domingo, maio 13, 2012

Disto e daquilo.

Alfaces
Segundo o João Miranda, no Blasfémias, os hipermercados têm uma margem de lucro tão grande porque «produzir uma alface é mais fácil do que colocar uma alface onde eu a quero comprar, com o aspecto que eu quero, no dia e na hora a que eu quero»(1). Por isso, diz o João, «numa economia moderna o valor acrescentado da distribuição é muitas vezes superior ao da produção». Para uma alface, até pode ter razão. Mas, de resto, está enganado.

Realmente, produzir uma alface custa menos do que transportar uma alface de carro até onde o João a quer comprar. No entanto, quando aumentamos a escala a relação vai mudando. Isto porque produzir dez mil alfaces custa pouco menos do que dez mil vezes o que custa produzir uma alface. Há alguma economia de escala, mas lavrar mais terra exige mais energia, regar mais alfaces exige mais água, colher mais alfaces exige mais mão de obra, e assim por diante. Mas transportar dez mil alfaces exige só substituir o carro por um camião. Gasta-se mais combustível, mas não dez mil vezes mais.

E esse é que é o factor principal. Os hipermercados não ganham mais dinheiro por custar muito mais fazer o que fazem. Ganham mais dinheiro porque a distribuição tem custos menores, por peça, quanto maior for o volume. Isto favorece os oligopólios e dá a uns poucos muito mais poder de negociação. Ou seja, poder para distorcer os preços a seu favor. O mercado livre é muito bom, mas só quando todos podem negociar de igual para igual. Quando um tem uma pistola, não faz sentido dizer que a carteira do outro é o preço justo pelo "valor acrescentado" de não levar um tiro. Nessa altura é preciso admitir que o mercado não está a funcionar.

Ultimamente só tenho comido alfaces que eu produzi. Sabem-me melhor do que as do hipermercado e, para quem passa os dias ao computador, umas horas de enxada ao fim de semana é relaxante. Mas não invejo nada quem tenha de viver da agricultura. Além do trabalho, há também o risco de investir o pouco que se tem a semear um campo de alfaces e depois ficar arruinado por não chover ou vir geada, pulgões ou promoções do Pingo Doce.

Sensatez
O Ricardo Alves, no Esquerda Republicana, propõe que os «militantes anti-tourada» defendam uma “regulação sensata” do espectáculo em vez de querer proibir a tourada. Segundo o Ricardo, o que é sensato é continuar a espetar ferros nos touros mas não deixar que as crianças vejam (2).

O argumento do Ricardo parte da premissa de que «os animais não humanos [não são] sujeitos de Direito». Infelizmente, não explica de onde isto vem. Eticamente, a distinção taxonómica entre “humanos” e “não humanos” é irrelevante e, legalmente, os animais já são protegidos por lei. Por exemplo, organizar um espectáculo igual ao da tourada mas com cães em vez de touros viola a lei (3).

Não é sensato permitir a tourada e apenas proibir que as crianças assistam porque a razão principal para proibir que as crianças vejam tourada é tratar-se de um espectáculo cruel e eticamente condenável. A sensatez exigiria, no mínimo, que parassem de espetar ferros no bicho, acto cuja imoralidade deriva apenas do espetado sentir e do espetador* saber bem o sofrimento que causa ao animal.

Fantasmas
Segundo o Mats, no blog Darwinismo, «Os colégios, as universidades e os média estão sempre prontos a atacar a ciência de criação e qualificá-la de “não científica”» mas «a “ciência” secular não só acredita no sobrenatural, como depende [deste]. Por exemplo, os evolucionistas acreditam em “fantasmas“.»(4) Nem por isso.

Os “fantasmas” que o Mats aqui refere não têm nada que ver com o fantasma sagrado dos criacionistas, o tal que bafejou vida no barro e criou cada minhoca e carrapato. Nem têm nada que ver com o sobrenatural. São as linhagens fantasma, designação para as linhagens cuja existência se pode inferir mas para as quais ainda não se encontrou fósseis. Por exemplo, até recentemente a linhagem que une os chimpanzés aos seus antepassados em comum connosco era uma linhagem fantasma. Temos muitos fósseis de hominídeos, do nosso lado da família, mas só em 2005 se encontrou os primeiros fósseis equivalentes do lado dos chimpanzés (5). No entanto, mesmo antes disso era razoável assumir que os chimpanzés não tinham surgido por obra e graça do espírito santo. Isso sim é que seria uma hipótese sobrenatural. Além de ser um disparate.

*"Espetador" no sentido de "aquele que espeta" e não de "aquele que assiste", ao contrário do que recomenda o novo acordo ortográfico.

