domingo, fevereiro 24, 2013

Treta da semana: o caso Relvas.

O Miguel Relvas foi ao ISCTE falar sobre jornalismo a convite da TVI. Alguns alunos, que a TVI não convidou para falar, vaiaram o ministro, gritaram e pediram que se demitisse. Após uns momentos de sorriso amarelo, o ministro foi-se embora (1). Para Santos Silva isto foi inaceitável, anti-democrático e uma «limitação ilegítima à liberdade de expressão»(2). Daquele que tinha sido convidado para subir ao pódio, é claro, que a liberdade dos outros era a de ouvir em silêncio. Segundo o líder parlamentar do PSD «Portugal precisa de políticas e políticos livres [que] gritam livremente pelas suas ideias» e o do CDS reforçou que «o direito de falar é um direito absoluto, mas não tão absoluto que iniba os outros de falar» (3). A conclusão óbvia destas premissas é que quando o Miguel Relvas fala os estudantes devem ficar inibidos de gritar livremente pelas suas ideias. Numa democracia, quem grita livremente são os políticos, não o povinho.

O Henrique Raposo ainda vai mais longe. Escreve que os «meninos e meninas [que] têm usado "Grândola Vila Morena" como forma de calar outras pessoas [...] revelam uma total intolerância em relação ao outro lado; [...], respiram e transpiram ódio, um ódio que escorre pelos cartazes, pelos rostos, pelas vozes. E, de forma mui fascista, esta malta tem orgulho nesse ódio»(4). Certamente que o fascismo aqui é uma alusão à táctica da PIDE de vaiar e apupar os detractores de Salazar que discursassem contra o governo, em universidades públicas, a convite de canais privados de televisão. Ou talvez até aluda à Alemanha nazi, quando agentes da Gestapo trauteavam Wagner sempre que alguém discursava contra Hitler perante a comunicação social.

Subjacente a este repúdio do protesto dos estudantes está a violação da liberdade de expressão. O Miguel Relvas tinha ideias importantes para exprimir. O Miguel Relvas foi ao ISCTE exprimir essas ideias e, certamente, muita gente as queria ouvir. Afinal, trata-se de um estudioso que consegue dominar num par de dias matérias que o estudante médio demora cinco anos a aprender. Fascistas, não o deixaram falar. O Miguel Relvas perdeu assim a única oportunidade que alguma vez terá de dizer o que pensa, e nós todos ficaremos para sempre privados da sua sabedoria. Se fosse preso, torturado ou até morto numa prisão oculta, ao menos ainda poderia escapar-se alguma obra sua que nos transmitisse o seu pensamento. Um ensaio sócio-político, um diário ou até um trabalho de fim de curso. Mas não. Nada de censurar com prisão, tortura ou morte, coisas de fascismo amador e ditaduras de meia-tigela. Estes estudantes do ISCTE são da raça fascista mais violenta e perigosa, aquela que grita “demissão!”, “a propina dói!” e chega até a cantar músicas do Zeca Afonso. Nem sequer Wagner. É logo Zeca Afonso.

Sobretudo, os estudantes foram mal educados. Não é assim que se resolve os problemas. Quando um governo afunda o país, ignora tudo o que prometeu para ser eleito e vende os bens do Estado ao desbarato, a forma correcta de intervenção é pôr o dedo no ar e esperar em silêncio que o Miguel Relvas ceda a palavra. Afinal, o Miguel Relvas só abandonou a carreira académica e dedicou-se ao poder político, a grande custo pessoal e financeiro, pela sua enorme vontade de servir o próximo e de zelar pelos nossos interesses. Por isso, há que confiar, dizer com licença e agradecer no fim.

1- Sol, Relvas vaiado impedido de falar
2- TVI, «É inaceitável que um ministro seja impedido de falar»
3- I online, Maioria condena censura a Relvas. Oposição rejeita demarcar-se
4- Henrique Raposo, O fascismo do "Grândola Vila Morena"

segunda-feira, fevereiro 18, 2013

Treta da semana (passada): a factura.

A alteração do código do IVA, que entrou em vigor em Janeiro, torna «O adquirente dos bens ou serviços tributáveis […] solidariamente responsável com o fornecedor pelo pagamento do imposto» (1). Muita gente já apontou a burrice que é quererem fiscalizar as facturas à saída da pastelaria ou do cabeleireiro, com alguns até sugerindo que os fiscais “tomem”, em certo sítio, algo não especificado. Não é preciso apontar os problemas de implementação desta medida. Ainda assim, apeteceu-me escrever sobre a burrice mais fundamental. Mas passo primeiro pela Índia.

A corrupção na Índia é um problema ainda maior do que cá. Talvez não tenham corruptos maiores, mas têm mais dos pequenos. Kaushik Basu, economista e conselheiro do ministro das finanças indiano, propôs em 2011 que se despenalizasse o acto de subornar, em certos casos, e até se restituísse o suborno ao corruptor activo se este fizesse queixa. Só o subornado seria punido (2). Pode não parecer justo – e, por isso, a proposta restringia-se a casos em que o suborno fosse exigido por algo a que o subornador teria direito – mas podia ser uma boa medida por quebrar a relação de confiança entre as partes. Se ambos cometem um ilícito, então ambos têm um incentivo para não denunciar. Mas se um até pode beneficiar da denúncia será muito difícil obter a confiança do outro. Sem essa confiança, não haveria suborno.

