domingo, março 30, 2014

Treta da semana (passada): toma lá iogurtes.

Há umas semanas a Danone foi criticada por remunerar estagiários com iogurtes (1). Na RTP, a directora da escola explicou que é assim que as coisas são; as empresas dão o que querem (2). Em princípio, não há nada de fundamentalmente errado nisso. Se uma pessoa quer trabalhar a iogurtes tem o direito de o fazer. É como oferecer uma moeda a um transeunte para que ajude a estacionar o carro. Mas estas transacções começam a ser problema quando deixam de ser voluntárias. Se o condutor não precisa de ajuda para estacionar mas o transeunte ainda assim gesticula, grita “Destroce, destroce!” e cobra a moeda porque o condutor receia ficar com o carro riscado então já não é comércio livre. É extorsão.

É este o problema dos iogurtes. Um estágio curricular pode criar uma relação justa entre o aluno e a empresa se o contrato for realmente voluntário, porque isto obriga a repartir custos e benefícios de forma equitativa. Este princípio de participação voluntária é o que garante que as transacções num mercado livre são justas apesar dos valores envolvidos serem subjectivos e variarem de interveniente para interveniente. Mas se os estudantes não têm perspectivas de emprego e são forçados a aceitar qualquer oportunidade, as empresas podem explorar essa vulnerabilidade e tornar a relação injusta. Uma empresa que oferece iogurtes pelo trabalho do estagiário não é uma empresa disposta a contratá-lo no final do estágio. O mais certo é optar por ir trocando de estagiários e pagando sempre em iogurtes o que, de outra forma, teria de pagar com um salário decente. É como os arrumas mas com a injustiça adicional de, neste caso, serem os mais privilegiados a coagir quem tem menos.

Mais preocupante do que os estagiários e os iogurtes é a ideia de que é assim que as coisas devem ser. Numa conversa arrepiante entre a Isabel Stilwell e o Eduardo Sá, este último defende que o problema é estes alunos não terem humildade, que deviam até estar gratos pela oportunidade de trabalhar de graça e nem sequer têm noção do que é uma relação de trabalho (3). Aparentemente, a noção correcta da relação de trabalho é a da empresa pagar 24 iogurtes por semana. Esse episódio do programa “Dias do Avesso” até tem o título de “Pobre e mal agradecido”. Por alguma razão estranha, parece que quem é pobre tem mais obrigação de estar grato do que quem tiver a sorte de ser rico.

Estes disparates são um perigo porque a única justificação para o capitalismo, o empreendedorismo e toda a ideologia de direita é a justiça inerente a um mercado em que cada agente participe de forma livre, sem constrangimentos ou coação. Nessas circunstâncias pode haver ricos e remediados sem haver injustiça. Uns organizam cadeias de supermercados, outros herdam nome e dinheiro dos pais, outros escrevem poesia ou plantam flores, mas se todos são livres de dizer não a coisa vai funcionando. A proliferação destes “estágios” pagos a iogurtes é um sinal de que as interacções deixaram de ser voluntárias, que a coacção está a substituir a liberdade de escolha e que se criou um desequilíbrio que, sem controlo, só se irá agravar conforme quem mais pode explora quem pode menos. Os disparates destes comentadores contribuem para que a sociedade ignore os sintomas até ser tarde demais.

Perante estes indícios o mais prudente seria restabelecer o equilíbrio no poder de negociação. Melhorar a segurança social e criar emprego, nem que fosse por investimento público, para que só trabalhasse a iogurtes quem verdadeiramente quisesse e ninguém fosse forçado a fazê-lo por lhe faltar sequer a possibilidade de dizer não. Infelizmente, isso exigiria um esforço adicional da parte de quem tem mais e, especialmente repugnante, a admissão de que estamos todos juntos no mesmo barco. Assim, predomina esta atitude irresponsável e egoísta de assumir que só é pobre quem quer e exigir do desesperado que seja grato e humilde, que trabalhe para pagar as dívidas “do país” e que se torne mais competitivo nem que seja trabalhando a iogurtes.

É um problema tramado. A história dá-nos inúmeros exemplos do perigo de deixar estas tensões e injustiças acumularem-se demais mas, infelizmente, é fácil ir repetindo os erros do passado. É fácil iludir-se com a aparente solidez do status quo e esquecer que a diferença entre ricos e pobres é mera convenção; basta um número suficiente de pessoas com catanas e bastões para a luta de classes se tornar num massacre. É fácil que quem está melhor do que o seu vizinho julgue que a diferença se deve ao seu mérito em vez de admitir que é pura sorte. É fácil desprezar as reivindicações dos menos favorecidos como abuso ou birra. O resultado é termos pessoas como estes comentadores de rádio, com vidas confortáveis e idade para ter juízo, a dizer que o problema é falta de humildade e os jovens não quererem “esfolar os joelhos”. Não estranham que uma empresa multinacional pague com iogurtes a elaboração de procedimentos de segurança e manutenção de equipamento exigindo conhecimentos de Inglês e um curso superior quase terminado. Não compreendem o que isto implica para os salários dos restantes trabalhadores, a grande maioria dos quais tem muito menos qualificações do que os estagiários que são pagos a iogurtes. E nem sequer imaginam o que pode acontecer se essa gente toda se fartar de ser humilde, de esfolar os joelhos e de ouvir impávida os insultos dos senhores Sá e das senhoras Stilwell.