1- João Miranda, Bem-vindos ao mundo moderno
2- Ricardo Alves, Por uma regulação sensata das touradas
3- Se bem que as sanções, que eu saiba, ainda não estejam determinadas. LPDA, Lei n.º 92/95
4- Mats, Os fantasmas evolutivos.
5- National Geographic News, First Chimp Fossils Found; Humans Were Neighbors

31 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  2. Concordo a 100% no primeiro tema do post e saúdo a iniciativa hortícola, Ludwig. O caso Pingo Doce foi uma espécie de teste de laboratório à sanidade política e académica nacionais, conforme bem disse Pedro Lains, http://pedrolains.typepad.com/pedrolains/page/2/,num dos melhores comentários a este assunto. O governo esteve bem melhor. Foi decepcionante a reacção massiva da blogosfera supostamente liberal (Insurgente, Blasfémias, Douta Ignorância, Momentos Económicoa, Destreza das Dúvidas), encurralada entre a resposta à ofensa simbólica com que a esquerda fez o seu justo recreio e os seus dogmas de fé no mercado livre. É preocupante observar tão poucos, com responsabilidades, mostrarem não perceber que só haverá consumo futuro a preços aceitáveis com um razoável número de produtores nacionais em actividade com viabilidade. Para haver concorrência são necessários concorrentes.

    ResponderEliminar
  3. Será um pouco off-topic, mas só quero esclarecer que, segundo o Acordo Ortográfico, a palavra 'espectador' não sofre qualquer alteração. Obrigada e parabéns pelo blog, que acompanho regularmente há uns anos. E parabéns tambem pela pachorra, digna de uma recompensa no Alem se tal existisse.

    ResponderEliminar
  4. Ludwig, o “novo” AO (que realmente é de 1990 — ou seja, tão novo como aquele 486 q eu tenho ali ao canto: Queres comprar?) não diz especificamente que quem espeta (espetador) e que assiste (assistente, porém?) fazem o mesmo. Diz apenas que algumas consoantes não pronunciadas, como o "c" de "espectador", não deverão ser escritas. Isto vem apenas aumentar o número de casos semelhantes («Este comboio vai para este.», ou «O nosso clube tem sede de uma sede.»), já consagrados em ortografias anteriores.

    Por mim, é pena que não se tenham eliminado também outras consoantes não pronunciadas, como os "h"s (exc. os de "ch", "nh" e "lh") — como de resto se fez em italiano há séculos, ou que não se tenha consagrado em pleno a acentuação para distinções como as acima («espetador/espètador», «parêde amaréla» et c.) e muitas outras coisas “revolucionárias” que estiveram para ser aprovadas em 1911.

    Mas não queiras, nem de longe, aderir ao rebanho dos “graçamouras”, que é, na maior parte, péssima companhia.

    ResponderEliminar
  5. Ana,

    Obrigado :)

    Penso que espetador tem as duas ortografias, com e sem o c, porque há quem diga o c. Mas tenho visto a palavra escrita na TV como espetador.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não, a palavra não tem duas ortografias. Poderia tê-las, se no Brasil elidissem o C, mas não é o caso. O problema do que vemos escrito na TV e nos jornais é que a desinformação gerada nas redes sociais quanto ao acordo é tanta, que o guia usado é o Facebook, não o Portal da Língua Portuguesa, onde consta o texto integral do acordo e um conversor :-)

      Eliminar
    2. Segundo o ciberduvidas:

      « Dupla grafia no mesmo espaço geográfico, dado os falantes apresentarem oscilações de pronúncia dentro de uma mesma variante, neste caso, a portuguesa; é neste tipo de situação que se inscreve espectador/espetador, um caso de dupla grafia dentro da nossa variante, o que, na prática, significa que, em Portugal, os falantes poderão escrever a palavra com ou sem c, consoante o pronunciem ou não.»

      Eliminar
    3. Obrigada pelo esclarecimento, Ludwig. Desconhecia o carácter facultativo.

      Eliminar
  6. Zarolho,

    Penso que a minha posição é mais clara se pensarmos na pronúncia. A pronúncia muda com os tempos e regiões, e é diferente aqui, no Brasil e em Angola. Mas se o Estado se lembrar de legislar sobre isto mandamo-lo à fava (pronunciada m****) porque não tem nada que se meter nisto.

    Eu considero que a forma como escrevemos é tão pessoal como a forma como falamos, e o Estado não tem legitimidade para legislar sobre isso. O correcto (com c) seria os peritos da linguística manter-se a par das formas como as pessoas escrevem e pronunciam as palavras e usar isso como base para os documentos oficiais e o ensino, mas nunca fazer o contrário, alterando por fiat a forma como comunicamos.