O IVA tinha esta propriedade de dificultar a cooperação na fuga ao imposto. O comprador podia evitar o IVA pedindo para não lhe passarem factura mas, assim, o vendedor arriscava uma multa sem ter muito a ganhar, visto não pagar mas também não receber aquela porção. E se o vendedor evitasse passar factura para ficar com o IVA o comprador saberia que era o comerciante que lhe ficava com o imposto. Numa sociedade justa, na qual todos percebem a necessidade de contribuir para o erário, a tendência natural seria a de reagir contra a chico-espertice de meter ao bolso os impostos pagos pelos outros.

Portugal, no entanto, não é uma sociedade justa. O governo cede a privados a infraestrutura que pagámos com os nossos impostos para depois aqueles lucrarem cobrando-nos bens e serviços essenciais em regimes de monopólio. Os políticos responsáveis pelas privatizações e parcerias afins saem do governo para ganhar ordenados chorudos nos “conselhos de administração” dessas empresas. Parte dos impostos serve para nacionalizar negócios fraudulentos de bancos privados e pagar pensões milionárias aos ex-gestores de bancos salvos pelo dinheiro público enquanto outra parte vai-se em juros de empréstimos contraídos à banca para salvar a banca das suas próprias asneiras.

Neste contexto, quando o senhor do café serve a bica sem factura é muito difícil sentirmo-nos do lado do Estado e exigir ao homem que cumpra o seu dever fiscal. A tentação é pensar porra, se tenho de pagar mais 23% que seja ao tipo que prepara o café em vez dos chulos que engordam levando-me o resto. Pode não ser a atitude mais correcta ou racional mas é a vontade que dá. E esta alteração ao código do IVA torna a situação ainda pior. O que a lei diz, na prática, é que ou aceitamos trabalhar de borla como fiscais das finanças ou nos consideram cúmplices da evasão fiscal. Bela escolha.

Ao que parece, a corrupção incentiva a evasão fiscal (3). A percepção de que o dinheiro taxado não é aplicado em benefício de todos mas apenas para proveito de alguns agrava a tendência para fugir ao fisco e torna essa tendência mais sensível aos aumentos de impostos. Leis como esta, ao contribuir ainda mais para essa percepção de injustiça e abuso por parte do Estado, só agravam a situação. Ainda por cima, é uma ameaça vazia. Talvez apanhem alguns infelizes com mais azar mas, estatisticamente, a probabilidade de ser multado por não pedir factura é provavelmente inferior à de ser atropelado a atravessar a rua e certamente menor que a de ficar sem emprego pela recessão que o governo está a causar. O resultado mais provável desta burrice é uma evasão fiscal ainda maior do que haveria se não a tentassem combater desta forma.

1- Artigo 79º do Decreto-Lei n.o 197/2012 de 24 de agosto (pdf).
2-Economist, Who to punish
3- IMF Workin Paper, Maksym Ivanyna, Alexandros Mourmouras, and Peter Rangazas, The Culture of Corruption, Tax Evasion, and Optimal Tax Policy (pdf).

sexta-feira, fevereiro 15, 2013

Um acidente histórico.

Muitos confundem os direitos de autor com o monopólio sobre a cópia e, talvez por isso, assumem que o monopólio é justo. Esquecem que os direitos do autor incluem o direito de criar incorporando aquilo que outros fizeram antes; o direito de aprender; o direito de partilhar; o direito de se exprimir e de participar na cultura, que é a soma das obras criadas por todos, e que o monopólio legal sobre a cópia põe esses direitos em causa. Esquecem também que este monopólio, o copyright, raramente fica para o autor. E têm de assumir que o trabalho do autor é fundamentalmente diferente do trabalho de qualquer outra pessoa, porque só assim poderia este monopólio ser justo. O autor tem o direito a ser remunerado quando outros usam aquilo que ele criou enquanto o cabeleireiro, o cozinheiro e o matemático apenas recebem quando trabalham e somente se alguém tiver prometido pagar-lhes. O autor pode restringir os direitos de propriedade de terceiros para proteger o seu negócio enquanto o carpinteiro, o sapateiro ou o pedreiro não retêm quaisquer direitos pós-venda sobre o que criam nem podem restringir a terceiros o uso de pregos, cola e cimento. O autor tem direito a um monopólio porque é assim que ganha dinheiro mas qualquer outro que precise de monopólios para ganhar dinheiro tem apenas o direito de mudar de negócio ou de abrir falência. O trabalho do autor tem de ser algo muito especial e extraordinário.