1- 5dias, Danone oferece emprego… ou quase… oferece iogurtes em troca de trabalho especializado
2- RTP Notícias, Danone oferece estágios não remunerados e iogurtes
3- Dias do Avesso, Pobre e mal agradecido

quinta-feira, março 20, 2014

Treta da semana (passada): “Abra os olhos”

A CARRIS e a Metropolitano de Lisboa lançaram uma campanha com o slogan “Abra os olhos e combata a fraude”. Algumas pessoas criticaram esta campanha julgando que era um apelo a que todos os passageiros se tornassem revisores não remunerados. Realmente, mesmo que me bastasse “abrir os olhos” para ver se alguém viaja sem bilhete válido, não é claro o que tipo de combate querem que eu faça. Mas, olhando com mais atenção para a campanha, parece-me que a crítica assenta num mal entendido.

Segundo a página da campanha, «A primeira fase de campanha iniciou-se a 25 de fevereiro com o lançamento de um teaser composto, apenas, pela imagem da campanha, sem qualquer claim associado, procurando gerar algum buzz e curiosidade para o tema, tendo a imagem sido aplicada em suportes próprios de comunicação de ambas as empresas. A segunda fase de campanha tem início com a concretização da imagem, associada ao claim e a um texto explicativo da campanha.»(1) Talvez por quererem criar um buzz com um teaser sem claim associado, muita gente percebeu mal a intenção. Vejamos então como o “texto explicativo” nos esclarece: «A falta de validações pode sair-lhe caro: menos carreiras; menos comboios; maior tempo de espera; degradação do serviço»(2) Obviamente, a fraude e a “falta de validações” não se refere a haver quem ande sem bilhete porque esse problema fica muito aquém do que seria necessário para haver menos carreiras, menos comboios ou uma degradação no serviço. A fraude para a qual nos querem abrir os olhos é certamente mais grave.

O Relatório e Contas de 2012 do Metropolitano de Lisboa dá umas pistas importantes. Por exemplo, na página 16, consta que «A oferta em 2012 diminuiu 19,4%, em termos de número de carruagens x km, permitindo o ajustamento à procura e o aumento da eficiência operacional». A diminuição deveu-se à circulação de comboios só com três carruagens em vez de seis em algumas linhas e horários, e a terem ocorrido «oito greves ao longo do ano» (3). Porquê oito greves? Uma razão pode ser outra fonte de “eficiência operacional”. A figura abaixo mostra a evolução do perfil dos contratos dos trabalhadores do Metro e o número de efectivos comparado com o total de quilómetros de linha. O que se pode ver é que não só o número de efectivos tem sido reduzido ao mesmo tempo que aumenta o tamanho da rede, como a empresa tem reduzido principalmente os trabalhadores com contratos estáveis, substituindo-os por contratos precários. Com menos pessoas a trabalhar mais e mais precariedade não admira que haja problemas com os trabalhadores. Nem a redução da oferta compensa isto, se se deve à circulação de comboios com menos carruagens.



Isto explica a degradação do serviço, a falta de comboios e os maiores tempos de espera mas ainda não cobre explicitamente o “claim” que esta fraude «pode sair-lhe caro». Se cortam nos comboios, nos empregados e no serviço, até nos devia sair mais barato. Mas é verdade que sai caro. E na página 42 temos uma indício do porquê: «No seu conjunto, as responsabilidades com IGRF aumentaram 378 milhões de euros, representando 20% do passivo total.» Estes IGRF são “instrumentos de gestão de risco financeiro”, também conhecidos como “swaps”. São contratos complexos entre estas empresas e os bancos que fazem juros e pagamentos variarem em função de certos factores. Graças a estes contratos, feitos sabe-se lá por quem, porquê e em que condições – mas certamente em gabinetes sóbrios como gosta o José Gomes Ferreira (4) – esta empresa que teve 148 milhões de receitas e 150 milhões de gastos operacionais acabou num buraco 378 milhões mais fundo do que já estava, e isto depois do Estado emprestar, a juros mais baixos, «648,6 milhões de euros [para] satisfazer os compromissos decorrentes do serviço da dívida».

