sábado, março 31, 2012

Perdido na tradução.

O Alfredo Dinis traduziu assim uma afirmação de Dawkins, num debate com Dennett:

«Não é apenas a nossa improbabilidade que nos torna agradecidos por [estarmos] aqui, porque de facto somos muito improváveis. Somos também privilegiados não apenas por estarmos aqui mas também por pertencermos à espécie humana, porque a espécie humana é realmente única: entre todos os animais somos os únicos a saber que vamos morrer. Mas somos também únicos por sabermos que vale a pena existirmos. É claro que é difícil lidar com o sofrimento e a perda, mas há alguma consolação em sabermos o quão privilegiados nós somos por estarmos aqui.»

Em seguida, critica-a «porque afirma que nos devemos sentir agradecidos, mas não diz a quem.»(1) É um erro, mas é um erro proveitoso porque revela uma diferença importante entre a atitude de crentes como o Alfredo e descrentes como Dawkins.

A palavra original é thankful, que o Alfredo traduz por agradecido. Noutro contexto, a tradução estaria correcta. Por exemplo, estar thankful to é estar grato a alguém. Mas thankful for pode ter um significado diferente. Se alguém diz estar thankful for the rain, por exemplo, o mais correcto seria traduzir como estando satisfeito, ou contente, por ter chovido. Precisamente porque, neste uso, thankful não implica estar grato a alguém.

A etimologia destas palavras ajuda a perceber a distinção. Enquanto “grato” e “agradecido” vêm de “graça”, o que alguém dá sem cobrar, e referem não só o contentamento de quem se sente grato mas também a relação de gratidão que tem com o outro, “thank” vem da mesma raiz de “think” e “thought”, e refere o sentir-se afortunado por algo que aconteceu sem implicar forçosamente uma relação de gratidão para com alguém.

Um factor que pode ter contribuído para este erro é a crença religiosa do Alfredo. Em geral, uma religião de sucesso precisa de convencer os seguidores de que estão em dívida para com aquele deus e, vicariantemente, para com os seus alegados representantes. Que estamos aqui pela graça de Jahvé, Allah, Odin, Enki ou que raio seja (2). Partindo deste princípio, dificilmente ocorreria ao Alfredo que se pudesse estar thankful for qualquer coisa sem estar também grato a alguém que o tenha feito. No entanto, para um ateu isto não faz confusão nenhuma. O que deixa os ateus perplexos é o raciocínio pelo qual os crentes concluem que quem gosta de saber como a realidade é se transforma numa máquina sem sentimentos, como o Alfredo descreve em seguida:

«Mesmo o sentimento de maravilha do cientista perante a beleza do universo se baseia no sabermos cientificamente porque estamos aqui. Há uma desdramatização total da vida humana. Fico sem saber se ao encontrar uma pessoa em grande sofrimento por ter [perdido] um ente querido, por exemplo, a deverei aconselhar a procurar consolação junto de um biólogo, o qual lhe explicará a razão científica da existência, do sofrimento e da morte.»

É perfeitamente possível ter valores e sentimentos e, ao mesmo tempo, admitir que o universo surgiu por processos naturais desprovidos de propósito. Podemos sentirmo-nos afortunados pela nossa existência e encontrar consolo no que somos e com quem vivemos sem assumir que tudo acontece pela vontade de um homem invisível no céu. Não é preciso iludirmo-nos com histórias de milagres e de vida eterna para enfrentar o que a vida tem de mau e gozar o que tem de bom. Isto parece-me tão evidente que, até ver este erro de tradução do Alfredo, nunca tinha percebido porque é que os crentes julgam que dar valor ao que a natureza objectivamente nos diz – que não há deuses – empobrece a nossa vida.

Agora percebo. O foco central dos valores do crente é a gratidão para com aquele que julgam ter criado isto tudo. As coisas não valem pelo que são nem pelo bem que fazem. Valem porque são uma graça do criador. Para quem vê o mundo desta maneira, concluir que não há deuses não só exige que torça o que pensa dos factos mas também que faça tábua rasa dos seus valores. É por isso que lhes custa perceber como quem não crê num deus possa ter valores. E é por isso que não lhes ocorre como alguém possa estar thankful for sem estar também thankful to.