Uma falha nesta doutrina do sagrado trabalho do autor é não haver qualquer forma consistente de distinguir entre autores e restantes mortais. Quem apresenta uma sequência nova de notas musicais é autor mas quem apresenta uma sequência nova de jogadas de xadrez já não é. Logo no primeiro artigo, o CDADC exclui explicitamente «As ideias, os processos, os sistemas, os métodos operacionais, os conceitos, os princípios ou as descobertas». Ou seja, legalmente, a Endemol é mais “autor” da Casa dos Segredos do que o Einstein é da teoria da relatividade. Além disso, mesmo que houvesse algum fundamento racional para distinguir entre o trabalho dos autores e o trabalho dos outros, faltava ainda justificar o enorme privilégio que o copyright concede aos primeiros. Dos vossos aparelhos electrónicos, provavelmente o único não podem legalmente modificar é a consola de jogos, por causa dos sistemas de protecção contra cópia. Desde que não façam barulho a más horas nem ponham terceiros em risco podem fazer o que quiserem na privacidade do vosso lar. Excepto copiar certos ficheiros. Têm o direito de trocar com outros a informação que quiserem. Excepto partilhar certos ficheiros. O copyright dá ao “autor”, que raramente é o autor, um poder para se intrometer na nossa vida que nunca aceitaríamos conceder a mais ninguém. Ao contrário do que muitos assumem, não há justificação ética para este monopólio. Como qualquer monopólio, o copyright é injusto. É apenas um acidente histórico que ocorreu quando o progresso tecnológico inverteu o efeito da lei.

Hoje, os monopólios sobre a cópia só existem por força da lei. Sem a lei, toda a gente copiava o que quisesse. Mas a lei não surgiu hoje. O copyright como o conhecemos tomou forma no século XIX, quando o monopólio era uma realidade com a qual a lei tinha de lidar devido à tecnologia e à indústria da altura. O poeta, o escritor e o compositor não tinham forma de levar as suas obras ao público sem os industriais da impressão e da distribuição. Quando a Convenção de Berna para a Protecção de Obras Literárias e Artísticas, em 1886, declarou ser do autor o monopólio sobre a cópia não estava a criar um monopólio para o autor. Estava apenas a dar ao autor algum poder sobre esse monopólio que, na realidade, já existia e que não havia meio de eliminar. E a justificação ética para esta medida é precisamente o contrário daquilo que hoje julgam ser: é a do trabalho do autor ser tão merecedor de consideração como o trabalho de qualquer outro. Nem mais, nem menos.

O problema que alguns autores enfrentavam nessa altura era o facto, independente da lei, de só poderem vender o seu trabalho por intermédio de quem tinha capacidade industrial para copiar e distribuir material impresso. Ao contrário de autores como cientistas, cozinheiros, jardineiros ou carpinteiros, os poetas e compositores estavam basicamente tramados. Para chegar a quem lhes pagasse tinham de passar pelos editores que, sendo já então como são hoje, ficavam com tudo o que podiam. O que, nessa altura, era tudo mesmo. Para mitigar este problema criou-se uma lei que melhorava a posição negocial daqueles autores que dependiam da cópia de material impresso concedendo-lhes direitos sobre o monopólio que, por mais injusto que fosse, existiria com ou sem a lei por força da tecnologia de então*.

Conforme a indústria da cópia foi evoluindo, este problema foi alastrando para outros meios como discos, cassetes, salas de cinema, rádio e televisão. Mas o problema era o mesmo. Havia um monopólio, de facto e não apenas de jure, e a lei era necessária para compensar essa injustiça e dar aos autores daquelas obras algum poder para negociar o preço do seu trabalho. Não por serem mais autores do que os outros, mas por precisarem da cópia industrial. Os compositores, mas não os filósofos. Os poetas, mas não os matemáticos. Os músicos, mas não os cozinheiros. Uns estavam subordinados ao monopólio da distribuição e precisavam de ajuda legal para que, como qualquer trabalhador, pudessem negociar o preço do seu trabalho.

Agora não há monopólio de facto. Só de jure. Mas o fundamento ético mantém-se. Todos têm os mesmos direitos, o trabalho de todos é igualmente digno e merecedor e os monopólios continuam a ser uma injustiça. Por isso, agora que nenhum autor está dependente do monopólio sobre a cópia industrial, ser contra o copyright não é ser contra os direitos dos autores. É ser a favor dos direitos de todos os autores e de todos os que virão a ser autores.

* Em rigor, a origem deste monopólio não era apenas tecnológica. Também se devia a factores económicos, à organização dos editores e até de outros monopólios legais que já vinham de trás, de quando a concessão de direitos exclusivos de impressão era uma forma de censura governamental e nada tinha que ver com direitos de autor. Uma excepção foi a Alemanha no início do século XIX, onde a fragmentação política e a proliferação de pequenos editores resultou numa situação em que o monopólio era muito fraco, o que foi muito benéfico para os autores, para o público e para a cultura mesmo sem legislação nenhuma (ver este artigo). No entanto, na generalidade dos países industrializados os editores tinham a faca e o queijo na mão e era esse o problema que tinha de ser mitigado.

domingo, fevereiro 10, 2013

Treta da semana: o direito do Tim.

O Comendador António Manuel Lopes dos Santos, mais conhecido por Tim, é músico. Talvez por isso tenha, segundo o próprio, direitos específicos que não se estendem a muggles como nós. Nomeadamente, o direito de receber dinheiro sempre que um não artista compre um disco rígido ou cartão de memória. É por esta razão que pede a nossa «ajuda para o combate à campanha de desinformação que chama cobrança de uma TAXA à cobrança de um DIREITO.»(1) Antes de atender ao apelo do Tim, e parafraseando Shakespeare enquanto é de graça, gostava de apontar que aquilo a que chamamos taxa, ainda que com outro nome, tresandaria à mesma. Mas foquemos então a desinformação e o fundamento desse DIREITO tão maiúsculo do Tim: «O autor tem direito a ser remunerado pela utilização da sua obra.»