É isto que nos sai caro. Os bancos privados emprestam dinheiro a entidades públicas cobrando juros elevados, alegadamente, pelo risco de incumprimento. No entanto, o governo nunca admite sequer a reestruturação dessas dívidas e paga tudo. É só lucro para os bancos. Pior ainda, esses empréstimos são negócios obscuros feitos sempre de forma a que os bancos acabem por receber – e nós acabemos por pagar – muito mais do que inicialmente seria de prever.

Queria por isso aplaudir esta campanha da CARRIS e do Metropolitano de Lisboa. Motivou-me a abrir os olhos e procurar perceber porque é que estes serviços nos saem tão caros, porque é que há menos comboios e porque é que o serviço se degrada. Infelizmente, continuo ainda sem saber como combater isto. Talvez se deixar de pagar bilhete e passar a viajar à borla sempre vá um pouco menos do meu dinheiro para os IGRF e negociatas afins...

1- Metropolitano de Lisboa, CARRIS e Metropolitano de Lisboa lançam campanha de combate à fraude nos transportes públicos
2- Dinheiro Vivo, Carris/Metro lança campanha para combater fraude nos transportes públicos
3- Metropolitano de Lisboa, Relatório e Contas
4- Post anterior: O manifesto

domingo, março 16, 2014

O manifesto.

Num raro exemplo de consenso alargado, 74 personalidades de vários quadrantes políticos defenderam que Portugal deve negociar uma reestruturação da dívida (1). Não é um plano detalhado, mas quando um grupo destes defende alguma coisa vale a pena dar ouvidos. É raro a Manuela Ferreira Leite concordar com o Francisco Louçã e ex-ministros socialistas defenderem o mesmo que conselheiros (agora também ex) de Cavaco Silva. Aponta o manifesto que o Estado português não consegue pagar todas as dívidas a tempo, que esta crise não é só nacional e que é preciso negociar a nível europeu como e quando a dívida será paga. Concordo e subscrevo. O resto do post é sobre alguns dos argumentos contrários que me deram vontade de responder.

O José Gomes Ferreira escandaliza-se por dizerem que é preciso reestruturar a dívida. Não por não ser preciso nem por não se reestruturar, porque até menciona que «Portugal já fez e continua a fazer uma reestruturação discreta da nossa dívida pública». Escandaliza-se por o dizerem: «uma reestruturação de dívida pública não se pede, nunca se anuncia publicamente. Se é preciso fazer-se, faz-se. Discretamente, nos sóbrios gabinetes da alta finança internacional.» Ou seja, numa redefinição inovadora da democracia representativa, defende que a decisão mais importante para a economia e bem estar dos portugueses durante as próximas décadas deve ser tomada às escondidas. Como se não tivéssemos já problemas que chegue com negociatas discretas em gabinetes sóbrios.

Um problema fundamental com o “argumento” – num sentido lato – do José Gomes Ferreira é assumir que os mercados não sabem o que se passa e que, para conquistar a sua confiança, não podemos dizer verdades óbvias. Assume também que a descida das taxas de juro da dívida pública se deve à fabulosa gestão do nosso país. Parece-me mais realista assumir que quem gere estes investimentos não é completamente ignorante e que a descida das taxas de juros de todos os países com problemas – incluindo a Grécia, que desceu de 10.95% para 7.7% no último ano (2) – se deve a um conjunto mais complexo de factores do que o alegado efeito do “gabinete sóbrio”. Por exemplo, o BCE aceita títulos de dívida pública como garantia para empréstimos mesmo que tenham ratings desfavoráveis (3). Como o BCE empresta dinheiro aos bancos privados com juros abaixo da inflação, até títulos que sejam lixo servem para os bancos fazerem dinheiro. Literalmente. Como salienta o manifesto, esta crise é um problema internacional e não é mera função do que fazemos ou dizemos por aqui.