    Portanto, não sou adverso a qualquer alteração ortográfica, desde que surja pelo processo normal de crescimento e transformação da língua. Nem sou contra que haja normas acerca de como se escreve em documentos oficiais, desde que essas normas sigam sempre a prática consensual. Mas leis ou tratados internacionais que forcem as pessoas a escreve -- ou falar -- de forma diferente são um abuso do poder público e penso que devem ser resistidos, independentemente de concordarmos com as alterações.

    Por exemplo, apesar de eu dizer "touro", serei sempre contra que proíbam que se diga (ou escreva) "toiro" porque não considero que o legislador tenha legitimidade para fazer tal coisa. Mas se um dia toda a gente disser "touro", concordo que se descarte a outra forma como anacrónica e passe a constar apenas esta no dicionário.

    ResponderEliminar
  7. ... os peritos da linguística *manterem-se* ...

    ResponderEliminar
  8. Off topic interessante: como evolucionistas e criacionistas bíblicos interpretam os mesmos dados de forma diferente:

    Um estudo recente revela a importância das proteínas TRPC3 e TRPC6 no contexto mais vasto do complexo mecanismo da audição


    1) Os evolucionistas limitam-se a especular sobre o seu desenvolvimento aleatório num suposto passado distante nunca observado por ninguém.


    2) Os criacionistas consideram que a complexidade especificada e integrada dos mecanismos que estão na base dos nossos sentidos corrobora a sua criação inteligente e com uma função específica pré-determinada.


    Duas visões do mundo, duas maneiras diferentes de interpretar a mesma evidência.

    ResponderEliminar
  9. Off topic interessante: como evolucionistas e criacionistas bíblicos interpretam os mesmos dados de forma diferente:


    Um estudo recente revela a existência de diferenças no modo de partir as nozes entre comunidades de chimpanzes próximas umas das outras

    1) Os evolucionistas apresentam isso como prova da existência de cultura entre os chimpanzés e como prova da evolução dos humanos a partir de um antepassado comum com os chimpanzés.

    2) Os criacionistas notam que as experiências foram feitas em chimpanzés contemporâneos dos seres humanos, nada dizendo sobre a hipotética evolução de ambos a partir de um antepassado comum, e que as habilidades dos diferentes animais são evidência de um Criador comum inteligente.


    Duas visões do mundo, duas maneiras diferentes de interpretar a mesma evidência.

    ResponderEliminar
  10. Ludwig, concordo mais ou menos.

    Mas na prática “o Estado” não tem mais poder de impor uma ortografia do que aquele que tu achas que deveria ter. (Se assim fosse decretar-se-ia, por fiat, o fim dos erros ortográficos — de coisas como "falasse-mos"…) Mas os estados são bons interlocutores para assinar convénios ortográficos internacionais, melhores que as comissões de linguistas que os elaboraram — pelo menos na sociedade atual.

    Quanto ao caso "toiro"/"touro", felicito-te pela agudeza de dele te lembrares, já que é um excelente exemplo de «dupla grafia no mesmo território», plenamente estabelecido e nunca afetado por mudanças de ortografia. Está raramente, porém, no radar dos “graçamouras” já que não varia cá e lá do Atlântico, não inclui acentuação nem consoantes mudas, nem tem uma componente etimológica.

    ResponderEliminar
  11. Zarolho,

    Não estou a falar de poder para fazer cumprir a lei mas da legitimidade de legislar sobre certos assuntos. São aspectos diferentes e independentes.

    E neste caso parece-me claro que aquilo que o Estado está a fazer não é legítimo. Por exemplo, presumo que te oporias a que o Estado português assinasse um convénio internacional regulando a forma como pronunciamos as palavras ou o vocabulário que usamos. Isso não é algo que seja legítimo regular "de cima para baixo" mas algo que deve ser determinado "de baixo para cima", conforme é costume dizer-se em cada sítio e tempo.

    A decisão de como escrever as palavras, se pela fonética se por outra regra qualquer, também deve surgir do consenso de quem escreve e não dos regulamentos dos burocratas ou dos lobbies das editoras. A minha oposição ao acordo ortográfico, ao contrário do que me parece ser em muitos casos, não é uma oposição à mudança. A língua muda, é um facto, e se um dia passar a ser um fato tudo bem. Que seja. O que me oponho é a que seja uma meia dúzia de tipos a querer ditar como os outros escrevem. Se acham que é melhor escrever assim, pois escrevam e logo se vê se a moda pega. Se pegar pegou, se não pegar não pegou. Mas fazer isso por "convénio internacional" é tão treta como assinar um tratado a estipular se havemos de dizer toiro ou touro, ou se é permitido aos alentejanos pôr o i do leite no fim do café.

