segunda-feira, outubro 30, 2006

Lei Natural, Aborto e coiso e tal...

Segundo declarações da Conferência Episcopal Portuguesa:

«o aborto provocado é um pecado grave porque é uma violação do 5º Mandamento da Lei de Deus, “não matarás” [...] Mas este mandamento limita-se a exprimir um valor da lei natural, fundamento de uma ética universal.»

É errado falar de leis naturais em questões de facto, e é absurdo fazê-lo em questões de valor. Em ambos os casos qualquer conclusão é provisória e qualquer premissa pode estar errada, mas em questões de valor nem podemos reduzir o efeito da subjectividade. Somos seres falíveis a escolher o que é bom e mau numa Natureza que é indiferente a estes conceitos. Os católicos erram em não reconhecer a possibilidade de erro nem a natureza provisória destas escolhas, mas principalmente por não reconhecer a subjectividade inerente a qualquer juízo de valor. Infelizmente, este é também o erro de muitos ateus.

O erro está em ignorar a subjectividade da escolha de um critério que distinga o bem do mal. A maior felicidade da maioria, os direitos deste ou daquele, o embrião não é pessoa, a dignidade da pessoa humana, a vontade dos deuses, e assim por diante. Todos são treta pois todos se apresentam como critérios universais quando não passam da manifestação das preferências subjectivas dos seus defensores.

Felizmente, a sociedade tem evoluído (nalguns sítios) da aplicação de regras absolutas do bem e do mal para formas de mediar conflitos entre diferentes noções de moral, bem visível na protecção estendida aos mais indefesos. A escolaridade obrigatória, as leis do trabalho infantil, a regulação da sexualidade de menores, entre outras, protegem os interesses das crianças mesmo antes de elas os poderem compreender. Os pais podem achar-se no direito de fazer o que quiserem dos filhos, mas os filhos podem vir a discordar, e aí a sociedade intervém para minimizar as consequências deste conflito de interesses. A presente lei do aborto, apesar dos seus problemas, tem esta virtude de mediar interesses da mãe e do embrião.

Preocupa-me que muitos dos que se pronunciam acerca deste tema regridam ao absolutismo. Seja pela dignidade humana, seja pelos direitos da mulher, esquecem-se que a melhor maneira de resolver estas coisas é mediando o conflito de interesses, e não decidindo arbitrariamente por um dos lados em detrimento do outro.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Consequências de não ser pessoa.

Uma boa forma de testar uma hipótese é pelas suas consequências. Se é uma hipótese descritiva, confrontamos previsões com observações. Se é uma hipótese normativa, confrontamo-la com outras normas que aceitamos. Proponho que a hipótese de só se tratar como pessoa um ser que manifesta o atributo X falha este teste, qualquer que seja o X.

Vamos assumir que há um período no desenvolvimento embrionário, antes do tal atributo X se manifestar, durante o qual aquele grupo de células é moralmente equivalente a quaisquer outras células do corpo da mãe. Seria legítimo que a mãe retirasse ao embrião as células que dão origem ao olho esquerdo (ou a um braço, ou pé, enfim, percebe-se a ideia). Isto choca com a nossa noção do que é moralmente aceitável, mas podemos salvar a nossa hipótese original com uma hipótese auxiliar: não é aceitável fazê-lo porque, mais tarde, quando for pessoa, o filho vai sofrer as consequências desta acção. Por outro lado, se destruirmos o embrião antes de ser pessoa nunca é pessoa, e não há problema moral.

Mas vamos supor que há um tumor naquelas células, e removê-las é a única forma salvar o embrião. A hipótese que adicionámos condena esta acção, pois se o embrião morrer não há consequências para uma pessoa, mas se for salvo uma pessoa vai ter que viver sem um olho. Além disso esta hipótese adicional tem a particularidade muito curiosa de não considerar a morte uma consequência relevante.

Pior ainda é a possibilidade de impedir a manifestação do tal atributo X, continuando o desenvolvimento. Suponhamos que o atributo X é o pensamento, ou consciência. Se anestesiamos um ser na fase embrionária e o mantemos inconsciente durante a gestação, infância, puberdade, e assim por diante, podemos levá-lo a qualquer estágio de desenvolvimento sem o dever moral de o tratar como pessoa. Isto pode ser muito conveniente para criar dadores de órgãos, mas mais uma vez entra em conflito com a nossa percepção do que é moral e imoral. Não parece legítimo escaparmos do dever de o tratar como pessoa só porque o impedimos de manifestar o atributo X.