O Pedro Romano é menos famoso do que o José Gomes Ferreira mas tem a virtude de escrever coisas mais relevantes do que um chorrilho de ataques pessoais e perguntas retóricas. Uma crítica que faz ao manifesto é ser «vago em relação ao que efectivamente propõe.»(4) É verdade. O manifesto diz que é preciso reestruturar mas não diz como é que se vai conseguir essa reestruturação nem como será negociada. No entanto, a via alternativa também é parca em detalhes. Dizer que é preciso um saldo primário de 2% ou 3% e um crescimento de 1.8% também não diz como é que vão conseguir as duas coisas ao mesmo tempo. Outro ponto que o Pedro refere é que «o país, como um todo, não ganha nada em reestruturar cerca de 60% da sua dívida, já que aquilo que ganha enquanto contribuinte acaba por perder como investidor» porque 60% da dívida pública é detida por investidores nacionais. Mas o país não é só um todo. É composto por pessoas para quem a reestruturação da dívida e a austeridade têm efeitos muito diferentes. Em Portugal, 1% dos depositantes detém quase metade do dinheiro dos depósitos bancários (5) e, se considerarmos o dinheiro em fundos de investimento, é provável que a desigualdade seja ainda maior. Alguns são fundos de pensões, que devem ser protegidos, mas muitos detentores da dívida pública são bancos privados a gerir fundos de investimento de pessoas que não correm perigo de passar fome. Ainda que “o país, como um todo” fique na mesma, há uma questão política, e não económica, de decidir se o problema da dívida vai ser resolvido apenas sacrificando os que têm menos ou se os ricos também vão suportar uma parte do sacrifício que, sendo ricos, será sempre uma parte muito modesta.

Finalmente, o Pedro escreve que «a propagação pública da ideia de que a reestruturação é inevitável não tem qualquer real utilidade para Portugal: não melhora a sua posição negocial, não sensibiliza a Europa e nem contribui, sequer, para uma preparação atempada desse processo.» Para algumas pessoas é provável que o melhor será ninguém fazer ondas e não considerar alternativas. Há uns meses, o César das Neves também criticou «quem apela ao perdão da dívida pública portuguesa, esquecendo-se que parte é detida por bancos portugueses que, em consequência, poderão falir ou ter de se capitalizar, em ambos os casos com consequências sobre os seus depositantes e valores acima dos 100 mil euros garantidos.»(5) Quem anda a negociar coisas pelos tais gabinetes sóbrios certamente se preocupa com isto. Mas para a maioria dos portugueses, aquela maioria que os políticos eleitos deviam representar, o perigo de cortes nos depósitos acima dos 100 mil euros não é uma preocupação significativa.

O perigo deste manifesto, e a razão do forte repúdio, é revelar que o fundamental não é o problema económico de como pagar a dívida mas sim a decisão política de quanto e quando devemos pagar. Para bem de todos e não apenas dos que têm mais de cem mil euros no banco.

Editado às 18:06 para corrigir o apelido do José Gomes Ferreira (estava Pereira, nem sei explicar porquê). Obrigado pela correcção.

1- O texto integral está aqui no Público. Via Ladrões de Bicicletas
2- BCE, Long-term interest rate statistics for EU Member States
3- Por exemplo, para Portugal, desde 2011: BCE, 7 July 2011 - ECB announces change in eligibility of debt instruments issued or guaranteed by the Portuguese government
4- Desvio Colossal, Três notas sobre o manifesto da reestruturação da dívida pública
5- Jornal de Negócios (09-2013), João César das Neves: “Se a dívida fosse repudiada a perda cairia em sua casa”

domingo, março 09, 2014

Treta da semana: o direito do cobrador.

Num texto no Público, o José Jorge Letria, presidente da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), queixa-se de que «Todos os dias, os motores de busca, com o Google em natural destaque, utilizam conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros, sem nada pagarem em troca»(1). Esta frase merece uma análise cuidada para percebermos o problema. Primeiro, “sem pagarem nada em troca” tem um sentido mais estreito do que parece. Não considera os custos operacionais da empresa, de cerca de quatro mil milhões de dólares por mês, ou as centenas de milhões de dólares investidos todos os meses em investigação e desenvolvimento (2), nem considera os benefícios que este investimento traz para quem tem o seu conteúdo indexado no Google. Refere-se estritamente ao facto do motor de pesquisa oferecer a quem quem quer aceder a uma página toda a infraestrutura e serviços necessários para que a encontre sem pagar nada a quem publicou a página com o intuito de que os interessados a encontrassem.

O termo “utilizam conteúdos” também tem um significado peculiar. Quando procuro um número de telefone na lista telefónica faz mais sentido dizer que eu utilizo a lista para encontrar o número do que dizer que a lista utiliza os números de telefone. A lista, afinal, não telefona a ninguém. Quando procuro uma rua no mapa também sou eu quem utiliza o mapa para encontrar a rua onde quero ir e não o mapa quem utiliza as ruas. Mas no caso do Google, segundo parece defender o José, quando eu procuro “José Jorge Letria” não sou eu quem usa o motor de pesquisa para encontrar informação. Aparentemente, é o motor de pesquisa que está a usar o José. Exactamente como, não é claro. Deve ser uma coisa Zen.