Este princípio de remunerar a utilização da obra é problemático. Por exemplo, nem o seu mais acérrimo defensor se sentirá obrigado a pagar-me por ter lido este post ou defenderá uma taxa – ou um “DIREITO” – sobre a venda de chuveiros pela possibilidade de se cantar no duche. Evidentemente, o dever de remunerar só surge em alguns casos. Tal como acontece com este outro princípio, até menos polémico: todo o trabalhador tem o direito a ser remunerado pelo seu trabalho. Aplica-se se eu contratar alguém para me aspirar a casa ou fazer o jantar mas não se aplica se for eu a fazer esse trabalho por minha iniciativa e sem contrato prévio. O dever de remunerar, como princípio geral, e seja pelo que for, pressupõe um acordo voluntário entre a parte que remunera e a parte remunerada.

Mesmo quando o propósito é comercial. O Tim conta «um episódio com um pirata»(3) que, em 1988 no Luxemburgo, vendeu 18.000 cassetes dos Xutos sem lhes pagar nada. Copiou as músicas de um disco comprado por um primo, encomendou as cassetes em França, tratou da distribuição e meteu o dinheiro ao bolso. Pirataria, pois claro. Mas o Tim faz o mesmo. Quando compra uma guitarra paga uma vez e não dá mais satisfações ao fabricante. A guitarra é sua e não sente qualquer dever de repartir com o criador dessa obra o rendimento dos concertos ou das vendas dos discos. No entanto, não é claro porque que é que comprar um disco feito por outrem e usá-lo para ganhar dinheiro há de implicar um dever de remuneração diferente de fazer o mesmo com uma guitarra, outro instrumento ou qualquer ferramenta.

Alguns dirão que é diferente por causa da cópia. Realmente, a taxa que nos querem cobrar é pela cópia privada e não pelo uso. Mas isto não explica porque é que um DJ, além de comprar os discos, tenha também de pagar cada vez que os toca em público enquanto o músico só paga os instrumentos uma vez toque-os onde os tocar. Não parece haver qualquer princípio geral ou critério minimamente razoável que justifique esta diferença. Além disso, se vamos assumir que a questão é a cópia e não o uso, então o direito que o Tim teria de invocar é o direito de proibir os outros de copiar ou de ser remunerado se o fizerem. Esse ainda é mais problemático do que o alegado direito de ser remunerado pelo uso, razão pela qual poucos defensores desta posição têm a honestidade de começar logo por aí. É que se eu compro um computador, CD graváveis, cartões de memória e essas coisas, o Tim tem tanta legitimidade para dizer o que eu posso ou não posso fazer com a minha propriedade como o fabricante da guitarra do Tim tem para lhe dizer que músicas pode ou não pode tocar. Cada um manda nas suas coisas. Nem tão pouco faria sentido o fabricante de guitarras dizer que só vende a guitarra como suporte físico e licenciar as notas à parte cobrando conforme o número de pessoas que as ouve.

Muita gente criticou o Tim por confundir pirataria com cópia privada porque a taxa, dizem os críticos, nada tem que ver com downloads, partilha de ficheiros e afins. É uma crítica ingénua. O conceito de “pirataria” é propositadamente vago, cobrindo tudo o que der jeito aos detentores dos monopólios e deixando sempre dúvidas acerca do que podemos fazer. Por exemplo, não é claro se copiar um CD emprestado é cópia privada ou pirataria. Também é evidente que a motivação para exigirem esta taxa não é apenas a possibilidade de se comprar um ficheiro mp3 e copiá-lo do computador para o leitor portátil. Mas o mais fundamental é que a taxa pela cópia privada assenta na mesma premissa absurda em que assenta a condenação da pirataria. A premissa de que o Autor é um ser superior com os direitos excepcionais de ditar aos outros o que podem fazer com o que lhes pertence e de exigir remuneração a quem não lhe encomendou nada.

A posição que o Tim defende é contrária à realidade do processo criativo. Todos criamos transformando o que outros criaram e todos usufruímos de obras alheias. Seja a guitarra que tocamos no concerto ou o CD que ouvimos no carro, seja o que aprendemos na escola, a roupa que vestimos e a língua que falamos. A tecnologia digital torna ainda mais evidente que somos todos autores e todos piratas, todos criadores e todos imitadores. A posição do Tim exige o impossível: que se distinga entre os que criam e os que utilizam as criações dos outros. Além disso, os direitos de cada um acabam onde começam os direitos dos outros. O direito à autonomia da vida privada, os direitos de propriedade, o direito de comunicar e de partilhar informação. O Tim tem o direito de fazer negócio com a sua música, de cobrar para compor, tocar e cantar. Tem o direito de pedir o preço que quiser pelo seu trabalho. Mas tem de respeitar os direitos dos outros. Não pode violar os direitos de propriedade dos outros, não pode restringir a liberdade de partilhar informação só para ter mais lucro nem obrigar que lhe paguem o que ninguém lhe encomendou. E não pode cobrar taxas pelo que os outros fazem na sua vida privada. Isso não é um direito. É um abuso.

1- Tim e Amigos, no Facebook 2- Artigo 59º da Constituição da República Portuguesa 3- Tim e Amigos, no Facebook

sábado, fevereiro 09, 2013

Ciência e pseudociência, parte 1.