    ResponderEliminar
  12. Ludwig:

    Aquilo que me parece é que o estado não regula como é que as pessoas escrevem em si. Que eu saiba não existem penas contra erros ortográficos...

    Aquilo que regula é como é que as crianças são ensinadas, e como é que os documentos oficiais são escritos. Que exista um esforço «centralizado» para uniformizar ambos estes aspectos não me choca nada. Afinal, parece-me errado que o estado me impeça de dar os erros ortográficos que quiser nesta mensagem, mas parece-me legítimo que não aceite um documento oficial que possa ser considerado ilegível. Se acreditas que o estado deveria definir as regras associadas a estes dois aspectos com base na prática, acreditas à mesma que o estado deveria poder definir essas regras: acreditas que é um poder que cabe ao estado, mas devia ser usado dessa forma específica. Se é esse o caso, estás a discutir um assunto menos fundamental do saber se devia caber ao estado esses poderes. Sinceramente parece-me uma questão que não me diz muito.

    Pessoalmente não vou fazer um grande esforço para cumprir o novo acordo. Por enquanto todos me entendem se escrever como me parece mais fácil (usando o antigo no qual fui habituado) e isso não dificulta a comunicação. À medida que mais e mais pessoas forem usando o novo (até porque o aprenderam na escola) vou começar a usá-lo sem esforço. No dia em que custar às pessoas ler o antigo, já me custa escrever no antigo, pelo que espero que o processo não envolva qualquer esforço. Não planeio andar a escrever muitos documentos oficiais pelo que, como 99.9% dos portugueses, não sofrerei qualquer imposição.

    Sinceramente custa-me dar muita importância a coisas que são meras convenções. Também não percebo porque é que a Madeira fica na Europa, mas Macau ficava na Ásia mesmo quando era território português, ou porque é que a Europa é um continente separado da Ásia, ou porque é que não se usa o sistema decimal para as unidades de tempo, ou N coisas. Algumas dessas evoluíram «de baixo para cima» através do uso, noutras existiram acordos «centralizados» (como no caso do sistema métrico, tão melhor que a porcaria do sistema anglo-saxónico), mas o que importa é que são meras convenções, e ninguém te impede de usar convenções diferentes.

    ResponderEliminar
  13. João Vasco,

    «Se acreditas que o estado deveria definir as regras associadas a estes dois aspectos com base na prática, acreditas à mesma que o estado deveria poder definir essas regras: acreditas que é um poder que cabe ao estado, mas devia ser usado dessa forma específica.»

    Não. Não acredito que o Estado tenha legitimidade para definir as regras de pronuncia ou ortografia. O que acredito é que o Estado tem o dever de respeitar as regras de pronúncia e ortografia como são definidas pela prática, que é a única fonte legítima das regras de pronúncia e ortografia.

    Por isso acho legítimo que o Estado ensine as crianças a escrever "Egipto" se toda a gente escreve "Egipto", mas ilegítimo do Estado assinar um acordo internacional pelo qual se compromete a ensinar as crianças a escrever "Egito" quando toda a gente escreve "Egipto". "Egito" é um erro ortográfico, porque o que determina a ortografia correcta não são os acordos internacionais mas o consenso de quem sabe escrever.

    «Sinceramente custa-me dar muita importância a coisas que são meras convenções.»

    Concordo. Eu não dou importância se alguém diz "trem" ou "combóio". São meras convenções. Mas se o Estado português assinar um acordo internacional comprometendo-se a ensinar as crianças a dizer "trem" em vez de "combóio" eu vou dar importância não à mudança da palavra mas à intromissão do Estado em algo no qual não tem legitimidade para interferir.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. «Não. Não acredito que o Estado tenha legitimidade para definir as regras de pronuncia ou ortografia.»

      Parece que ignoraste o que escrevi. Não, o estado não tem legitimidade para definir essas regras, e não o faz.
      Repito: não o faz.
      Não existem leis que te impeçam de escrever o que quiseres, nem penas para os erros ortográficos.

      Aquilo que o estado faz é definir as regras para a escrita de documentos oficiais, e também tem um papel na definição dos currículos escolares (que acabam por enquadrar também ensino da escrita).
      Parece-me que apoias uma de duas hipóteses:
      a) opões-te a isto: qualquer redacção de um documento oficial deveria estar correcta, e nenhuma regra quanto ao ensino da ortografia deveria ser definida pelo estado (estaria ao cargo de cada escola?)
      b) aceitas que o estado tenha regras para a forma de redigir documentos oficiais e que o ensino da ortografia possa ser definida pelo Ministério de Educação, mas acreditas que essas regras deveriam ser baseadas na observação do uso vigente.

      Qual dessas é que é?