O termo “conteúdos protegidos” tem um significado ainda mais estranho. Para proteger qualquer página da indexação por motores de pesquisa como o Google basta incluir no código fonte uma tag meta com os atributos name="robots" e content="noindex" (3). É trivial proteger as páginas neste sentido de impedir que sejam indexadas pelo Google. Se quem publica estes «conteúdos protegidos, sejam eles autorais, informativos ou outros» não os protege da indexação é porque não os quer proteger. O que se compreende perfeitamente porque, se os publicam, é porque querem que as pessoas os encontrem. Neste caso nem se consegue interpretar “conteúdo protegido” naquele sentido, já de si abusivo, com que o usam para designar o monopólio legal sobe a distribuição e acesso ao conteúdo.

Para o José, o problema é que motores de pesquisa como o Google fornecem um serviço gratuito que facilita o contacto entre quem quer aceder a um conteúdo e quem quer dar acesso a esse conteúdo, permitindo também a qualquer uma das partes excluir-se se quiser. Isto, para o José, só pode ser caracterizado de uma forma. «A palavra é dura, mas não há outra para definir este processo: pirataria.» Como o José explica, «a Comissão Europeia está a perder uma grande oportunidade de mostrar que defende os direitos de autor [...] em vez de defender quem deve ser defendido, “se limita a regular a solução predatória de escolhermos entre um opt-out, ou seja, não autorizarmos, ou ficar tudo como está”. Uma perspectiva nada animadora, diga-se.»

Para quem julga que os direitos de autor têm alguma coisa que ver com direitos ou autores isto pode parecer estranho. Afinal, se o fundamental fosse dar ao autor o poder de determinar quem tem acesso, e por que meios, à obra que ele criou, o sistema que temos agora seria perfeitamente adequado. No entanto, também a expressão “direitos de autor” tem um significado técnico muito peculiar. Designa especificamente o direito de cobrar. O fundamental para uma editora ou uma sociedade como a SPA não é o direito do autor publicar a sua obra, divulgá-la ou encontrar audiências, e muito menos o direito de quem é autor, ou de quem quer vir a ser autor, ter acesso às obras e à informação de que precisa para alimentar a sua criatividade. Não importa nada à SPA se cada autor tem ou não tem a possibilidade de retirar as suas páginas dos motores de pesquisa. O que importa à SPA é que a Google pague. Que pague à Springer, à Impresa, à Reuters e aos demais, e que pague o mais possível por intermédio da SPA. Quanto ao termo “pirataria”, ironicamente, designa qualquer alternativa que não inclua estes mecanismos de extorsão.

1- Público, Google: quem o favorece e porquê?. Obrigado pela referência no Google+.
2- Financial Statements, Google Inc
3- Using meta tags to block access to your site

Treta da semana (passada): a crença básica de Plantinga.

Há poucas semanas critiquei uns argumentos absurdos que o filósofo Alvin Plantinga apresentou contra o ateísmo. Várias pessoas responderam a essas críticas mas, curiosamente, sem mencionar nada que resolvesse os problemas na argumentação do Plantinga. Simplesmente alegaram que eu não sabia nada da epistemologia que Plantinga defendia o que, além de falso é irrelevante para criticar o que ele disse na entrevista (1). Mas um post sobre uma ideia central naquilo que o Plantinga defende pode ajudar a perceber porque é que tenho tão pouca admiração por este filósofo.

Plantinga argumenta que é racional acreditar em Deus mesmo sem ter evidências propondo que “uma crença C é justificada para o sujeito S se e só se C for gerada por faculdades adequadamente funcionais num ambiente apropriado e de acordo com um plano bem sucedido para a produção de verdade” (2). Simplificando e ignorando algumas complicações filosóficas, uma crença é justificada se surge por um processo fiável nas condições certas. Assim, se Deus existir e tiver criado nos humanos uma predisposição para ter fé na sua existência e essa predisposição for fiável então a crença na existência de Deus será justificada pela fé. Mesmo que isto fosse uma epistemologia satisfatória não suportaria a conclusão de que é racional acreditar em Deus pela fé porque essa crença só seria justificada se Deus existisse. Na melhor das hipóteses será um argumento a favor do agnosticismo. Mas o problema desta tese de Plantinga é mais fundamental. Para que uma crença seja justificada não basta que surja por um processo fiável. É preciso também que quem adopte essa crença saiba que ela surgiu por um processo fiável.

Este problema é evidente num artigo mais antigo do Plantinga, onde ele propõe esta sua epistemologia como uma modificação do fundacionismo (3). Resumidamente, o fundacionismo defende que qualquer crença ou é justificada com recurso a outras crenças justificadas ou é uma crença básica, auto-justificada por ser auto-evidente e impossível de alterar. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal será uma crença básica porque é auto-evidente e não posso sequer considerar alternativas. Se sinto não posso crer que não sinto.