Finalmente, os atributos característicos duma pessoa são mais evidentes em muitos animais adultos que num humano recém nascido. Mas poucos estão dispostos a aceitar a exclusão de recém nascidos, ou a inclusão de macacos, cães, e porcos, na categoria de pessoa. Por isso a maioria dos que defende esta hipótese opta por se restringir arbitrariamente á nossa espécie, para que possa escolher atributos a gosto (por exemplo, ter neurónios) sem se preocupar com outros animais.

A hipótese que nos tornamos pessoas quando manifestamos certos atributos não é generalizável, depende de premissas ad hoc, não oferece uma forma clara de escolher os atributos, e tem que ser protegida por hipóteses auxiliares inventadas caso a caso para evitar conflitos com a nossa noção do que é aceitável.

É preferível tratar como pessoa todo o ser que possa vir a considerar-se a si próprio como pessoa. Resolve os problemas acima duma forma satisfatória, é generalizável a qualquer espécie (se um chimpanzé tiver um nível de consciência suficiente para se considerar uma pessoa, temos certamente o dever moral de o tratar como tal), não precisa de hipóteses auxiliares criadas caso a caso, e captura bem o cerne do que é ser pessoa, que é essa capacidade de autoconsciência, do sujeito se identificar como sujeito. E exprime adequadamente o que vemos de especial num recém nascido, que não é os atributos que manifesta (a saber, manter os pais acordados e converter leite em fezes amarelas), mas a capacidade que tem para se tornar em algo como nós.

terça-feira, outubro 24, 2006

Pessoa ou não: um exemplo.

O Pedro, o Paulo e o José sofrem um acidente de automóvel. O Pedro e o Paulo estão em coma irreversível. O José vai perder toda a memória, e vai estar em coma durante 9 meses, mas será capaz de aprender a falar, a pensar, e eventualmente de levar uma vida normal.

Os pais do Pedro consideram que mesmo em coma irreversível ele é uma pessoa, e vão cuidar dele até que morra naturalmente, leve o tempo que levar. Os pais do Paulo acham que o seu filho já não é pessoa, pois nunca poderá ter consciência de si como tal, faça-se o que se fizer. Assim decidem desligar o ventilador e terminar a vida do Paulo.

Em ambos os casos penso que não podemos impor aos pais a nossa definição de pessoa, pois qualquer critério que seguíssemos iria ser tão subjectivo como os destes pais, e para o Pedro e Paulo não faz qualquer diferença.

O caso do José é diferente. Com tempo e cuidados, ele será capaz de se pronunciar acerca do seu estatuto como pessoa. Qualquer que seja a nossa opinião ou a dos pais, não a podemos impor ao José desligando-lhe a máquina.

Todos vocês podem formar opinião acerca de quando me tornei pessoa. Uns dirão que foi quando apareceram os primeiros neurónios, outros quando me tornei capaz de sobreviver fora do útero, outros dirão que foi só meses ou anos depois de ter nascido, quando finalmente desenvolvi capacidades mentais acima das dos outros animais que não consideramos pessoas. Se o problema é apenas rotular um ser de pessoa ou não pessoa, escolham o critério que mais vos agrade. É indiferente, e sempre subjectivo.

Mas precisamente por ser subjectivo, desde que haja a possibilidade de eu vir a discordar do vosso critério não é legítimo que eu sofra as consequências das vossas opiniões. Só quando essa possibilidade desaparecer de vez é que terão o direito de me tratar como não sendo pessoa.

Pessoa ou não: quem decide?

Muitos consideram que na base de problemas como o aborto está o estatuto do embrião, e temos que decidir se é pessoa ou não. Eu vejo um problema mais fundamental: a legitimidade de decidir tal coisa.

Abundam exemplos de tais decisões, em que crianças, mulheres, e membros de certa raça, credo, casta, ou nação são considerados menos que pessoas. Invariavelmente, são decisões condenáveis, porque ignoram que os que classificam de sub-humanos seriam capazes de discordar da classificação se as condições o permitissem.