      (pelo que escreveste no comentário seguinte parece que escolhes a hipótese b), confirma isto sff).

      Eliminar
  14. Já agora, para dar outro exemplo, no ensino público acredito que o Estado tem o dever de organizar os currículos de História, Biologia, Química, etc. Mas não tem o direito de ensinar que a Terra tem 10,000 anos, que os seres vivos são dotados de força vital ou que os quatro elementos são Terra, Fogo, Ar e Água.

    Pela mesma razão, o Estado tem o dever de organizar o currículo de Português mas não tem o direito de ensinar as crianças a escrever de forma errada. E o que define a forma errada e correcta de escrever é a forma como as pessoas escrevem. Até se usa a expressão "como se escreve" em vez de "como o Estado manda escrever".

    ResponderEliminar
  15. João Vasco,

    Talvez b, mas quando dizes «Aquilo que o estado faz é definir as regras para a escrita de documentos oficiais, e também tem um papel na definição dos currículos escolares» não distingues entre o dever do Estado respeitar as regras da ortografia e a legitimidade do Estado para definir as regras da ortografia. São duas coisas muito diferentes.

    Por exemplo, o Estado tem o dever de definir regras para o ensino de biologia e química. Isso inclui o dever de ensinar que a convenção para os nucleótidos de ADN é A, C, T e G, e exclui o direito de definir que a convenção nas nossas escolas vai passar a ser 1, 4, x e alfa.

    Da mesma forma, o Estado tem o dever de definir regras para o ensino e elaboração de documentos oficiais que visem uma ortografia correcta, mas não tem legitimidade para definir que "Egito" passa a ser a forma correcta de "Egipto". A ortografia correcta é determinada pelo consenso de quem escreve, e "Egito" é um erro.

    Como o Estado não tem legitimidade para definir o que é a ortografia correcta, ao ditar que se ensine "Egito" ou que se escreva "Egito" em documentos oficiais, o Estado está a mandar cometer erros de ortografia e, por isso, a faltar ao seu dever de ensinar e respeitar a ortografia correcta neste país.

    ResponderEliminar
  16. Bem me parecia que era a hipótese b).

    Pegando agora no exemplo que dás quanto à biologia e química, nota que várias vezes essas convenções são delineadas de forma centralizada. Não é alguém que vai "observar" como é que os cientistas comunicam. Uma série de cientistas juntam-se e definem, centralizadamente, que vão passar a usar esta convenção. Qualquer cientista é livre de não aceitar essa convenção, mas é muito natural que a convenção acabe por ir parar aos currículos escolares.

    Outras vezes essas convenções não são definidas de forma centralizada. E às vezes até é mau que não sejam (viva o sistema métrico!).

    De qualquer forma, não estamos a falar do poder do estado definir como é que as pessoas escrevem, mas apenas de ensinar uma convenção que tem - como outras convenções do tipo - o objectivo de facilitar a comunicação, e que qualquer um é livre de não seguir.

    ResponderEliminar
  17. João Vasco,

    «De qualquer forma, não estamos a falar do poder do estado definir como é que as pessoas escrevem»

    Certo. Eu estou a falar da legitimidade, e não do poder.

    «mas apenas de ensinar uma convenção que tem - como outras convenções do tipo - o objectivo de facilitar a comunicação, e que qualquer um é livre de não seguir.»

    Certo também. O Estado tem apenas a legitimidade de ensinar a convenção. Mas não tem a legitimidade de definir qual é a convenção.

    O vocabulário é convencional. Podemos dizer eléctrico, podemos dizer bonde. Não é legítimo o Estado determinar qual a convenção que usamos. A obrigação do Estado, em documentos oficiais e no ensino público, é respeitar a convenção que se usa nesse sítio.

    A pronúncia é convencional. Podemos dizer "gente" ou "geintshe". Não é legítimo o Estado determinar qual a convenção que usamos. A obrigação do Estado, em anúncios oficiais e no ensino público, é respeitar a convenção que se usa nesse sítio.

    O mesmo com a ortografia. Podemos escrever "facto" ou "fato". Não é legítimo o Estado determinar qual a convenção que usamos. A obrigação do Estado, em documentos oficiais e no ensino público, é respeitar a convenção que se usa nesse sítio.

    Por isso, é obrigação do Estado brasileiro respeitar as convenções que os brasileiros adoptara, obrigação do Estado português respeitar as convenções dos portugueses, e não é legítimo de nenhum dos dois mudar essas convenções.

    ResponderEliminar
  18. «Certo também. O Estado tem apenas a legitimidade de ensinar a convenção. Mas não tem a legitimidade de definir qual é a convenção.»