Mesmo atrasado, gostava de me meter nesta conversa entre o David Marçal e o Desidério Murcho para explicar porque discordo de ambos. Começo pelo David, com quem a minha divergência, se bem que menor, me parece mais clara. Concordo que «A ciência é o conhecimento e o modo de o obter.»(1) No entanto, enquanto o modo é sempre o mesmo – considerar explicações alternativas e inferir, confrontando-as com os dados, qual ou quais as mais plausíveis e como as melhorar – o corpo de conhecimento muda constantemente. Neste momento, com os dados e as hipóteses que temos, é verdade que a melhor explicação para qualquer fenómeno «é guiada por leis naturais» e o fenómeno é «explicável de acordo com leis naturais» de forma melhor do que por algo sobrenatural. Mas isto deve-se ao estado presente do nosso conhecimento e não à ciência em si enquanto modo de o obter.

Ao que tudo indica, a realidade não inclui nada de sobrenatural. Mas seria teoricamente possível, se fosse esse o caso, encontrar evidências de tudo ter sido criado por um deus que não estivesse limitado pelas restrições deste universo, o tal sobrenatural. Teríamos então um universo completamente diferente, o corpo de conhecimento científico seria outro, mas a ciência enquanto modo de obter conhecimento seria a mesma: considerar hipóteses, testá-las, procurar as mais plausíveis e assim por diante. Aliás, só assim poderíamos concluir, de forma fiável e justificável, que tudo tinha origem sobrenatural, se fosse esse o caso.

Além de incorrecto, é pernicioso demarcar a ciência enumerando regras como «1. é guiada por leis naturais; 2. tem que ser explicável de acordo com leis naturais; 3. tem que ser verificável no mundo empírico;» e assim por diante. Por um lado porque dá a impressão de que a ciência é assim só porque alguém escolheu estas regras. No futebol chuta-se com o pé, no andebol passa-se com a mão e em ciência é se “guiado por leis naturais”, o que sugere que outras regras poderiam ser igualmente legítimas e que, por isso, também se pode conhecer a realidade com métodos alternativos. Rezar aos anjinhos, cheirar flores, inventar disparates ou o que mais der jeito. Por outro lado, isto implica que a ciência só serve para obter conhecimento sobre a realidade se não houver entidades sobrenaturais. Um dos fundamentos do disparate da compatibilidade entre a ciência e a superstição religiosa é precisamente que não se contradizem porque, por regras arbitrárias, a ciência ficou com a coutada do natural e a religião com a do sobrenatural. Esta deturpação denigre a ciência por omitir o mais importante.

O objectivo da ciência é encontrar as melhores explicações para o que observamos da realidade*. Tudo o resto deriva daí. Hipóteses que não se possa testar devem ser preteridas porque nem explicam nem se pode saber se correspondem à realidade. Qualquer conclusão é provisória porque pode haver sempre algum dado futuro que a contradiga. É preciso mitigar a interferência de factores subjectivos e conflitos de interesse que nos possam induzir em erro e, por isso, é preciso exigir confirmação independente dos resultados, quantificar o mais possível, submeter alegações a peer review e essas coisas todas. Ou seja, o que caracteriza a ciência não é um conjunto arbitrário de regras, como se fosse o badminton ou a canasta, mas o objectivo de compreender a realidade. Todos os atributos, restrições e procedimentos da ciência resultam de tentar atingir esse objectivo dentro das nossas limitações humanas.

Com aquele critério de cinco pontos para distinguir ciência e pseudociênia, o David também cria alguma confusão quando afirma que «A homeopatia é, em si, pseudociência.» Não é bem assim. Em si, a homeopatia é um conjunto de hipóteses acerca da memória da água, do efeito da diluição, de como medicar alguém e assim por diante e, enquanto tal, hipóteses não são nem deixam de ser ciência. Estão para a ciência como o mármore está para o processo de o esculpir. O que podemos dizer que é contrário à ciência é, sabendo o que sabemos neste momento, afirmar que essas hipóteses da homeopatia estão correctas. Isso é contrário à ciência porque o objectivo da ciência é inferir dos dados a melhor explicação e há explicações bem melhores do que aquelas que a homeopatia propõe. Mas isto não é defeito das hipóteses homeopáticas em si. O problema da homeopatia, ou da astrologia, da teologia e do método intuitivo da Alexandra Solnado, é simplesmente que a realidade não parece ser como essa doutrina descreve. Se a realidade fosse diferente a homeopatia até poderia ser a melhor explicação científica.

Apesar disto, suspeito que eu e o David até estaremos fundamentalmente de acordo, à parte destes detalhes. Com o Desidério o problema é mais bicudo. Ainda não consegui perceber em concreto o que o Desidério defende, mas há algumas afirmações claras que sugerem uma divergência fundamental. Por exemplo, «só com base em princípios filosóficos é possível [distinguir entre ciência e pseudociência]. Não é possível ir a um laboratório e provar cientificamente que algo é pseudociência» (2). Eu diria que é precisamente o contrário. O que determina as características da ciência não são “princípios filosóficos” mas o seu objectivo de inferir as melhores explicações para o que se observa. Até a filosofia da ciência, apesar do nome, é científica: o filósofo propõe uma explicação, apresenta exemplos concretos que suportam essa sua tese e, muitas vezes, é refutado por outro filósofo com contra-exemplos igualmente empíricos. Mais científico do que isto é difícil. Finalmente, o que permite decidir se é cientificamente legítimo defender certas hipóteses é precisamente o resultado do estudo cientifico dessas hipóteses. Há casos em que essa decisão pode ser trivial, como o das hipóteses não falsificáveis mas, na prática, não é por princípios filosóficos que se determina se coisas como a homeopatia são treta ou verdade. É pela ciência. Mas como este post já vai longo, terei de deixar o Desidério para uma próxima oportunidade.