É importante salientar aqui a natureza hipotética desta condição. A maioria das crianças que são prometidas em casamento, vendidas como escravas, ou mutiladas em nome da fé não compreendem que têm direitos que estão a ser violados. Muitas das mulheres que são ensinadas desde o berço a obedecer ao pai, ao irmão, e ao marido não percebem que isto não é como deve ser. O sistema de castas está tão entranhado na cultura de certos povos que é muito difícil explicar a injustiça desta discriminação. Mas todos seriam capazes de discordar destas injustiças se tivessem as condições necessárias para o fazer: tempo, educação, e conhecimento das alternativas.

Por isso considero sempre ilegítimo este tipo de discriminação. Qualquer ser que tenha a capacidade de se reconhecer como pessoa é pessoa em virtude dessa capacidade, independentemente do que diz a religião, a nossa opinião, ou um referendo. Nem importa que esteja impossibilitado de o fazer por força das circunstâncias, seja pela sua idade seja pela sua educação. Uma rapariga pedir que lhe cortem o clitóris para ir para o céu não legitima esta barbaridade. Temos que considerar que a rapariga teria outra opinião se tivesse mais uns anos, se percebesse que há muitas crenças religiosas, e que não é necessariamente verdade que os deuses se ofendam com uma parte tão inofensiva da anatomia humana. É esta capacidade de decisão autónoma que faz da rapariga uma pessoa, e que nos obriga a respeitar os seus interesses mesmo quando ela não a pode exercer.

O caso da legalização do aborto é complexo, e depende de vários factores. Mas o argumento que defende tratar-se de um crime sem vítima porque o embrião não é pessoa é um disparate. Comete este erro que, precisamente por ser tão grave e frequente, já devíamos ter aprendido a evitar. Dadas as condições necessárias, aquele ser é tão capaz como qualquer um de nós de compreender que tem direito de viver, e que deve ser respeitado como pessoa. Isso torna ilegítimo que o classifiquemos de outra forma.

Compreensão e Respeito

A publicação no Diário Ateísta do meu post Religião Imoral suscitou os comentários previsíveis: temos que compreender que muitos religiosos não levam à letra os seus textos sagrados, e temos que respeitar as ideias dos religiosos se os queremos persuadir a aceitar as nossas.

Com o primeiro ponto concordo, e era mesmo essa a ideia que queria transmitir. À parte dos fundamentalistas mais fanáticos, os crentes tendem a filtrar as tradições religiosas para que se conformem à sua noção do que é certo e errado. Os que não o fazem são tidos como extremistas. É por isso que digo que não é a religião que nos dá a moral, mas a moral que deve ditar o que aceitamos ou não como religião. A religião como fundamento ético não só é treta como é indesejável e perigosa.

Com o segundo ponto discordo. Imaginem que um político defendia que as mulheres não devem ter cargos de chefia, e que a sua função deve ser ficar em casa a cuidar da família. Ninguém diria que temos que respeitar esta opinião, ou que devemos criticá-la com diplomacia para que o político melhor aceite a opinião contrária. O justo seria expor esta ideia como ridícula e absurda, e mesmo criticar o político por defender tais barbaridades.

Se for um padre é o mesmo. O absurdo não é ser uma ideia política, nem se torna menos absurda por convicção religiosa. Disparate é disparate, venha de onde vier, e merece ser criticado da mesma forma independentemente da origem.

Nem concordo que eu deva ser diplomático para ser persuasivo, pois o meu objectivo não é converter crentes ao ateísmo ou ao cepticismo. O que quero é que todos se sintam livres de criticar as crenças dos outros e obrigados a justificar as suas, quaisquer que sejam, pois é a única forma de coexistirmos pacificamente numa sociedade pluralista e livre. Se nessa sociedade houver mais religiosos que ateus, pouco me importa. Quero lá saber se gostam mais de chocolate ou de baunilha.

sábado, outubro 21, 2006

Artistas pirateados

Hoje li mais uns comentários de artistas Portugueses no site Pro-Music. É deprimente ver como a situação é distorcida e mal compreendida. Por exemplo, a Mafalda Arnauth comenta:

«Por favor, façam de um disco um amigo, escutem-no onde é possível, deixem-se seduzir por ele, descubram-no e se ele merecer, comprem-no, ofereçam-no a outros ou esperem que alguém faça o mesmo por vós… porque só assim é que nós podemos garantir que vamos ter a possibilidade de continuar a fazer mais!»