    O estado tem a legitimidade de definir a convenção que usa para os seus documentos. Tu aceitas essa ideia quando dizes que deveria defini-la de acordo com a observação do uso corrente.

    Mas não tem legitimidade para definir a convenção que usas para escrever habitualmente. Já é a terceira mensagem em que mostro que existe esta distinção , apenas para ser ignorado. Continuas a escrever como se o estado te obrigasse a usar uma grafia que impõe, sem reconhecer que foi um erro afirmares que era esse o caso. O estado não impõe penas criminais ou contra-ordenações para os erros ortográficos, nem os considera ilegais de qualquer forma. Tu segues a convenção que entendes quando escreves os teus textos. Ninguém to impede, nem afirma que seria legítimo impedir.

    Quanto à ideia de que o estado deveria definir a convenção usada para os documentos oficiais a partir da observação, parece-me uma questão bem menos importante. Sinceramente agradeço que tenham escolhido o sistema métrico em vez de ficarem presos às N unidades (com múltiplos não decimais em muitos casos) que eram usadas naturalmente pelas pessoas, mas não me parece que esse assunto se revista de uma tão grande importância.

    ResponderEliminar
  19. João Vasco,

    «O estado tem a legitimidade de definir a convenção que usa para os seus documentos.»

    Não. O Estado português não tem legitimidade de convencionar que, a partir de agora, os documentos oficiais vão ser todos escritos em eslovaco, por exemplo. Isto porque os documentos "do Estado" não são do Estado. São nossos. Por isso devem estar de acordo como nós lemos e escrevemos.

    «Tu aceitas essa ideia quando dizes que deveria defini-la de acordo com a observação do uso corrente.»

    Não. É precisamente o contrário. O dever de respeitar a convenção que nós usamos exclui o direito de definir qual a convenção que havemos de usar nos documentos oficiais e no ensino público. Não compete ao Estado definir a convenção, mas apenas respeitá-la.

    «Mas não tem legitimidade para definir a convenção que usas para escrever habitualmente.»

    Certo, mas a distinção que estou a fazer não é se eu escrevo habitualmente ou de vez em quando, ou se estou a preparar uma aula ou a escrever para o blog.

    A distinção importante é entre o dever de respeitar uma convenção que já existe, que é determinada pela prática consensual dos portugueses (dizer gente, eléctrico, e escrever Egipto) e a legitimidade de alterar essa convenção, definindo o Estado uma forma de escrever e ensinar a escrita que é diferente daquela que consensualmente os portugueses usam. A minha posição é que devia ser a primeira, e não a segunda. E penso que se em vez de ortografia pensarem em pronúncia ou vocabulário -- igualmente convencionais -- não irão discordar.

    ResponderEliminar
  20. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderEliminar
  21. «A distinção importante é entre o dever de respeitar uma convenção que já existe, que é determinada pela prática consensual dos portugueses (dizer gente, eléctrico, e escrever Egipto) e a legitimidade de alterar essa convenção, definindo o Estado uma forma de escrever e ensinar a escrita que é diferente daquela que consensualmente os portugueses usam.»

    Vamos lá ver uma coisa: o estado propõe uma convenção, e são as pessoas que escolhem aderir ou não. Por exemplo: tu és livre de não aderir e continuar a escrever como antes - eu até expliquei que tenciono fazer isso, até ao momento em que escrever de outra forma for mais natural para mim. Não sei se foi o Fernando Pessoa ou outro poeta célebre que até ao fim da sua vida continuou a usar o «ph» para escrever os «f»s (exemplo: «pharmacia») mesmo apesar do estado ter proposto uma convenção em contrário.
    Há pouco tempo uma série de cientistas alteraram a convenção e Plutão deixou de ser um planeta, mas não é proibido afirmares que os planetas que orbitam o Sol são nove, como era convencionado até recentemente.
    E também verás que se encontrares um grupo de pessoas que prefere exprimir medidas de comprimento em polegadas, pés e milhas, de temperatura em graus Fahreneigth, de peso em libras, és livre de o fazer. Efectivamente, há áreas científicas onde o uso corrente não são as unidades SI que foram propostas como convenção (na minha área a unidade de tempo mais comum é o «tempo de alfvèn», por exemplo).

    Nesse sentido, rejeito que essa seja a distinção importante. Seria uma distinção importante se a imposição de uma convenção estivesse em cima da mesa, e aí concordaria com o que escreves. Mas, tal como Plutão deixar de ser um planeta, ninguém impõe a adesão a esta nova convenção. Tem-se a noção de que as pessoas querem aderir - que as pessoas em geral consideram «correctas» as regras que se aplicam aos documentos oficiais, e que portanto dificilmente esta proposta será rejeitada pela sociedade. Como o «f» no lugar do «ph»: ninguém foi impedido de usar «ph» até ao final dos seus dias, mas o «f» acabou por ficar.

