Treta da semana (passada): o acordo.
Num depoimento apresentado ao grupo parlamentar de Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico, José Mário Costa, jornalista e coordenador do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, esclarece algumas «inverdades à volta do Acordo Ortográfico»(1). Aponta que é falso (“inverdadeiro”?) que o Brasil tenha adiado a aplicação do AO, que o AO complique o uso do hífen e que aumente o número de palavras com formas de escrita diferentes, e salienta que muitos meios de comunicação, instituições e até software já usam a nova ortografia. Porreiro. Parece-me que o José Mário Costa sabe o que diz e, ainda para mais, gosto imenso do site que ele coordena. Por isso, não me custa dar-lhe razão nestas coisas. Se este fosse um acordo entre académicos de vários países, dele resultasse um conjunto de recomendações e uma data de gente as seguisse por serem tão virtuosas como o José Mário Costa defende, provavelmente eu já o tinha adoptado, adotado e até adoçado de tanta adoção. Mas na defesa das virtudes académicas do AO o José Mário Costa acaba por salientar os seus piores defeitos.
Segundo cita o José Mário Costa, já em 1967 «alguns dos principais filólogos portugueses e brasileiros» consideravam conveniente uniformizar a ortografia: «Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica». Concordo. Até seria mais prático fazer como alguns fazem nos SMS e substituir os “qu” por “k”, usar acrónimos como LOL e WTF e assim por diante. Nem seria difícil arranjar regras para isso. O problema é que lá por algo ser convencional não quer dizer que se deva subordinar a convenção a um conjunto de regras. O significado das palavras, a gramática e até o simples facto de falarmos Português em vez de Inglês ou Russo são também fruto de convenção, mas não derivam de um conjunto de regras. A ideia parece ser termos um só dicionário, mas esquecem-se que o papel do dicionário é descrever o uso corrente da língua e não ditar como a língua se usa.
A minha primeira objecção ao AO é que não reconhece a ortografia como uma convenção do mesmo tipo da dicção, da semântica, dos gestos e dos costumes. Com legislação adequada é possível alterar estas convenções numa geração ou duas. Já o fizeram várias vezes com a ortografia. Reúne-se uns doutos ortógrafos, transcreve-se para lei as suas recomendações e o pessoal acaba por alinhar. Mas a língua é uma coisa viva e, como a história demonstra, volta e meia lá têm de inventar outra carrada de regras e incomodar o pessoal novamente só para fazer de conta que o dicionário manda em vez de descrever. O que determina a ortografia correcta, tal como a dicção e a semântica, é a forma como as pessoas usam a língua. Se as pessoas num certo sítio escrevem “acção” e o dicionário diz que se escreve “ação”, o dicionário está tão errado, para esse sítio, como se dissesse que “pardal” se escreve “sparrow”. São convenções, mas não é o dicionário, nem os linguistas nem o governo que determinam qual a convenção correcta. Somos todos nós, colectivamente. O que o AO pretende, no fundo, é que passemos todos a escrever de forma incorrecta na esperança de que essa se torne a forma correcta a tempo de a alterar novamente. Já no tempo do papel era duvidoso que valesse a pena este incómodo só para poupar nos dicionários. Hoje, com publicação electrónica e correctores ortográficos automáticos é uma parvoíce sem sentido nenhum.
Mas a minha objecção fundamental é outra. Escreve o José Mário Costa que «só daqui a três anos deixa de poder usar-se, no plano público, a ortografia [anterior, no Brasil e em Portugal]. Até lá, [...] a ortografia anterior continua a poder ser seguida por quem assim entender fazê-lo no seu uso pessoal.» Isto, para mim, é incompreensível. Nos próximos três anos vou poder seguir a ortografia que entender no meu uso pessoal. Muito bem. Mas depois acontece o quê? Serei castigado por escrever “acção” da mesma forma que agora me castigam se escrever “pharmácia”? O problema fundamental neste AO é o Estado transgredir os limites das suas competências legítimas. É verdade que já houve outros acordos desta natureza, mas o último que precedeu este de 1990 foi em 1945. O Estado era bem diferente nessa altura.
Em suma, a minha objecção a este AO não é uma objecção à ortografia proposta, acerca da qual não me pronuncio. Em parte, é a objecção à ideia destes linguistas de que mandam na língua que é de todos. Mas, principalmente, é a objecção a que um Estado democrático tenha o poder de regular a forma como os cidadãos escrevem.
1- Página da comissão e o documento, em pdf. Via ILC contra o Acordo Ortográfico.