Plantinga tenta relaxar esta exigência e defende que para uma crença ser básica – i.e. não depender de outras crenças para se justificar – basta que surja nas condições certas. Por exemplo, se eu sinto que estou a ver um copo de cristal, nas condições certas, não só é auto-justificada a crença de que eu sinto que estou a ver um copo de cristal* mas também a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal. Se a minha visão funciona bem, defende Plantinga, então justifica-se crer que o que eu sinto corresponde à realidade. No entanto, a crença de que eu estou realmente a ver um copo de cristal não pode ser básica porque só se justifica se eu acreditar também que a minha visão está a funcionar bem. Em pequeno, num estado febril e meio a dormir, tive uma visão vívida de um belo copo de cristal a flutuar à minha frente, reflectindo a luz em imensas cores. A crença de que eu tive essa visão pode ser básica mas não considerei justificável crer que se tratava de um copo de verdade porque, naquele momento, não acreditei que o meu sistema nervoso estivesse funcional. Plantinga quer varrer este problema para debaixo do tapete exigindo unicamente que o processo esteja a funcionar correctamente nas condições certas mas isso não basta porque o sujeito tem de o saber também. Suponhamos que eu vi aquele copo porque Deus fez um milagre e criou um copo mágico a flutuar à minha frente quando eu estava cheio de febre. Nessas condições eu estava a ver um copo real por meio do meu sistema nervoso, que Deus tinha concebido para identificar copos de cristal de forma fiável, em condições tais que tudo estaria a funcionar bem. Mas, mesmo assim, não seria justificado eu acreditar que o copo era verdadeiro se não sabia do milagre e julgava que estava a alucinar com a febre.

Resumindo, Plantinga tenta fazer aqui um atalho na epistemologia defendendo que alguém pode ter uma crença justificada apenas pelo processo como a crença surgiu sem precisar de justificar porque acredita que o processo é fiável. Isto não faz sentido. Se eu sinto que estou a ver uma árvore, em condições normais, tenho justificação para crer que é mesmo uma árvore mas porque tenho justificação para crer que a minha visão é fiável nessas condições. Por exemplo, pela consistência com que tenho conseguido identificar árvores no passado. Mas se vejo um fantasma, ou se sinto Deus, não posso justificar crer que estou a sentir algo real sem justificar primeiro a premissa de que o meu sistema nervoso é adequado para identificar correctamente estas entidades. E mesmo que se dê esta borla, Plantinga fica apenas com um argumento circular: se Deus existir, diz ele, justifica-se crer pela fé; mas se não existir então não se justifica. Isto só reforça a conclusão de que é irracional acreditar em Deus pela fé enquanto não houver confirmação independente da sua existência e da adequação da fé para apurar este tipo de factos.

*Ressalva: isto segundo o fundacionismo. Eu não concordo com a abordagem de tentar encontrar crenças básicas que não carecem de justificação porque até a sensação de ver o copo surge de correlações estatísticas num grande número de experiências que, ao longo da vida, foram moldando o sistema nervoso capaz de produzir essa sensação. Ou seja, a justificação, em última análise, não está em elementos atómicos mas na relação de grandes conjuntos de factores. Mas, como diria a grande filósofa Teresa Guilherme, isso agora não interessa nada.

1- Treta da semana (passada): os argumentos.
2- Plantinga, Tooley, 2008, Knowledge of God.
3- Plantinga, 1981, Is Belief in God Properly Basic?; Nous 15: 41-52.

sábado, março 08, 2014

Cepticismo.

A Comunidade Céptica Portuguesa (COMCEPT) tem divulgado o cepticismo não só na Internet mas também na comunicação social tradicional, onde faz muita falta (1). Dou-lhes os parabéns pela organização porque sei, por experiência, que organizar cépticos não é para qualquer um. No entanto – entre cépticos há sempre um “no entanto” – queria sugerir uma abordagem diferente à explicação do cepticismo. No site da COMCEPT está que «A atitude do céptico é a de questionar o mundo que o rodeia, procurando provas científicas e racionais antes de aceitar alegações extraordinárias como verdade e, esforçar-se por encontrar explicações alternativas simples e naturais para fenómenos que à partida, com uma análise superficial, parecem ser de origem sobrenatural. A ciência está na base do movimento céptico e o cepticismo é uma parte fulcral desta, caso contrário não haveria forma de eliminar ideias erradas.»(2)

Se bem que isto não esteja errado, expõe as coisas ao contrário, quer cronologicamente quer logicamente. É verdade que o céptico confia mais em resultados científicos, mas o cepticismo é muito mais antigo do que aquilo que agora chamamos ciência e a atitude céptica precede a investigação científica. Pior ainda, esta descrição pode ser interpretada como apresentando uma escolha arbitrária entre opções equivalentes: o céptico guia-se pela ciência como o vidente se guia pela intuição, o religioso pela fé e o astrólogo pelos astros, todos com igual legitimidade. Proponho uma abordagem alternativa que evita estes problemas focando o mais fundamental.