Mafalda: estão-te a enganar. Convenceram-te que os músicos têm que viver das migalhas das editoras, e que sem vender discos não há música. É treta, e vou tentar mostrar que ser músico não é assim tão diferente de outras profissões.

Um artista como a Mafalda tem que ter uma longa formação especializada, o que exige muito tempo e dedicação. Um investigador também; no meu caso foram cerca de 14 anos desde que comecei a licenciatura até que terminei o pós-doutoramento. Um artista tem que ser criativo no seu trabalho. Um investigador também; não se publica um artigo científico a nível internacional sem inovar, sem criar algo que não existia até então. Um artista tem que ser dedicado, pois compor e gravar um álbum dá muito trabalho. Um investigador e professor também; as aulas não se preparam sozinhas, e atrás de cada artigo de uma dúzia de páginas podem estar meses de trabalho e criatividade.

Claro que há muitas diferenças entre a mim e a Mafalda (basta ver as nossas fotografias... os meus alunos prefeririam de certeza que fosse a Mafalda a dar-lhes aulas). Mas a diferença mais relevante é que eu sou pago pelo trabalho que faço, enquanto que a Mafalda recebe uma parte do lucro da editora. E é aqui que estás a ser enganada, Mafalda.

Todo o trabalho criativo que eu faço é livre. O software que escrevo pode ser descarregado da minha página, não cobro aos meus alunos quando usam o conhecimento que lhes transmiti, nem recebo dinheiro quando outros usam os métodos que desenvolvo ou os resultados que publico. Mas isto é óptimo para mim, porque ninguém me pode privar do fruto do meu trabalho. A maioria dos artistas como a Mafalda não tem tanta sorte, por causa dos direitos de autor.

Apesar do nome, raramente são do autor. É a editora que detém os direitos sobre o que o artista cria, e é isto que torna o artista dependente dos lucros da editora. Em vez de pagarem à Mafalda pelo trabalho que faz, privam-na dos direitos sobre o que cria em troca duma parte do dinheiro das vendas, e assim sem vendas a Mafalda não se safa. E se fosse há uns anos a Mafalda não tinha alternativa. Não seria prático ter a sua fábrica de discos ou CDs, e carrinha para os levar às lojas.

Mas agora a Mafalda pode fazer chegar a sua música a milhões de pessoas. E numa audiência tão grande há certamente muitos dispostos a pagar à Mafalda pelo seu trabalho: por concertos, para gravar um álbum, para compor. Assim a Mafalda pode começar a ganhar a vida como qualquer outro profissional que é pago pelo trabalho que faz.

Mafalda, compreendo que a Universal fique alarmada quando milhões de pessoas podem ouvir a tua música sem pagar. Mas para ti é bom que não tenham que pagar à tua editora para ouvir a tua música. É bom porque a maioria dos teus admiradores prefere pagar-te a ti pelo teu trabalho do que à Universal pelos direitos que te tiraram.

A tecnologia no século XX tornou artistas como tu dependentes de uma infra-estrutura dispendiosa que tinha que ser subsidiada. Mas essa dependência acabou. A bem dos músicos e da música, tentem compreender isso.

Religião Imoral

Religião e moral normalmente aparecem juntas, e dizem-nos muitas vezes que a religião fundamenta a nossa moral, e que as questões morais são do domínio da religião. Mas é treta.

Vejamos a religião Cristã, que considera a Bíblia como um conjunto de textos sagrados, divinamente inspirados, que servem de guia moral. Mas só se for para mostrar o que não fazer. O antigo testamento está repleto de barbaridades, desde bater nas crianças (Prov. 13:24) até ao genocídio a mando de deus, passando pelo incesto, escravatura, e maus tratos às mulheres. O novo testamento parece um pouco melhor, mas mesmo assim aceita-se a escravatura (e.g. Filémon), e a discriminação sexual continua (e.g. 1 Timóteo 2:11-12).

A maioria dos cristãos dirá que temos que considerar o contexto social e os costumes da época, e não podemos aplicar directamente os mesmos princípios à nossa sociedade. Mas então a Bíblia não é um bom guia moral para quem vive agora. Além disso, não me convencem que mesmo há dois mil anos atrás o genocídio, a escravatura, e os maus tratos a mulheres e crianças eram coisas boas, e apenas se tornaram más porque passaram de moda.