1- Alfredo Dinis, Dawkins sobre o sentido da vida
2- Tangencialmente a propósito, Sumerians Look On In Confusion As God Creates World

domingo, março 25, 2012

Treta da semana: hidrolinfa.

Esta treta não é recente (1), mas é persistente. E ilustra bem o princípio fundamental deste sector da economia que vende bens e serviços fictícios. Seja na religião, medicina alternativa, bruxaria ou astrologia, o ponto de partida é uma pseudo-explicação que, apesar de não explicar nada, por simplificar grosseiramente os factos cria a ilusão de esclarecer alguma coisa. A treta dá assim ao proponente o estatuto instantâneo de perito sem o trabalho de determinar se o que diz é verdade, e aos seguidores poupa o esforço de lidar com a complexidade dos problemas reais.

Nuns casos é o deus que criou tudo, noutros a influência dos astros e, neste, «O Sistema Electrónico da Hidrolinfa, em conjunção com a condutividade da água, potenciada pelo Cloreto de Sódio, cria um campo electromagnético controlado, que de forma programada, muda de polaridade e promove, de forma homogénea, a estimulação das células e centros nervosos, que rejeitam a acumulação de toxinas, trazendo de volta o equilíbrio natural, proporcionando um bem-estar global.»(2). “Toxinas” é uma categoria imensa que inclui até compostos produzidos pelo próprio organismo e que são indispensáveis à vida, nas concentrações certas. E eliminação das toxinas envolve processos bioquímicos e fisiológicos complexos, distribuídos por muitas partes do corpo. E um lava-pés não substitui o fígado nem os rins. Mas como a realidade é complicada, vende-se melhor a ficção de que campos electromagnéticos estimulam as células, polaridade para aqui e para ali, e pronto, lá se vão as toxinas. Não explica nada, é um disparate pegado, mas dá facilmente a impressão de ter percebido o que se passa.

Além disso, em cada sessão de tratamento, com os pés de molho em água com sal por onde passa uma leve corrente eléctrica, a corrosão dos eléctrodos de ferro e cobre vai tornando a água acastanhada ou esverdeada. Assim, o “terapeuta” pode dizer veja, que bem que funciona, lá estão as toxinas a sair pelos pés (3). Daqui vêm as evidências, os testemunhos, a prova irrefutável de que a crença é verdadeira e de que o dinheiro gasto na sessão (ou os dois mil euros que custou o aparelho) não foi só para pagar o barrete.

Como qualquer pseudo-explicação que se preze, esta também suscita analogias de bolso. Afinal, é bem mais fácil apontar semelhanças aparentes do que averiguar se os casos são mesmo análogos. Por exemplo, «existe uma comparação simples para explicar a cor na água. Ora, como todas sabem, o nosso corpo liberta toxinas pelas fezes, urina e transpiração. Se usarmos uma camisola branca de que cor fica na gola, debaixo dos braços? e essa cor são as toxinas que libertamos pelos poros. De que cor são as nossas fezes?, pois bem castanhas, verdes, conforme o que comemos e desintoxicamos.»(4) Além da cor das fezes se dever à decomposição dos alimentos e não ao que “desintoxicamos”, isto não tem nada que ver com os óxidos de cobre e ferro que vão turvando a água onde põem os pés.

1- Por exemplo, este post da Palmira, em 2008, In Rust we Trust.
2- (Nota: o meu antivirus, Comodo, queixa-se que este site tem código malicioso) Hidrolinfa, a saúde através dos pés. Ver também este, em espanhol mas com bonecos e aparentemente menos perigoso.
3- Detoxifying foot bath quackery
4- A nossa vida, fórum, hidrolinfa

domingo, março 18, 2012

Treta da semana: a virtude da ignorância.