* Sim, eu sei, deve haver muito na realidade que nós nunca podemos observar, etc, etc. Mas, daí, vai-se explicar o quê?

1- David Marçal, A diferença entre a ciência e a pseudociência é clara
2- Desidério Murcho, Ciência e pseudociência

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Sim, mas não por isso.

O Pedro Prola defendeu a proposta de taxar suportes digitais em favor de sociedades de cobrança por ser «um pequeno sacrifício que pode restaurar alguma paz no debate pelos direitos de autor»(1). A Paula Simões discordou porque esta taxa cobra o direito legal de fazer cópias não autorizadas mas, como a lei também proíbe a cópia de ficheiros com restrições digitais, na prática estamos a pagar por direito nenhum. Fazendo um apanhado de exemplos históricos em que novas formas de exploração comercial foram permitidas em troca da cobrança de taxas em favor dos detentores dos monopólios, a Paula argumenta que «O problema da nova #pl118 é que estamos a discutir uma compensação para os cidadãos poderem fazer menos do que já podem fazer» (2). Por exemplo, quando a pianola surgiu a distribuição comercial de música dependia do monopólio sobre a cópia das pautas. Como a pianola é um piano mecânico capaz de tocar música representada em rolos de papel perfurado e os monopólios das pautas não abrangiam esses rolos, os detentores desses monopólios protestaram e foram compensados pela cobrança de taxas fixas à venda de rolos de pianola. Soluções semelhantes foram encontradas para as cover songs e a rádio. Normalmente, quando surgiram novos negócios de distribuição de conteúdos optou-se por compensar a redução no monopólio com a cobrança de algum valor sobre esses negócios em troca de não os proibir.

Apesar de discordar do Pedro, discordo também do argumento da Paula. É verdade que há uma contradição legal entre a protecção do DRM e a taxa pela cópia privada mas esse não é um problema da taxa em si. Pode ser resolvido do lado do DRM, por exemplo. Ao focar essa questão da taxa como compensação a Paula ignora uma diferença fundamental entre aquilo que se compensa nos exemplos que focou e o que se quer compensar nesta taxa.

Se eu quiser vender discos onde canto músicas do Tony Carreira tenho de pagar uma taxa ao Tony Carreira. Ou, mais precisamente, ao omitido autor do original (3). Pago por cada música e por cada cópia que venda. A justificação legal é compensar o detentor do monopólio sobre o original por este não poder proibir que outros façam negócio com a sua obra ou obra derivada. A taxa pela cópia privada, que surgiu quando o lobby da industria discográfica convenceu os políticos de que as cassetes áudio iriam matar a música (4), é fundamentalmente diferente. Em primeiro lugar, não taxa a reprodução de obras específicas, como acontece da pianola às cover songs. Taxa algo que pode ser usado para reproduzir uma obra qualquer, mesmo sem se saber qual nem se vai ser usado para esse fim. Neste aspecto, o análogo de taxar um CD ou uma cassete não é o cobrar pelo rolo da pianola mas sim pela venda de pianos ou pincéis por poderem servir para a eventual reprodução não autorizada de alguma obra “protegida”.

Mais importante ainda é a diferença naquilo que se compensa. Nos exemplos que a Paula foca, o detentor de um monopólio comercial recebe compensação porque outro está a comercializar aquelas obras. É assim formalmente e na prática também. Se eu vender um disco onde canto músicas do Tony Carreira tenho de pagar ao Tony Carreira mas, como estou a competir com os discos do Tony, não posso subir o preço e passar esse custo ao cliente final. Eu pago para fazer negócio com as músicas do Tony. Em contraste, se taxam todos os discos rígidos ou todos os CD nem é o fabricante ou revendedor que pagam nem a taxa irá compensar lucros pela venda de alguma obra concreta. É quem compra esse suporte que paga para compensar uma venda alegadamente perdida, perda essa que, mesmo que seja verdadeira, não merece qualquer compensação por si. Por exemplo, se convenço quem ia comprar discos do Tony Carreira a comprar outra coisa faço o Tony perder vendas mas não se justifica cobrarem-me por isso. Não comprar é um direito e o Tony não tem nada que se intrometer na vida dos clientes.

O problema fundamental da taxa sobre a cópia privada é exigir do potencial comprador uma compensação porque, por razões pessoais, decide não comprar o que o vendedor lhe queria vender. Isto é absurdo, injusto, e completamente diferente dos exemplos que a Paula deu. Ninguém tem obrigação de comprar discos e ninguém tem o direito a compensação por essas “vendas perdidas”. Por isso, mesmo que legalizar a cópia privada trouxesse benefícios a muita gente e mesmo que afectasse o negócio dos detentores destes monopólios, não se justificava taxa alguma porque essa lei não faria mais do que respeitar a liberdade e a privacidade das pessoas, valores muito superiores ao de qualquer modelo de negócio.