E os dez mandamentos. Outro embuste. Se tanto, aproveita-se dois ou três. Os dois primeiros proíbem-nos de ter outros deuses e de dizer o nome deste. Duas palavras, meus senhores: liberdade religiosa. O terceiro diz que não podemos trabalhar ao Sábado, sob pena de morta. Sinceramente. O quarto diz que devemos honrar os nossos pais. Se forem decentes, está bem, mas pais como os do antigo testamento, que davam paulada nos filhos e os apedrejavam por desobediência, esses não.

Em quinto lugar, não matarás. Curiosamente, aqui os cristãos já não exigem que se veja isto no contexto social e cultural. É que este mandamento quer dizer especificamente não matarás Judeus. Como ilustram inúmeros exemplos no antigo testamento, matar outros grupos étnicos (incluindo mulheres e crianças) era perfeitamente aceitável. Mas vá lá, aceite-se este com as devidas adaptações.

Em sexto, “Não cometerás adultério”. Eu propunha substitui-lo por “Não meterás o bedelho no que não te diz respeito”. Em sétimo, não roubar. Novamente, o que eles queriam dizer era não roubar os da tribo, mas está bem, este serve.

O oitavo proíbe que levantemos falso testemunho contra o próximo. Este está no bom caminho, mas deixa muito a desejar. Se é para ser um guia moral, eu punha “Não serás desonesto”, e incluiria nisto a proibição de impingir religiões às crianças, de prometer o céu e o inferno, e de afirmar que se sabe o que deus quer ou não quer.

Os últimos dois são treta: não desejar a mulher do próximo e não cobiçar. Se não fazemos mal a ninguém, deixem-nos lá sonhar... Em suma, podemos adaptar o não roubar nem matar, incluir o do falso testemunho numa obrigação de honestidade, e do resto não se aproveita nada.

A própria ideologia cristã é profundamente imoral. O seu símbolo é o sacrifício de um inocente para redimir outros. Todos temos que ser redimidos porque já nascemos culpados por aquilo que os nossos antepassados fizemos. O grande pecado que nos condena foi descobrir a diferença entre o bem e o mal, e foi cometido por quem ainda nem sabia distinguir o bem do mal! A base do cristianismo é injustiça atrás de injustiça. Que raio de fundamento para a moral.

Mas o pior de tudo é a ideia que devemos basear a nossa moral na Bíblia, ou em qualquer outra coisa. Aquele que não mata nem rouba porque considera errado fazê-lo tem uma moral superior ao que não mata nem rouba porque um livro o proíbe. É melhor pessoa a que age bem a mando da sua consciência do que aquele que age a mando de deus, da Bíblia, dos padres, da lei, ou de outro factor externo qualquer.

A religião não nos pode dar moral, pois é a moral que fundamenta todas as nossas escolhas. A nossa consciência é que deve filtrar os disparates e injustiças das tradições religiosas. Se o religioso não impõe uma moral à sua religião, a religião torna o religioso imoral.

terça-feira, outubro 17, 2006

A Fotocópia

De volta aos direitos de autor, desta vez partindo de um comentário ao meu post de Setembro Direitos, cópias e computadores:

«Curiosa argumentação. Será que podemos pela mesma ordem de ideias dizer que a fotocópia integral de "Romeu e Julieta" é uma outra forma de representação e não o original?» (Rui Meleiro)

Sim, a fotocópia não é o original, mas dá-nos um bom exemplo dos problemas de estender ao conteúdo digital o mesmo tipo de protecção conferida a bens materiais.

Em primeiro lugar, a restrição do direito de criar fotocópias visa regular a prática comercial. Uma editora não pode simplesmente fotocopiar livros de outra e vendê-los. Mas não se processa os miúdos que querem jogar jogos de role play e não têm dinheiro para comprar os manuais, ou os estudantes universitários que estudam por fotocópias dos livros da biblioteca, ou os investigadores que fotocopiam artigos porque não estão para comprar uma revista só por três ou quatro páginas. O objectivo desta restrição é regular a concorrência e dar algumas garantias de retorno para quem investe na edição de um livro, e não o de regular o que cada um faz como cidadão privado.