Segundo o Luís Rocha, haver muitos alunos a endividar-se para pagar os estudos «é virtuoso em vários aspectos»(1). O primeiro é «O contribuinte fica com menos encargos», o que, dependendo de como resolvemos a ambiguidade da frase, ou é trivialmente irrelevante ou simplesmente falso. É verdade que o valor nominal dos impostos será menor se o Estado investir menos em educação, sendo o resto constante. Mas é falso que isto represente uma redução no esforço económico médio das pessoas que contribuem os impostos. Isto porque custa muito menos pagar dois mil quando se ganha seis mil do que pagar duzentos quando se ganha seiscentos. Os impostos são a melhor forma de reduzir o sacrifício médio de pagar algo que a maioria deseja, pela forma como distribuem o esforço.

Segue-se outro equívoco com «Se considerarmos que a educação e um curso superior são investimentos para a vida, então este endividamento faz todo o sentido». Individualmente, se um investimento me parece seguro e tiver um retorno que compense os juros, pode fazer sentido endividar-me para investir, à falta de outro financiamento. Mas esta lapalissada é irrelevante porque o problema não é a racionalidade do aluno que pede o empréstimo. O problema é a asneira do Estado não investir na formação dos cidadãos. A educação não beneficia apenas quem tira o curso. Beneficia toda a sociedade.

No terceiro ponto, «A qualidade do ensino e a empregabilidade dos cursos tornar-se-ão assim os requisitos principais da concorrência entre Universidades. Cursos da treta, que apenas garantem o título académico e o empolamento da economia não transaccionável, tenderão a desaparecer.» Não. Haverá sempre quem tenha dinheiro para pagar cursos da treta, e haverá sempre empreendedores a lucrar oferecendo-os. Quanto mais o Estado se ausenta do ensino, mais o critério principal de concorrência passa a ser o lucro, que depende mais da capacidade de cobrar dinheiro aos clientes do que de de dar uma boa formação aos alunos. Além disso, a empregabilidade de um curso não é um factor previsível, na prática.

Vejo muita gente insistir na ideia de que as universidades devem formar os alunos para que tenham um emprego estável. No entanto, poucos pensam no que isso implica. Se queremos que o aluno que entra agora no curso trabalhe na área em que se formar durante dez anos, por exemplo, temos de prever a empregabilidade de cada curso para os próximos treze a quinze anos, conforme o curso. Somando a isto o tempo necessário para planear os cursos e recrutar docentes, é fácil ver que qualquer decisão terá de ser tomada com tanta antecedência que será impossível prever o que quer que seja. O resultado é que a empregabilidade anda sempre com uma ou duas décadas de atraso. Além disso, a razão principal para ser fácil encontrar emprego numa área é precisamente haver poucas pessoas com essa formação.

Felizmente, o curso não é o mais importante, porque o fundamental no ensino superior é que os alunos aprendam a aprender. Tanto faz que estudem física nuclear, biologia molecular ou história da arte, o que importa é que desenvolvam a capacidade de lidar com informação nova, de a examinar de forma crítica e de testar as opiniões que vão formando. Não é realista planear antecipadamente uma carreira de quarenta anos. Mas saber ler, escrever, aprender e pensar é sempre uma vantagem, e a proficiência nisto exige muito mais formação do que a maioria julga.

Finalmente, o Luís Rocha aponta um alegado valor pedagógico deste endividamento, por ensinar que tempo é dinheiro, as virtudes da concorrência e da boa aplicação de fundos e o empreendedorismo em geral. Isto tudo assume que a melhor medida do sucesso de uma vida é o lucro acumulado até morrer. Nesta perspectiva, não admira que lhe escape o valor e o propósito da educação.

A educação superior tem benefícios económicos. Em média, ganha-se mais dinheiro quanto mais formação se tiver. Mas, ao contrário do que o Luís Rocha julga, isso até justifica o investimento público na educação, por mitigar a injustiça de só alguns nascerem com pais ricos. Além disso, um salário melhor é apenas um de muitos efeitos práticos da educação, e está longe de ser o mais importante. A educação importa para a cidadania e para a participação na democracia. É um antídoto potente contra a intolerância, o preconceito e a discriminação. Sempre que é preciso aprender e adaptar-se a situações novas, sejam profissionais, legais ou de saúde, ter mais formação é uma vantagem. E tanto faz se o curso é de mecânica ou filosofia.