Eu sou céptico, em primeiro lugar, porque tenho curiosidade em conhecer a realidade. Não presumo que possa vir a saber tudo, ou sequer alguma coisa, nem assumo que tenha de haver uma realidade independente de mim. Talvez isto seja tudo uma ilusão. Mas pode ser que haja uma realidade e pode ser que eu consiga saber alguma coisa acerca dela. Essa possibilidade basta-me para que tenha vontade de tentar.

Em segundo lugar, sou céptico porque percebo que há uma diferença entre querer que algo seja verdade e saber se é mesmo verdade. É a diferença entre uma lista de compras e um inventário. Na lista das compras ponho o que quero e depois logo vejo o que consigo comprar. Mas quando faço o inventário do que tenho na dispensa não interessa se gosto mais de grão ou de feijão ou se queria muito ter ananás em calda. O que importa é saber o que lá tenho, realmente, seja ou não ao meu gosto. Para formar crenças verdadeiras tenho de inventariar a realidade e, para isso, tenho de fazer os possíveis para que o processo de adoptar crenças não seja determinado pelas minhas preferências, inclinações, desejos, medos ou anseios. Isto não quer dizer que não faça listas de compras. Há situações em que aquilo que eu quero é o mais importante. Mas para fazer inventários não é. E mesmo que nunca consiga eliminar por completo a influência daquilo que quero sobre aquilo que julgo saber, é um esforço que vale a pena para minimizar a confusão.

Sou céptico, em terceiro lugar, porque sei que posso errar. Não chega querer saber a verdade e perceber a diferença entre o que é e o que eu gostaria que fosse. É preciso também estar atento aos erros. Fazer o inventário sempre a lápis, por assim dizer, porque pode acontecer que tenha contado mal as latas ou confundido os rótulos. Isto exclui a certeza absoluta. A certeza não é uma coisa má, porque se justifica ter tanta confiança em algumas proposições que já não faça diferença encontrar mais evidências a seu favor. Mas a certeza tem de ser sempre relativa às evidências para que possa ser revista se algo a puser em causa. Por outras palavras, posso estar totalmente empenhado em descobrir a verdade mas não posso estar totalmente empenhado em que a verdade seja aquela que eu julgo ser.

Realmente, disto resulta que acabo por procurar «provas científicas e racionais antes de aceitar alegações extraordinárias» e preferir «explicações alternativas simples e naturais» em vez de invocar milagres, espíritos ou deuses. Mas são consequências meramente circunstanciais da forma como este universo funciona e como nós evoluímos. Num universo diferente podia ser preferível explicar os dados pela vontade dos deuses e substituir o método científico pela meditação, oração ou intuição. Se isso funcionasse melhor seria por aí que o cepticismo nos levaria. Porque o fundamental do cepticismo não é ser científico ou naturalista mas sim procurar conhecer a realidade, o que exige mitigar as influências subjectivas sobre as nossas crenças e maximizar a capacidade de corrigir erros da melhor forma que for possível nas condições em que se estiver. A ciência e o naturalismo apenas surgem do cepticismo neste universo porque, neste universo, são os que melhor servem este propósito.

Falta só um detalhe final. Querer conhecer a realidade, distinguir entre desejos e factos e admitir erros não são características exclusivas dos cépticos. Pelo contrário. Em maior ou menor grau, são características universais. Toda a gente faz isto, nas circunstâncias certas. Todos os crentes duvidam de algumas crenças, todos os místicos reconhecem que há superstições e todos os vendedores de banha da cobra dizem cuidado com as aldrabices (dos outros). O que distingue o céptico dos restantes é apenas o pormenor de não admitir excepções a estes princípios. Quando se trata de averiguar factos, devemos aplicar às nossas crenças os mesmos critérios que aplicamos às dos outros. Cepticismo, no fundo, é isso.

1- COMCEPT, COMCEPT NO “PORTUGAL NO CORAÇÃO”
2- COMCEPT, O QUE É O CEPTICISMO?

domingo, março 02, 2014

Treta da semana (passada): a Selenite e a limpeza.