Em segundo lugar, esta restrição depende da noção de cópia, uma noção muito mais específica que a de representação. Uma fotocópia é uma forma de representar a informação contida num desenho do Rato Mickey. Outra forma é definir por equações as formar geométricas que compõem o Rato Mickey (elipses, e pouco mais, nem é complicado). A primeira é uma cópia, e está coberta pelos direitos de autor. Mas um conjunto de equações não é uma cópia do Rato Mickey, e não viola direitos de autor. Este tipo de codificação é muito usado em conteúdo digital. Um ficheiro WMF codifica imagens desta forma, e um ficheiro MP3 é um conjunto de parâmetros para as equações que definem o som. Qualquer ficheiro comprimido usa este tipo de codificação para transformar uma sequência de zeros e uns numa outra sequência mais curta que pode ser convertida de novo no original.

Finalmente, a questão ética, a tal ideia que o download é roubo. A fotocópia também ilustra bem este erro: fotocopiar não é o mesmo que o roubar. É certo que se fotocopio um livro em vez de o comprar estou a privar o autor e editor da remuneração pelo seu trabalho. Mas o mesmo se passa quando empresto os livros a familiares e amigos, ou quando compro livros em segunda mão. Não comprar um livro porque já o li não é de forma nenhuma o mesmo que roubar.

Este direito de exclusividade de cópia não tem fundamento ético. É apenas um incentivo ao investimento no fabrico e distribuição de bens como livros, discos ou filmes. Nem sequer incentiva a criatividade, e matemáticos, professores, ou investigadores são igualmente criativos sem depender deste tipo de protecção. Por isso temos que pesar bem os custos e os benefícios desta forma de subsidiar certas industrias. Proibir a venda não autorizada de fotocópias é uma forma razoável de proteger a remuneração do investidor. Proibir a venda de livros em segunda mão ou prender todos os estudantes universitários não seria razoável, pois o custo social é bem maior que o benefício.

Proibir a distribuição gratuita de toda e qualquer sequência de números que codifique uma obra protegida não só é transformar o direito de autor numa forma de censura, como é dar um tiro no pé. É contrário aos interesses da sociedade sacrificar uma forma de distribuição gratuita para proteger um modelo obsoleto, ineficiente e caro de fazer chegar as obras ao consumidor. Então como remunerar os artistas? Da mesma forma que os matemáticos, os professores, os investigadores, e tantos outros profissionais cuja criatividade não fica aquém dos cantores pimba e afins, e que são pagos pelo trabalho que fazem.

Maria Schneider é um bom exemplo de um modelo alternativo. Os custos de gravação e produção são pagos pelas encomendas de alguns fans que compram o disco antes de ser editado, e que assim participam no processo criativo. Eliminando as empresas discográficas como intermediários, a autora lucra em poucos milhares de exemplares o que ganharia vendendo centenas de milhares por intermédio duma discográfica. Nem sequer tem que se preocupar com protecções de cópia, pois a disseminação da sua obra por potenciais fans apenas aumenta a sua audiência e o seu sucesso.

domingo, outubro 15, 2006

Ciência e naturalismo, parte 2

Ao meu outro post sobre esta matéria um leitor comentou: «o objecto de estudo para poder ser alvo de uma abordagem científica [...] tem que ser material, concreto, ou seja natural». Este comentário merece consideração porque me parece exprimir uma opinião muito comum, e porque me parece estar parcialmente certo.

Mas vou começar pelo que penso estar errado. Por um lado, o objecto da ciência não tem que ser material. A velocidade não é material. A energia também não. O principio de incerteza de Heisenberg, a selecção natural, o conceito biológico de espécie, a cinética duma reacção química, entre muitos outros exemplos, mostram que a ciência aborda muito mais que apenas a matéria. Alguns obstarão que estes não são os objectos da ciência, que são apenas as hipóteses e teorias que a compõem. Mas não podemos distinguir as hipóteses dos objectos da ciência, pois quando estudamos algo estudamos sempre observações e hipóteses. Quando estudamos a gravidade, podemos ter uma hipótese materialista que diz que a gravidade é mediada pela troca de partículas de matéria. Mas podemos igualmente ter uma hipótese não materialista, que diz que a gravidade é uma distorção na geometria do espaço-tempo. O objecto de estudo não pode ser uma gravidade desligada daquilo que propomos como hipóteses, e todos os conceitos científicos, materialistas ou não, são também objecto da ciência.