Mas o maior valor da educação não é instrumental. É intrínseco. A educação é um direito que não deve ser reservado aos ricos, que não deve ser cobrado a quem o queira exercer, e que não carece de justificação prática para que seja garantido a todos. É claro que há limitações práticas de implementação, há muita coisa que se pode disfarçar de educação sem o ser, como cursos de astrologia, psicanálise, medicinas alternativas ou teologia, e será sempre preciso trabalhar para que os cursos superiores ensinem mesmo a aprender, a pensar criticamente e a avaliar hipóteses, e não apenas a papaguear especulações alheias. Mas nada disto torna virtuoso obrigar quem tem menos dinheiro a endividar-se para comprar educação, e nenhum destes problemas pode ser resolvido visando o lucro, com mercados ou empreendedorismo.

1- Luís Rocha, (Blásfémias), Uma evolução no bom sentido

terça-feira, março 13, 2012

Adopção, parte 1 (ética).

Foram recentemente rejeitados dois projectos de lei que visavam alargar aos casais homossexuais o direito de adopção (1) e, pouco depois, pediram-me para escrever sobre isto (2). Para não misturar os aspectos éticos deste problema com a palhaçada de decisão que tomaram no parlamento, vou separar o post em duas partes.

Uma premissa muito invocada para negar aos casais homossexuais a possibilidade de adoptar é a de que as crianças têm direito a um pai e uma mãe. A premissa está correcta, mas a inferência é falaciosa. Qualquer criança tem direito a um pai e a uma mãe, mas um direito é um dos lados de uma relação que, necessariamente, implica um dever de alguma outra parte. Um só pode ter um direito se outros tiverem algum dever para consigo. Assim, as crianças têm o direito a um pai e uma mãe porque os pais e as mães têm obrigações especiais para com os seus filhos. Mas isto só quer dizer que uma criança tem o direito àquele pai e àquela mãe que a conceberam. Não é o mesmo que ter o direito que lhe arranjem um pai e uma mãe, porque isso implicaria que alguém tivesse a obrigação moral de se tornar pai ou mãe dessa criança, e ninguém tem a obrigação de ser pai ou mãe dos filhos dos outros.

Isto não quer dizer que não tenhamos obrigações para com todas as crianças. Podemos falar no direito da criança à educação, à saúde, a crescer num ambiente propício ao seu desenvolvimento, à oportunidade de construir o seu futuro e assim por diante, porque temos realmente a obrigação moral de contribuir para isso. Não apenas para os nossos filhos, mas para os filhos de todos. E é o que fazemos, a muitos níveis, desde os impostos para o ensino público às restrições na programação da TV. Mas estas obrigações não incluem ser pai ou mãe. Um ponto importante nesta discussão é que, para cada criança, só há duas pessoas que têm a obrigação moral de serem pai e mãe. Quaisquer outros que se ofereçam para substituir progenitores ausentes, a bem da criança, farão mais do que a sua obrigação.

Além disso, temos de considerar também o problema ético da coacção, que é o papel da lei, e que pode tornar o resultado moralmente condenável mesmo quando o objectivo é de louvar. Por exemplo, se os pais não querem cuidar dos seus filhos, a lei tem de permitir que os dêem para adopção ou que os deixem em alguma instituição. Isto porque, na prática, não há forma moralmente aceitável de obrigar os progenitores a cumprir a sua obrigação moral. Mesmo no interesse da criança há limites para aquilo que é legítimo legislar.

Para o problema ético da adopção por casais homossexuais temos de pensar nestes vários aspectos. Por um lado, não é relevante que a criança tenha direito a um pai e a uma mãe porque esse direito apenas obriga, moralmente, os seus progenitores. Não justifica exigir de mais ninguém essa responsabilidade. A obrigação da sociedade zelar pelos interesses da criança não inclui encontrar-lhe um pai e uma mãe. Mas inclui permitir, a quem queira e possa, que cuide da criança como se fosse sua. Proibir que a criança seja adoptada por alguém que lhe daria mais amor, apoio e oportunidades do que teria numa instituição é que viola os direitos da criança.