    ResponderEliminar
  22. João Vasco,

    «Vamos lá ver uma coisa: o estado propõe uma convenção, e são as pessoas que escolhem aderir ou não.»

    Isso implicaria haver um referendo antes de exigirem nas escolas que as crianças escrevam com a nova ortografia. Se a maioria votasse que sim, então eu estava de acordo. Neste momento, se os meus filhos escreverem com a ortografia correcta (definida pelo uso consensual e não por fiat estatal) são penalizados na disciplina de Português. E, em teoria, todos os funcionários publicos têm ordens para escrever com erros ortográficos (segundo o uso consensual).

    «Há pouco tempo uma série de cientistas alteraram a convenção e Plutão deixou de ser um planeta, mas não é proibido afirmares que os planetas que orbitam o Sol são nove, como era convencionado até recentemente.»

    Não foi uma série de cientistas. Foi o consenso na astronomia. E, por isso, é de esperar que o Estado ensine aos alunos nas escolas que Plutão não é um planeta.

    Não seria admissível que o Estado assinasse um acordo com o Brasil comprometendo-se a ensinar que Plutão é um planeta e os cientistas depois que alterassem as suas convenções se quisessem. O Estado não tem legitimidade para isso.

    No caso da ortografia, substitui "os cientistas" por "as pessoas que sabem escrever" e tens uma boa ideia do meu problema com esta coisas que tu chamas "propor uma convenção". Propor exige estar aberto a dizerem que não. Não foi isso que o Estado português fez, e parece-me que se o acordo ortográfico fosse a referendo era chumbado.

    «que as pessoas em geral consideram «correctas» as regras que se aplicam aos documentos oficiais, e que portanto dificilmente esta proposta será rejeitada pela sociedade.»

    Se penalizarem as crianças que escreverem com a ortografia que agora é correcta, eventualmente a maioria acabará por escrever com a nova ortografia, que passará por isso a ser a correcta.

    O meu ponto é que este passo inicial não é legítimo. O processo devia decorrer ao contrário.

    ResponderEliminar
  23. «E, em teoria, todos os funcionários publicos têm ordens para escrever com erros ortográficos»

    A sério? Isso está no acordo ortográfico?

    «Não seria admissível que o Estado assinasse um acordo com o Brasil comprometendo-se a ensinar que Plutão»

    Mas o acordo prevê como é que o estado vai ensinar a língua?

    Ou é o contrário: o acordo prevê como se escrevem os documentos oficiais, e em consequência da maioria dos portugueses querer escrever de acordo com essa convenção, é ela que é ensinada às crianças?


    «Propor exige estar aberto a dizerem que não.»
    Mas eu não vejo porque é que negas essa abertura. Se continuares a escrever neste blogue com a ortografia anterior ao acordo («dizeres que não») está prevista alguma sanção («não estar aberto a»)?

    ResponderEliminar
  24. Nã ó krippahlizante a Frusual compra a fruta por 20 e 30 as laranjas e 40 cêntimos as encore

    são 200 a 300 eurros por tonelada de laranja...5 toneladas são 4 a 5 viagens de tractor 15 a 30 litros de gasoil e 200 euros a 300 para carregar as caixas e condutor consoante se vão do sota para o barlavento ou de españa

    logo em 1000 eurros (5tones a 200 eurros) são 200 eurros extra 4 cêntimos porquilo pelo transporte inté à cooperativa

    lavagem são 15 m3 por tonelada logo 75 m3 no total mais 200 eurros de electricidade e de salários para o pessoal da escolha no tapete rolante
    5 tones passam em 2 horas a 4 eurros por hora por operária...
    logo +4 cêntimos no tapete rolante

    e meia tonelada rejeitada sobram 4 tones e meia logo perda de 100 eurros em laranja que vai pra sumo e casca...

    20 centimos por quilo +4+4+2=30 cêntimos

    embalagem em sacos de rede de 2 a 3 quilos + 1 cêntimo 31

    seguem viage em camião de 10 ou 20 tones
    carregar e etc em gasoil e pessoal 300 eurros

    digamos 30.000cêntimos a dividir por 20.000 quilos = 1,5 cêntimos

    32...a Sonae compra imaginemos a 35 o quilo ou vá lá a 40 a laranja algarvia em sacos de 3 kilos e vende a 1,79

    1,20 e vende a 1,79 não dá né...

    logo ou não compra às cooperativas
    ou tem 100% de vendas sem perdas nem fungos a darem cabo das bichas

    nã te metas nas alfaces nem na laranja meu

    bai-te ós pepinos e às favas dã mais grana

    ResponderEliminar
  25. João Vasco,

    «A sério? Isso está no acordo ortográfico? […] Mas o acordo prevê como é que o estado vai ensinar a língua?»