Por outro lado, o objecto da ciência não tem que ser natural. Natural e sobrenatural são categorias arbitrárias e irrelevantes para o estudo de qualquer fenómeno. Um exemplo concreto: até ao século XIX, pedras caírem do céu era considerado um fenómeno sobrenatural, relatado em mitos e lendas religiosas, mas rejeitado pela comunidade cientifica como uma violação das leis da natureza. Mas em poucas décadas revelou-se ser um fenómeno perfeitamente natural. O que mudou? Apenas a ideia do que era ou não permitido pelas leis da natureza.

Hoje em dia já nem falamos de leis científicas. No último século a comunidade científica ganhou alguma da modéstia que lhe faltava na época Vitoriana, e sabemos que tudo o que propomos como limites ao natural não passa de teorias sujeitas a revogação, e rotular um fenómeno de “sobrenatural” não o coloca fora do alcance da ciência.

Finalmente, temos o requisito que o objecto de estudo científico seja concreto. Concordo. A hipótese que “Ah, e tal... deve ser assim tipo uma cena qualquer” não pode ser objecto de estudo científico. Deuses, demónios, milagres e afins muitas vezes não podem ser estudados cientificamente porque os termos são indefinidos. A hipótese que um deus pode acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz é uma hipótese suficientemente concreta para ser científica. A ciência moderna diz-nos para a rejeitar, pois tanto quanto sabemos é impossível acelerar um tomate a uma velocidade superior à da luz. Mas a hipótese que um deus pode violar as leis da física não é uma hipótese científica porque é um disparate. Esta hipótese não escapa à ciência por ser imaterial ou sobrenatural, mas simplesmente porque é uma contradição: “leis da física” designa o que não pode ser violado, nem pelo Zé da esquina nem pelos deuses.

Qualquer hipótese que propõe algo observável pode ser abordada cientificamente, seja sobre entidades naturais, sobrenaturais, materiais ou imateriais. Para escapar à ciência tem que ser impossível determinar a sua verdade, ou por ser uma hipótese acerca do que não é observável (o unicórnio invisível cor de rosa) ou por não fazer sentido (a santíssima trindade).

segunda-feira, outubro 09, 2006

Universo de Plástico

Desta vez vou pôr a ciência de parte. Isto não é um argumento contra o criacionismo. É apenas uma opinião: o universo criacionista é foleiro. É feio. É piroso, bárbaro, e de mau gosto. Ainda bem que o criacionismo é falso, senão seria como viver numa caneca das Caldas. Ora vejam.

A gazela e a chita são animais nascidos para a velocidade. A gazela tem que ser rápida para não ser comida pela chita, e a chita para não morrer à fome. Compreendendo a evolução destas espécies podemos imaginar o longo conflito que moldou as duas linhagens. Algo terrível mas ao mesmo tempo belo e fascinante por ser um processo natural, sem plano, sem intenção nem maldade. Mas a chita e a gazela como criações de um ser inteligente são uma barbaridade. O seu conflito é um castigo, uma tortura com requintes de malvadez. A sua velocidade é uma ferramenta concebida para infligir o máximo sofrimento. Um acidente infeliz de um processo natural e inconsciente torna-se num mal evitável e intencional.

E a lesma. Como produto de evolução é um exemplo interessante de um processo que explora todas as possibilidades acessíveis, das mais simples às mais complexas. Mas como concepção inteligente é apenas testemunho de incompetência infantil e falta de imaginação. «Já sei! Vai ser assim tipo macaco do nariz, mas deste tamanho, e a deitar ranho! He he he.»

Outro exemplo, que me ficou na memória desde criança, é o dos peixes pulmunados africanos. Para sobreviver à seca enterram-se na lama, fechados num casulo, e podem ficar assim até dois anos à espera da chuva. Quando chove, passam umas poucas semanas a alimentar-se e a reproduzir-se freneticamente, e depois lá voltam para o buraco para mais um ano ou dois de seca (literalmente). Nem têm tempo para gozar devidamente os intervalos. Como produto de um processo natural demonstram a capacidade de adaptação das espécies. Mas é preocupante que o ser supremo tenha criado existências tão fúteis e sem sentido.