Por outro lado, a moralidade de uma lei não é função apenas do seu objectivo. Depende também dos meios. E se até no caso dos pais biológicos o direito da criança a ter um pai e uma mãe não prevalece sobre outros direitos, como o de não ser forçado a cuidar da criança mesmo querendo faltar a essa obrigação, mais cuidado ainda há que ter com quem se voluntaria para adoptar uma criança que não tem pais. E não ser discriminado com base no sexo ou na orientação sexual é um direito mais importante do que o "direito" de abandonar os filhos no orfanato.

Eticamente, o argumento de que se deve proibir a adopção a casais homossexuais porque a criança tem direito a um pai e uma mãe é uma falácia para tentar disfarçar um preconceito injusto. É falácia porque pretende enganar com uma inferência inválida, visto que esse direito da criança não obriga moralmente mais ninguém além dos seus pais. E é injusto porque não há qualquer indício objectivo de que os casais homossexuais sejam, em média, piores do que os orfanatos; porque mesmo que fossem seria injusto julgar cada casal pela média do grupo; e porque esta proibição discrimina as pessoas por atributos em relação aos quais o Estado devia ser imparcial, como o sexo e a orientação sexual.

Pior ainda, no nosso Parlamento conseguiram apresentar argumentos ainda mais imbecis do que este. Mas isso fica para a próxima parte.

1- O 126/XII do BE e o 178/XII do PEV.
2- Para encomendar posts, ver aqui.

Editado para corrigir: inicialmente tinha escrito que me tinham pedido para escrever sobre isto antes da votação, mas afinal foi no dia seguinte.

domingo, março 11, 2012

Treta da semana: luzes misteriosas.

O Expresso noticiou hoje uma «Explosão de luz misteriosa em cidade dos EUA», «A sete dias de se assinalar os 15 anos do avistamento das "Luzes de Phoenix"»(1). Pelo Google encontra-se imensas referências a este mistério. Enquanto a senhora fala do trânsito, vê-se o que dizem ser uma “luz muito brilhante, quase como uma explosão” lá atrás.



Na verdade, pelos faróis dos carros é fácil de ver que não é preciso uma luz muito brilhante para saturar aquela câmara de visão nocturna. A tal “explosão de luz” não precisa de ser muito forte e, numa cidade, há muitas luzes capazes de fazer um efeito daqueles nesse tipo de câmara. Um excelente exemplo de uma notícia que não o é...

Quanto à hipótese de ter sido um transformador de alta tensão a explodir, esses dão mais estardalhaço.



1- Expresso, Explosão de luz misteriosa em cidade dos EUA

domingo, março 04, 2012

Treta da semana: “pessoa potencial”.

O Público noticiou que um «Artigo científico defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido». Como de costume, o título é enganador. Sugere terem descoberto algum facto, até agora desconhecido, que legitima moralmente o infanticídio. Na verdade, é um artigo do Journal of Medical Ethics, na secção de “Lei, ética e medicina”, com um argumento já conhecido e uma conclusão demasiado modesta para a polémica que causou:

«Se critérios como os custos (sociais, psicológicos, económicos) para os potenciais progenitores são razões suficientes para um aborto mesmo quando o feto é saudável, se o estatuto moral do recém-nascido é o mesmo do [feto]* e se nenhum tem valor moral em virtude de serem pessoas potenciais, então as mesmas razões que justificam o aborto também justificarão a morte de uma pessoa potencial quando no estado de recém-nascido»(2)

A implicação é trivialmente correcta. Se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também será. E mesmo discordando das premissas, até concordo que quaisquer factores que justifiquem a morte de um feto justificarão também a morte do recém-nascido, pois não há diferença eticamente relevante entre estas fases do desenvolvimento do mesmo ser. A polémica só surgiu devido à forma como a maioria das pessoas chega a uma opinião sobre isto.

Para alguns, as religiões dão uma solução apelativa. Um deus qualquer criou os humanos à sua imagem, por isso os humanos são sagrados e, assim, não se pode matar nem o embrião, nem o feto nem o recém-nascido. Dê lá por onde der. Infelizmente, além de serem impossíveis de testar, e pouco plausíveis, estas alegações não justificam nada. Termos sido criados à imagem de um deus, mesmo que fosse verdade, seria eticamente irrelevante. Nesta abordagem, a ética é um mero apêndice da superstição e, como os crentes tendem a levar-se muito a sério, reagem fortemente contra qualquer discussão ética que desconsidere estas crenças (3).