Infelizmente, o lobby norte americano da industria discográfica tem tido tanta influência nas últimas décadas que não só impôs isto nos EUA como espalhou por muitos países, à força de tratados internacionais, esta lei de taxar por não comprar. Por isso, em Portugal não podemos rejeitar esta ideia de compensar o “autor” pelo direito à cópia privada. Mas pode-se aproveitar a letra da lei para rejeitar a taxa sobre suportes digitais. Na prática, o dinheiro que a lei diz ir para o “autor” vai para os bolsos dos distribuidores e de quem trabalha nas sociedades de cobrança. Mas, à letra, a lei diz proteger os autores. Todos os autores. Assim, o argumento que me parece mais promissor assenta na desproporção entre a fracção dos 20,000 associados da SPA que beneficiaria desta taxa e os milhões de autores portugueses que pagariam a taxa por usar suportes digitais para criar e guardar as suas obras, sejam fotografias, posts, emails, aulas, artigos de investigação ou vídeos das férias. Obras que, à luz da lei, merecem tanta protecção quanto merecem as músicas que o Tony Carreira, eventualmente, tenha mesmo criado.

1- Pedro Prola, Taxar os Ipods?
2- Paula Simões, Resposta ao @pedroprola sobre a nova #pl118
3- O Tony ilustra bem a “indústria cultural” que se alimenta deste monopólios e taxas: Tony Carreira - Plágio ou Calúnia?
4- Wikipedia, Home taping is killing music.

domingo, fevereiro 03, 2013

Treta da semana: aguenta, aguenta.

Tenho uma vaga ideia – já lá vão uns anos – de ver num vídeo que circulava clandestinamente, ainda em VHS, um famoso arquitecto a proferir a mesma exortação que o Fernando Ulrich agora apregoa. O contexto até era, digamos, análogo. Aguenta, aguenta, diz o Fernando, que há pessoas sem abrigo que aguentam muito mais austeridade do que aquela da qual a maioria se queixa. Isto de ficar sem abrigo até pode acontecer a qualquer um de nós, diz o Fernando.

Apesar das críticas, principalmente porque para pessoas como o Fernando a austeridade é mais uma oportunidade de lucro do que propriamente um sacrifício, em rigor o Fernando tem razão. Em ambos os pontos. Tem razão em dizer que o pessoal aguenta muita coisa. Se um desastre natural destruísse as nossas casas, se tivéssemos de passar fome e sede e reconstruir tudo de novo, a maioria aguentaria muito mais do que tem de aguentar agora. Os humanos são resistentes, como demonstram muitos exemplos históricos de tempos bem piores do que os de hoje. Só que a questão não é quanto as pessoas aguentam, se tiverem de aguentar, mas quanto toleram antes de optar por alternativas. Por isso tem também razão quando diz que qualquer um de nós se sujeita a ficar sem abrigo. Ou pior.

Na Islândia referendaram se os contribuintes deviam pagar as asneiras dos banqueiros. A resposta foi um não de 92%(2), o que foi um desastre financeiro para muita gente mas acabou por passar sem grande desgraça. Por cá, se referendassem a nacionalização da SLN e do BPN a resposta seria, provavelmente, semelhante. Só que, em vez disso, nacionalizam as dívidas dos banqueiros privados, recapitalizam os bancos à nossa custa e até convidam para o governo um antigo gestor dessa bela negociata que foi a SLN (3). Sem poder votar contra, o pessoal vai aguentando. A aposta do Fernando e dos seus amigos é a de que todos continuem a aguentar. Fiam-se na capacidade do pessoal aguentar disto e muito mais quando não há alternativa.

No entanto, há alternativas. Não se pode votar contra mas o referendo é apenas a opção mais pacífica. Está longe de ser a única. Na Grécia também vão aguentado só que, de tanto aguentarem, têm crescido imenso os movimentos ultra-nacionalistas (4). É um sinal de aviso que devia alarmar qualquer pessoa que se lembre do século XX. Por toda a Europa, banqueiros como o Ulrich enriquecem com o negócio de privatizar lucros e nacionalizar prejuízos apostando que o pessoal ainda aguenta muito mais. Infelizmente, o que importa não é quanto o pessoal aguenta mas o limite a partir do qual prefere aguentar outras coisas. A banca privada está a apostar nesse limite para ganhar dinheiro mas o que arriscamos com esta aposta é muito mais do que apenas dinheiro.

1- Expresso, Ulrich: "Se os sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?"
2- Expresso, Os islandeses não "aguentam"
3- Publico, Perfil de Franquelim Alves
4- Time, Reclaiming Xenophobia: The Rise of Ultra-Nationalism in Greece

Posts e debates.