Os desastres naturais, as doenças, as 350 mil espécies de escaravelho, os parasitas intestinais e o cóccix são outros exemplos do muito que não faz sentido como criação inteligente. Ás vezes (raramente) até me dá pena dos criacionistas. Vivem num universo de plástico, kitsch, cheio de aberrações e disparates incompreensíveis. Não admira que precisem de um amigo imaginário...

domingo, outubro 08, 2006

Gödel 1, Deus 0

Deus não pode saber que esta proposição é verdadeira.

É fácil de ver porquê: se soubesse, então a proposição seria falsa, e Deus não pode saber como verdadeiro algo que é falso.

O curioso é que, graças a Gödel, agora sabemos algo que Deus não pode saber.

sábado, outubro 07, 2006

Introdução à Blinologia

A blinologia é a disciplina do conhecimento e revelação que estuda os Blins, como o nome indica. Responderei aqui a algumas perguntas acerca desta visão do Universo, que abarca as questões mais profundas acerca do sentido da nossa existência.

O que são os Blins?

Os Blins são os perfeitos criadores do Universo, omnipotentes, omniscientes e omniverdes. São a Origem e o Fim, a Vida e a Morte, o A e o Ya. O blinólogo escolástico São Francisco de Alcabideche declarou em 1208 que os Blins seriam também aqueles alfinetes com cabeça em forma de joaninha que se espetam nas plantas de plástico. Historiadores modernos afirmam tratar-se de um erro na tradução do original hebraico, mas hoje em dia a adoração destes adereços é uma parte importante do culto Bliniano.

Porquê estudar os Blins?

O estudo dos Blins é o mais elevado empreendimento do intelecto humano, pois é a única via para revelar o propósito do Universo, o sentido da vida, e a verdadeira utilidade dos alfinetes com cabeça em forma de joaninha.

Mas não há evidências que os Blins existam, pois não?

A existência dos Blins é uma questão metafísica e transcendente que não pode ser abordada pela ciência, pois o método científico assume à partida uma posição exclusivamente ablínica. Mais, aceitar a existência dos Blins é um acto de fé, e a única forma de receber a Sua graça. Por isso nunca poderá haver argumentos ou evidências que demonstrem a existência dos Blins.

E se a fé não me chega para aceitar que os Blins existem?

Nesse caso, há argumentos e evidências que demonstram a existência dos Blins. Por exemplo, o argumento ontológico. Sendo os Blins os seres mais perfeitos que se pode conceber, e sendo um ser que existe mais perfeito que um que não existe, forçosamente os Blins terão que existir. Podemos também demonstrar a sua existência pelo argumento da afirmação, que diz que os Blins existem porque sim.
As evidências são também claras. O Universo é de tal forma complexo que a sua origem não pode ser explicada pelo acaso, o que prova que é uma criação dos Blins. Também a natureza humana testemunha a existência dos Blins, pois todos os povos e culturas crêem em seres sobrenaturais.

Quantos Blins existem?

O Credo Blim é bastante claro e explícito, dispensando qualquer explicação: «Creio em três Blins, e apenas três. Creio que os Blins são exactamente vinte e seis, e o seu número, que é quantos são, é trezentos e doze. Excepto às quartas feiras.»

Mas isso não é uma contradição?

Não.

Como explicar a existência do vermelho?

Este um dos grandes problemas por resolver na blinologia. Sendo os Blins omnipotentes e omniverdes, a existência do vermelho é algo surpreendente. Será talvez um mistério que ficará para sempre além da compreensão humana. Mas a hipótese mais aceite é que a existência do vermelho foi consequência do livre arbítrio humano, e da escolha que levou à expulsão do Paraíso, onde tudo era verde. Este exercício de vontade que levou a espécie humana a afastar-se da perfeição do verde é relatado com grande beleza nos escritos sagrados Blim, nomeadamente na história de Lucinda, o tremoceiro, e os três porcos cantores.

E o que faz um blinólogo?

Como investigador, o blinólogo pesquisa textos antigos de blinólogos já falecidos, num esforço incessante para rescrever as mesmas ideias em frases ligeiramente diferentes. Este trabalho de leitura e contemplação metafísica tornam-no especialmente apto para se pronunciar sobre temas como a investigação em medicina, genética molecular, contracepção, e a orientação sexual de cada indivíduo.