma reforma. Onde esta restrição importa é na forma como o Estado sacrifica os contribuintes. A forma justa e legítima é cobrar de acordo com o rendimento de cada um e não de acordo com o patrão que tem, o trabalho que faz ou, pior ainda, as regalias de outros que trabalham para o mesmo empregador. Por exemplo, o Henrique parece argumentar que os funcionários públicos devem pagar mais do que os trabalhadores do sector privado que tenham ordenados iguais porque «Os juízes do TC podem reformar-se após 10 anos de trabalho». Faria sentido defender por isto que os juízes do TC pagassem mais para a Caixa Geral de Aposentações mas não se justifica concluir daqui que os juízes do TC devam ficar sem subsídio de férias. Acima de tudo, não faz sentido que todos os funcionários públicos fiquem sem subsídio de férias por causa da idade com que a Assunção Esteves se reformou.

1- Henrique Raposo, A farsa do socialismo: a realidade é inconstitucional.
2- Henrique Raposo, Os juízes do TC podem reformar-se após 10 anos de trabalho

sábado, abril 06, 2013

Treta da semana (passada): argumentação criacionista.

Os posts do Mats sobre criacionismo são, por norma, disparatados, com tretas que vão desde defender que «Deus criou o universo em seis dias de 24 horas há alguns milhares de [anos] atrás»(1) a propor que nos fósseis de dinossáurios «existem evidências paleontológicas de que um arranjo craniano pode ter acomodado a capacidade de “respirar o fogo”»(2). Mas um da semana passada pareceu-me excepcional por defender que a origem de espécies novas pela acumulação de mutações não é evidência a favor da teoria da evolução (3). Deu-me vontade de avisar a Priberam de que «Tolice; despropósito, desatino; absurdo»(4) já não bastam para definir “disparate”.

O insólito deste post do Mats começa pela admissão de que «A especiação é o fenómeno natural através do qual novas espécies (ou variedades) do mesmo tipo de animal são formadas» e que «A especiação é o mecanismo principal responsável pela diversificação dos tipos de plantas e animais». Ou seja, é um fenómeno natural comum e causa da diversidade que observamos nos seres vivos. Isto é estranho num criacionista porque o criacionismo depende crucialmente da premissa de que «A especiação não produzirá estruturas biológicas radicalmente dissimilares, resultando num animal totalmente diferente». Sem isto, o criacionismo desaparece. Mas é preciso explicar porque é que a acumulação de pequenas diferenças em cada geração não pode, dado tempo suficiente, resultar em estruturas biológicas muito diferentes das estruturas de um antepassado distante.

O argumento mais persuasivo dos criacionistas é o da reprodução: se surge um animal muito diferente não é capaz de encontrar parceiro para se reproduzir. Se a audiência não estiver suficientemente inteirada do assunto para saber que a evolução é um processo de populações e não de indivíduos, isto pode convencer. Daí a afirmação do Mats, há uns tempos, de que «Do ponto de vista Bíblico, tipo são aquelas formas de vida que podem produzir descendência. […] Finalmente, sim, existem limites para a variação genética. Por mais que se cruze gatos com gatos, eles vão sempre dar à luz gatos» (5). Se o Mats agora admite que uma população se pode separar da sua espécie e tornar-se tão diferente da forma original que já nem possa haver cruzamentos férteis entre essas populações deixa de haver qualquer justificação para a premissa de que a divergência está limitada ao mesmo “tipo”, às mesmas «formas de vida que podem produzir descendência».

Esta admissão do Mats também refuta o argumento da informação, que o Mats apresenta como «O problema é que nem toda a mudança é evolutivamente relevante visto que a teoria da evolução requer um tipo específico de “mudança” – uma que aumente a informação genética da forma de vida.» Esta afirmação é falsa. A noção de informação que o Mats aqui invoca foi publicada pela primeira vez em 1948, por Claude Shannon, um século depois do livro mais famoso de Darwin que, talvez seja pertinente lembrar, se chamava «Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural ou a Preservação de Raças Favorecidas na Luta pela Vida» e não tinha nada sobre evolução por aumento da informação genética da vida, ou coisa que o valha. A evolução é a variação na distribuição de características hereditárias em populações ao longo do tempo, a teoria da evolução é a explicação dos mecanismos responsáveis por essas variações e a única coisa que o Shannon tem que ver com isto é a sua dissertação de doutoramento, «An algebra for theoretical genetics», onde curiosamente não notou que a evolução fosse impossível (7).

Além da evolução não pressupor qualquer aumento de informação, ao admitir a especiação o Mats dá um exemplo claro desse aumento que diz ser impossível. Num momento temos apenas a espécie A e, mais tarde, por um processo natural de especiação, temos a espécie A mais a espécie nova B, suficientemente diferente de A para que nem se possam cruzar. Por muito que o Mats queira menosprezar a informação em B, é evidente que há mais informação no conjunto das duas espécies do que havia só na primeira. Se o Mats admite que isto é possível por processos naturais admite necessariamente que processos naturais podem aumentar a “informação genética da vida”.

Em suma, neste post o Mats dedica-se à tarefa inglória de demonstrar que o facto da especiação ocorrer por processos naturais contradiz a teoria de que as espécies surgem por processos naturais e suporta a crença na criação divina das espécies. Em termos de estilo de argumentação e de solidez das inferências, este post do Mats enquadra-se perfeitamente na categoria de facepalm.

1- Mats, Porque é que os Cristãos rejeitam a importância dos dias de Génesis?
2- Mats, Os dragões que cospem fogo. 3- Mats, A especiação confirma a teoria da evolução?

4- Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, disparate

6- Mats, Resposta ao Ludwig: Criacionistas Evolucionistas?. 7- MIT, An algebra for theoretical genetics.