Um problema que eu subestimava, talvez como muitos leigos nestas coisas, é o da limpeza regular das energias que se acumulam nos cristais terapêuticos. Felizmente, o Guia Kármico Mário Portela escreveu alguns textos elucidativos salientando a importância de uma boa higiene energética e vibracional: «Se realmente utiliza os cristais com fins energéticos e terapêuticos é necessário que se esteja atento à saúde energética dos mesmos. O uso de sintonia diária do cristal exige que este seja descarregado e limpo pelo menos uma vez por mês»(1). Segundo consta, se «quando entramos num local e não nos sentimos bem [isso] acontece porque a energia local não tem a mesma vibração que a nossa»(2). Nessas situações desagradáveis em que a nossa energia não vibra com a energia do ambiente, temos de recuperar o «nosso equilíbrio [...] com a utiliza­ção das formas naturais de energia, inclusive os cristaiso». Admito que, numa primeira leitura, achei isto estranho. Não só pela energia vibrar e pelo desconforto vir de vibrar de forma diferente mas, especialmente, por afinal ser um problema de equilíbrio, que parece não ter nada que ver com coisas a vibrar de forma diferente. Mas o Mário explica: «A Física Quântica, por meio das ligações quânticas, explica as sensações energéticas que sentimos e transmitimos a grandes distâncias. A intuição é a leitura dessas ligações quânticas que atravessam o tempo e o espaço…» Pois claro. Restauramos o nosso bem estar equilibrando por meio das ligações quânticas a vibração das nossas energias com as vibrações das energias do meio que nos rodeia. Dito assim nem parece nada treta.

Mas então e a limpeza? pergunta certamente o leitor, agora preocupado com o estado lastimável a que deixou chegar os seus cristais e com o efeito deletério que a imundície vibracional terá nas suas ligações quânticas. Pois se, como muitos, tem recorrido à técnica do paninho macio e limpa-vidros, tem mesmo com que se preocupar. Não é assim que se limpa cristais. O cristal pode ser limpo segurando-o «sobre o fumo do [incenso] tendo o cuidado de não ter pensamentos antagónicos enquanto o faz», mas têm de ser «incensos de sândalo originais Nag Champa Agarbatti»(2). Em alternativa, para quem não tiver à mão o seu incenso de sândalo original Nag Champa Agarbatti, pode também limpar os cristais com Selenite, que «possui características únicas no mundo energético e terapêutico da cristaloterapia».

A Selenite é um cristal de sulfato de cálcio hidratado e tem este nome porque os gregos acharam que os cristais transparentes faziam lembrar a Lua. Como explica o Mário, «É formada pela evaporação da água salgada em lagos ou mares interiores»(3). Daí que possa parecer estranha a afirmação do Mário de que a Selenite «é ainda presença constante nas pedras trazidas do nosso satélite natural: a Lua.» Num plano físico, vulgo “realidade”, não se encontra Selenite na Lua, como é aliás de esperar dada a pobreza deste satélite em matéria de lagos ou mares interiores. As rochas lunares são ígneas, coisa que os gregos antigos que deram o nome à Selenite não sabiam em virtude de não terem consultado a Wikipedia (4). No entanto, é preciso saber interpretar correctamente as explicações do Mário. Num plano metafísico, vulgo “treta”, a composição da Lua é principalmente Selenite e queijo (5).

Além de ter vários atributos úteis – «Alinha a coluna vertebral […] Estimula a fertilidade […] Acalma o sistema digestivo [… e ...] neutraliza os efeitos nocivos das radiações provenientes de aparelhos eléctricos e cursos de água subterrâneos» – a Selenite também limpa cristais porque «tem a energia interna e circular em forma de espiral e esta energia sai de forma linear». Assim, até podemos limpar «várias pedras ou um ambiente [colocando] em frente da selenita um cristal de quartzo, como catalizador». Melhor ainda que uma Swiffer cristalina, a Selenite pode ser limpa destas energias vibracionais e efeitos nocivos «por defumação, fuocos bio-energéticos ou visualização», este último método particularmente apropriado dada a natureza imaginária daquilo que se quer limpar.

Na página sobre a Selenite o Mário Portela tem um vídeo onde explica* estas coisas. Mas como aquela meia hora de vídeo com eco me causa uma dissonância energética insuportável, em vez do vídeo do Mário deixo aqui este da Lívia Maris Jepsen. Não tem nada que ver com o Mário mas, treta por treta, em cinco minutos dá um banho nos cristais, despacha tudo o que é energia negativa e põe logo os raios de luz a passar direitinhos e bonitinhos que é como deve ser.



* “Explica” no sentido metafísico e espiritual de substituir umas coisas que não fazem sentido por uma data de outras que fazem ainda menos sentido. Os textos e vídeos do Mário estão isentos de contaminação por aquela utilização mundana e naturalista do termo para indicar algo que esclarece o que quer que seja.

1- Portugal Místico, Guia Kármico Mário Portela, Limpeza de Cristais e Pedras
2- Guia Kármico Mário Portela, Energia em Pedra
3- Portugal Místico, Guia Kármico Mário Portela, A Selenite ou Pedra Lunar
4- Wikipedia, Moon rock
5- Mas não é Wensleydale, como se pode ver neste excelente documentário britânico sobre a exploração lunar.