Vários leitores apontaram que o meu discurso no debate sobre a Opus Dei foi muito diferente dos posts que aqui escrevo. Por exemplo, para o Cisfranco «Aqui é uma militância aguerrida que não se percebe» (1), enquanto o Daniel alegou que «Quando te reúnes em público, como, na mais recente iniciativa do " D.N.", falas em estilo pianinho com os teus companheiros de debate. Depois, quando regressas a esta tua casa ideológica, aproveitas para seres mal-criado com aqueles com os quais te estiveste reunido.»(2)

Nos detalhes, acho que estão ambos enganados. É maior militância participar num debate representando a Associação Ateísta Portuguesa do que escrever num blog e não vejo que seja mal-criado escrever que «talvez os dogmas lhes sirvam como um cilício espetado na mente em vez de na coxa» quando falo de suportarem um desconforto em nome da religião. Mas concordo que o meu discurso num debate é diferente de um post. Num debate, conferência ou encontro vou discutir os temas que me propuserem da forma como me propõem discuti-los e respondo a cada pergunta para esclarecer o melhor possível o interlocutor que ma coloca. Muitos dos meus posts são de uma natureza diferente porque o que os motiva não é uma pergunta à qual me disponibilizei para responder mas a vontade de criticar algo que me incomoda, que acho ridículo, que me parece um disparate ou estupidez. O que, naturalmente, dá uma tonalidade diferente ao discurso. Neste caso particular é a entrevista ao Ricardo Ribeiro, físico na Universidade do Minho e membro da Opus Dei (3).

O Ricardo começa por afirmar, reiterar e repetir que «Não existe qualquer contraposição», «a Ciência e a Fé são complementares», ambas «são profundamente racionais», «não podem contradizer-se mutuamente» e é «impossível haver uma contradição entre os dois». No meio deste pleonasmo todo, a justificação parece ser que não há incompatibilidade porque a ciência e a religião «têm objectos e métodos de estudo diferentes». Logo à partida, parece uma justificação fraca. Afinal, o tarot e a astrologia também têm objectos de “estudo” e “métodos” diferentes dos da ciência e, no entanto, parecem claramente contraditórios não só com a ciência mas também com o bom senso. Mais grave ainda é o Ricardo afirmar logo a seguir que «A Física leva a Deus de uma forma muito especial, porque estudamos a Criação que Ele fez [...] É de facto um modo de conhecer a Deus». Resumindo, é impossível contradizerem-se porque ciência e religião têm objectos de estudo diferentes, mas a física é uma forma de conhecer Deus. Faz-me lembrar um poema do Swinburne, que infelizmente não consigo traduzir, e que acaba assim:

«God, whom we see not, is; and God, who is not, we see;
Fiddle, we know, is diddle, and diddle, we take it, is dee.»
(3)

Talvez por falta de fé, não tenho muita esperança de que algum cientista católico explique claramente como o cristianismo é compatível com a ciência. Tomemos a física* como exemplo. Os modelos físicos da realidade alegam a existência de certas entidades, como electrões, fotões, campos, tempo, e assim por diante, em certas relações quantificáveis de onde se infere previsões acerca do que observamos. Deuses, demónios, anjos, duendes, fadas e qualquer outra entidade sobrenatural pode entrar aqui de três formas diferentes.

A primeira, mais antiga, é de forma a ter algum efeito observável que, feitas as contas, acaba por ser inconsistente com os dados. É o caso do deus da criação em seis dias e do deus que mandava os raios. Conforme se foi percebendo melhor a coisa revelou-se necessário tirar esses dos modelos por estragarem as previsões. A segunda, também já a ficar fora de moda, é pôr o sobrenatural só a tapar, ad hoc, os buraquinhos que fiquem entre o que se prevê e o que se observa. Mas cada vez os buracos são menores e, além disso, o duende do colapso da função de onda ou o deus das supercordas não ajudam a explicar coisa nenhuma, defeito que a física não perdoa. A terceira forma de incluir o sobrenatural na ciência, de longe a mais popular entre os cientistas crentes, é arrumado num canto sem fazer nada. Deus é amor, que maravilha, muita fé e coisas boas, mas fica aí sossegadinho e não mexas em nada que isto já está tudo afinado. Ora a ciência têm uma forma estabelecida de lidar com este tipo de hipóteses. Vão para o lixo.

Se considerarmos um caso concreto o problema é ainda mais claro. As religiões cristãs assentam no relato de que Jesus, tal como Pitágoras, terá nascido de uma virgem e, tal como Inanna, terá passado três dias falecido antes de ressuscitar. Cientificamente, a conclusão mais justificável é a de que o que contam acerca de Jesus, como nos outros casos, é um relato fictício. Todas as evidências indicam ser mais fácil inventar histórias destas do que realmente nascer de uma virgem e ressuscitar depois de estar morto durante três dias. Até suspeito que o Ricardo Ribeiro concorda que a conclusão cientificamente correcta é a de que os aspectos sobrenaturais dos relatos da vida de Inanna, de Pitágoras e de Jesus são mito e não realidade. No entanto, se for um católico crente, o Ricardo tem de descartar o método científico e aceitar pela fé que Jesus, se bem que nem Pitágoras nem Inanna, nasceu mesmo de uma virgem e ressuscitou. Se isso não é incompatibilidade então fiddle é diddle e diddle é dee.

* Com minúscula, na minha opinião, tal como a matemática, a química e a informática, sempre que referem áreas da ciência. Com maiúscula apenas quando são os nomes de algo, como por exemplo disciplinas: Física I, Química Orgânica, etc.

1- O debate no Diário de Notícias. (no Que Treta!)
2- O debate no Diário de Notícias. (no Diário de uns Ateus)
3- Opus Dei, Ser cristão e cientista em perfeita unidade. Obrigado ao António Parente pelo link.
4- Poetry Foundation, The Higher Pantheism in a Nutshell. Recomendo a leitura integral a quem estiver interessado em teologia.