    Sim. Não no texto do acordo em si (esse delega para os estados signatários a implementação) mas na resolução número 8 de 2011 do Conselho de Ministros:

    «Assim:
    Nos termos da alínea g) do artigo 199.o da Constituição,
    o Conselho de Ministros resolve:
    1 — Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012,
    o Governo e todos os serviços, organismos e entidades
    sujeitos aos poderes de direcção, superintendência e tutela
    do Governo aplicam a grafia do Acordo Ortográfico da
    Língua Portuguesa, aprovado pela Resolução da Assem-
    bleia da República n.o 26/91 e ratificado pelo Decreto do
    Presidente da República n.o 43/91, ambos de 23 de Agosto,
    em todos os actos, decisões, normas, orientações, docu-
    mentos, edições, publicações, bens culturais ou quaisquer
    textos e comunicações, sejam internos ou externos, inde-
    pendentemente do suporte, bem como a todos aqueles que
    venham a ser objecto de revisão, reedição, reimpressão ou
    qualquer outra forma de modificação.
    2 — Determinar que, a partir de 1 de Janeiro de 2012,
    a publicação do Diário da República se realiza conforme
    o Acordo Ortográfico.
    3 — Determinar que o Acordo Ortográfico é aplicável
    ao sistema educativo no ano lectivo de 2011-2012, bem
    como aos respectivos manuais escolares a adoptar para esse
    ano lectivo e seguintes [...]»


    Mas a questão fundamental é outra. O que determina a ortografia, semântica ou pronúncia das palavras é a prática consensual de quem as usa, e não os decretos governamentais ou tratados internacionais. O tratado internacional dizer que “espetador” passa a significar espectador além do significado que já tem, de alguém que espeta, não altera a forma correcta de escrever espectador porque não é o tratado que determina a semântica nem a ortografia. Assim, o tratado está a comprometer o Estado português a usar uma ortografia incorrecta nos documentos oficiais e no ensino, pelo menos enquanto essa não se torna na ortografia correcta. Isto está errado, porque devia ser o contrário. Os documentos oficiais deviam seguir a ortografia dos portugueses.

    Além disso, mas questão acessória, é disparate dizer que isto é algo que o Estado propõe a quem quiser quando há directivas ministeriais para que todos os documentos sejam escritos desta maneira (e não apenas por quem quiser) e para que todos os manuais escolares apliquem esta ortografia, sob pena de serem rejeitados pelo sistema público de ensino. Nota que isto até se aplica a «quaisquer textos e comunicações, sejam internos ou externos». À letra desta directiva, até os emails que envio aos colegas ou alunos no exercício da minha profissão deverão ir mal escritos (com a ortografia errada) para respeitar esta ordem.

    ResponderEliminar
  26. Ludwig,

    «O que determina a ortografia, semântica ou pronúncia das palavras é a prática consensual de quem as usa, e não os decretos governamentais ou tratados internacionais.»

    Se é assim, não tens de te preocupar.

    Mas tu acreditas que o estado ao propor o acordo vai criar uma norma que será aceite pelas pessoas em geral, e eu afirmo que no geral será de forma voluntária.
    As excepções - o ensino e os documentos oficiais - são excepções em relação às quais admites que devem existir normas, simplesmente acreditas que devem ser definidas com base na observação e síntese do uso corrente. Enquanto no caso da escrita de documentos oficiais (sinceramente não me parece que os emails para os teus alunos estejam em causa) isso parece-me muito pouco relevante e em certos casos até útil (o caso do sistema métrico), no caso do ensino antecipa uma tendência que será generalizada facilitando a comunicação.

    Sempre senti, em relação a esta questão, que as pessoas lhe dão uma importância desmedida. Podemos continuar a escrever como queremos, e são apenas convenções. Para me preocupar com abusos de poder, preocupo-me com as câmaras de video vigilância que a PSP agora pode colocar sem precisar do parecer da protecção de dados, ou com o SIS que andou a vender informações a empresas privadas, com os provocadores infiltrados em manifestações para causar violência, ou com a CISPA que vai violar a nossa privacidade na internet. Preocupo-me com a educação e ensino, porque vejo que normalizar este procedimentos não ensina as pessoas a defender a sua liberdade, e não há sequer uma cadeira de cidadania que as ensine o funcionamento da Democracia. Agora se escrevem «espetador» ou «espectador» é-me igual ao litro.

    ResponderEliminar

Se quiser filtrar algum ou alguns comentadores consulte este post.