Para a maioria dos que rejeitam a tese religiosa, o problema do aborto é minimizar a repugnância que sentem pela morte de um ser humano e por forçar uma mulher a levar a termo uma gravidez indesejada. Esta abordagem também não assenta na ética porque a solução consiste em, primeiro, escolher um ponto no processo de gestação que minimiza o desconforto e, só depois, procurar algo que sirva de desculpa para a escolha. Conforme o ponto escolhido, dirão que é nesta semana porque antes disso não sente, ou naquela porque só depois consegue sobreviver fora do útero, ou na outra em que surgem neurónios, se formam os órgãos e assim por diante. Isto não é tão mau como a posição religiosa porque, pelo menos, estas alegações factuais têm fundamento. Mas sofre do mesmo problema de reduzir a ética a um mero disfarce para algo que não tem fundamento ético. Como esta abordagem é frequentemente emocional, a reacção a opiniões contrárias também tende a ser animada. Daí a polémica em torno deste artigo.

No entanto, visto friamente, o argumento do artigo faz sentido. Se assumirmos que uma vida só tem valor se tem a capacidade, presente, de saber que existe, de formar planos para o seu futuro, e de ter desejos e expectativas, então só muito depois do nascimento é que um ser humano passa a merecer protecção especial. Isto é, fundamentalmente, o mesmo que faz quem defende que a pessoa só surge às seis semanas de gestação, ou às dez, doze, ou qualquer outro número. O ponto em que consideram que a pessoa surge é diferente, e algo chocante por ser tão tardio, mas ao menos este artigo invoca atributos que são relevantes para caracterizar uma pessoa. Os atributos apontados como cruciais por quem diz que a pessoa surge durante a gestação, como neurónios, órgãos formados, capacidade de respirar fora do útero ou sentir dor, não caracterizam uma pessoa. Na verdade, um recém-nascido não manifesta qualquer característica cognitiva que não esteja presente também na maioria dos mamíferos.

O problema fundamental, em todos estes casos, é ignorar que “pessoa” não é apenas um conceito arbitrário. É um termo que também refere seres concretos, com uma realidade biológica que não se deve ignorar. Vamos supor que, por volta dos três anos de idade, os chimpanzés se tornam auto-conscientes, capazes de planear o seu futuro e o que mais for necessário para ser pessoa. Dou este exemplo porque ninguém dirá que um chimpanzé é pessoa só por ter neurónios, sentir dor ou essas coisas que alegam para os embriões e fetos humanos. É pessoa apenas se for capaz de se sentir pessoa. Neste caso, deve-se proteger a vida do chimpanzé tal como se protege as vidas de outras pessoas. Mas seria absurdo restringir isto ao chimpanzé de três anos, excluindo-o quando só tem dois anos de idade. É o mesmo chimpanzé, o mesmo organismo, e todo o mal que lhe fizermos aos dois anos terá consequências quando tiver três. Não faz sentido dizer que é legítimo matá-lo antes do terceiro aniversário, enquanto “não é pessoa”.

O erro dos autores deste artigo não está na escolha dos atributos que distinguem as pessoas. Pelo contrário; os atributos que apontam – auto consciência, capacidade de planear o futuro e afins – são consensualmente aceites como características de pessoa, e muito mais relevantes do que neurónios ou sentir dor. O erro está em assumir que uma vida só tem valor depois de manifestar essas características e que, antes disso, o que designam por «potential person» não tem relevância moral, apesar de se tratar do mesmo ser.

* No original está “the same as the infant”, mas, no contexto, isto não faz sentido e presumo ser gralha.

1- Público, Artigo científico defende como moralmente aceitável a morte de um recém-nascido
2- Giubilini, Minerva, After-birth abortion: why should the baby live?, J Med Ethics (2012).
3- Por exemplo, este comentário do Jairo, «Eu também defenderia até à morte a liberdade para os recém-nascidos terem uma vida. Entenda-se: até à morte de cabrões como Peter Singer, se fosse necessário.»