Evolução: o ancestral comum.
O Orlando Braga voltou à carga com a coisa das probabilidades, desta vez confundindo os odds (em Português “quota”) com probabilidade (1). Em jogos de azar é comum usar esta medida porque corresponde à proporção entre o valor apostado e o valor a ganhar pela aposta. Se o jogo fosse perfeitamente justo – não é, em geral, senão os organizadores não ganhavam dinheiro – os odds corresponderiam à proporção entre as probabilidades de ganhar e de perder e não à probabilidade em si. O texto do Orlando é confuso, mas dá ideia de que ele entende que, por exemplo, odds de 3 para 1 contra o cavalo ganhar quer dizer que o cavalo tem um terço de probabilidade de ganhar. Não é. A probabilidade é de um quarto. Isto porque a soma das probabilidades é 1 e odds de 3 para 1 contra ganhar significa que não ganhar é três vezes mais provável do que ganhar. Fazendo as contas, dá ¼ de probabilidade de ganhar e ¾ probabilidade de não ganhar. Recomendo ao Orlando que se informe melhor antes de apostar nos cavalos.
Tal como com as probabilidades, também com a teoria da evolução o Orlando tem relutância em poluir os seus preconceitos com informação. Nem sequer gosta de ler o material que refere. Afirmando que «o genoma de uma vaca leiteira e o genoma da baleia azul são tão semelhantes entre si, como são semelhantes entre si os genomas do chimpanzé e o genoma do homo sapiens sapiens» (2), refere um artigo que explica como a análise de inserções de DNA viral nos genomas de várias espécies permite inferir a sua filogenia (3) mas que não diz nada daquilo que o Orlando alega. O que, aliás, é disparate. O chimpanzé, o bonobo, o gorila, o orangutango e o humano estão todos na mesma família, Hominidae. O ramo que junta vacas e baleias inclui cerca de duas dezenas de famílias, com veados, hipopótamos, golfinhos, girafas, antílopes e outros (4).
Deixando as críticas negativas, vou pegar numa pergunta do Orlando e fingir que lhe interessa a resposta. Sempre é uma desculpa para falar do tema. Escreve o Orlando que «a simples comparação entre genomas não permite deduzir que duas espécies diferentes terão tido um ancestral comum», perguntando «Em que base científica se pode deduzir tal coisa?». Tem razão que não se pode inferir um ancestral comum se só conhecermos duas espécies e mais nada. Felizmente, sabemos muito mais do que isso. Conhecemos os mecanismos moleculares de hereditariedade e mutação. Conhecemos o registo fóssil, o decaimento radioactivo, os mecanismos de erosão e movimentos tectónicos, e assim por diante. Da mecânica quântica à geologia, passando pela bioquímica e genética de populações, há um vasto corpo de conhecimento a apontar todo para o mesmo resultado. Evolução pela acumulação de variações herdadas. Sabendo isto, temos uma explicação bem fundamentada para as semelhanças e diferenças entre dois genomas. Além disso, conhecemos muito mais do que dois genomas. E com mais do que dois já se pode inferir um ancestral comum mesmo sem considerar o resto.
Consideremos 23 proteínas, cada uma variando em 12 espécies diferentes. Podemos organizar as espécies de acordo com as diferenças em qualquer uma das 23 proteínas e, se não assumirmos nada acerca do mecanismo que originou estas diferenças, há muitas formas possíveis de o fazer. Só em árvores de família há cerca de treze mil milhões de possibilidades, para cada proteína. À partida, seria uma grande coincidência darem todas a mesma árvore. Por outro lado, se as diferenças surgiram pela acumulação de mutações herdadas de um antepassado comum, a árvore será a mesma para todas as proteínas. Em 2012 Douglas Theobald fez estes cálculos, considerando 23 proteínas presentes nos três domínios (Archaea, Eubacteria e Eukaria) e quatro espécies de cada domínio, avaliando os modelos possíveis para relacionar estas espécies sem assumir, à partida, que descendiam de um antepassado comum. Os parâmetros dos modelos eram variáveis, e ajustados de forma a maximizar a plausibilidade. O resultado foi que os modelos que indicavam um antepassado comum eram claramente mais plausíveis. Sob uma interpretação baesiana dos valores finais, a hipótese de haver um antepassado comum para todos os seres vivos «é pelo menos 102860 vezes mais provável do que a hipótese alternativa mais próxima»(5). Mesmo ignorando tudo o que sabemos acerca de biologia, geologia, física e paleontologia, quando precisamos de 2860 zeros para escrever quantas vezes um modelo é mais provável do que as alternativas é evidente que temos uma boa “base científica” para o aceitar. Assumindo, é claro, que não ficamos baralhados com a tal coisa das probabilidades.
1- Orlando Braga, Tira-teimas. Ver também Odds e Quota
2- Orlando Braga, Um novo blogue politicamente incorrecto
3- Different Species With The Same "Junk DNA"
4- Jerry Coyne, A new phylogeny of the mammals
5- Douglas Theobald, A formal test of the theory of universal common ancestry, Nature, 465, 219–222 (May 2010). Pdf disponível aqui. Ver também Converging Evidence for Evolution