domingo, novembro 06, 2022

Conversas.

Muitas divergências nas redes sociais acabam em frustração e ataques pessoais. Algumas até em bloqueio. Mas há outras que estimulam conversas produtivas precisamente por os participantes discordarem. Proponho que o factor determinante é o propósito da conversa. É o que queremos com o diálogo que determina se vamos ter frustração ou proveito.

Para dar um exemplo, há tempos João Vasco Gama propôs ser inconsistente apoiar os ucranianos contra a invasão russa sem apoiar os palestinos contra a ocupação israelita (1). Eu discordei porque, apesar de condenar muito que Israel faz, também não consigo apoiar os palestinos. Os vizinhos de Israel há décadas que tentam obliterar esse país, é constante o ódio e o terrorismo contra os judeus e mesmo antes de Israel existir já os palestinos tentaram aliar-se a Hitler para "resolver o problema" dos judeus naquela região. Discordarmos nisto levou a uma troca interessante (para mim) de comentários sobre guerras, genocídios e ocupações até Gama declarar a conversa terminada porque «já expusemos todos os argumentos que consideramos relevantes» e nenhum ia conseguir convencer o outro. Dizendo-se cansado da conversa, exigiu até que me calasse ou continuasse noutro lado.

Parece-me que a causa desta frustração é tentar convencer. Qualquer opinião minimamente ponderada enquadra-se numa rede de premissas, dados e valores. Esta nossa divergência não se limita à Ucrânia e à Palestina. Inclui diferenças políticas, ideológicas, de ponderação de factores históricos, e até da estimativa do que aconteceria aos judeus se os palestinos tivessem maior poder militar. Para um de nós mudar de opinião tem de refazer toda essa rede que lhe dá contexto e isso leva tempo. É possível, mas não é provável que ocorra numa breve troca de comentários no Facebook. Por isso, quem conversa nas redes sociais com o desejo de lhe darem razão ou só conversa com quem já concorde ou vai ficar frustrado.

Dialogar para convencer também tem o defeito de focar a conversa nas pessoas em vez dos assuntos, o que leva a ataques pessoais, zangas e uma atitude de antagonismo. Até torna difícil terminar o diálogo de forma civilizada, levando a mandar calar o outro ou a bloqueá-lo. Eu prefiro uma abordagem diferente, que não me traz frustração. Dialogar com quem discorda é uma oportunidade para ver um assunto pensado de forma diferente. Mesmo que esse pensamento me pareça errado, o diálogo ajuda a questionar premissas e a tornar ideias mais claras. E numa conversa focada nas ideias em vez dos participantes não importa quem ganha, quem se convence ou quem muda de opinião. Pode-se aproveitar as divergências para ajudar a perceber melhor o assunto em apreço. É por isso que nunca senti esse cansaço que Gama invocou nem a necessidade de mandar calar os meus interlocutores ou de os bloquear.

E isto funciona mesmo que a outra parte não queira colaborar. Há casos, como por exemplo criacionistas, teólogos, anti-vacinas ou aqueles que tentam racionalizar a invasão da Ucrânia, em que o objectivo da outra parte é criar o máximo de confusão para disfarçar os problemas das teses que defende. Mas mesmo assim o diálogo pode ser proveitoso. Por um lado porque a nossa confiança numa posição não deve assentar apenas nas razões a seu favor. Devemos também verificar se não há boas razões para escolher uma alternativa. Por exemplo, quando as melhores justificações que me apresentam para Putin invadir a Ucrânia são dissuadir países de se juntar à NATO ou as «afinidades com as pessoas de língua materna» russa na Ucrânia (2), eu fico mais confiante na minha conclusão de que esta invasão foi um erro trágico motivado por ambição e incompetência. Se o maior ataque à nossa posição equivale a bater latas e atirar poeira ao ar provavelmente estamos no bom caminho.

Por outro lado, a resistência empenhada ajuda a afinar explicações. Por vezes encontro auto-proclamados peritos que escrevem vários parágrafos a dissertar sobre a minha ignorância, e arrogância por discordar deles, mas não conseguem explicar os meus supostos erros. Mesmo não me proclamando perito prefiro não fazer tão triste figura. O diálogo ajuda a tornar as ideias mais claras e, mesmo que aquela pessoa não esteja receptiva a explicações, eventualmente saber explicar será útil. Nunca chegamos à perfeição mas a prática ajuda a ficar mais perto.

Por isso, nas redes sociais, não me preocupo se mudo as ideias dos meus interlocutores. Há muito poucas pessoas cuja opinião individual realmente importa na minha vida e com essas não é nas redes sociais que converso. É verdade que me preocupa a popularidade de algumas opiniões. Vivemos numa democracia e a opinião dominante afecta-nos a todos. Mas isto não se deve a esta ou àquela pessoa em particular. E é também porque a opinião pública importa que é melhor evitar amuos, birras, bloqueios e esses surtos de imaturidade que assolam quem só quer que lhe dêm razão. Dedicar a conversa a explorar os assuntos e a tornar as ideias tão claras quanto possível não só é menos frustrante como também contribui para um debate público mais racional.

1- A conversa estava aqui no Facebook, 7 de Julho de 2022 mas entretanto fui bloqueado portanto não sei se é possível ler sequer o que eu escrevi.
2- Nesta conversa com Paulo Gil no Facebook: 12 de Outubro de 2022
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15 comentários:

  1. Caro Ludwig, a ideia de que os palestinianos odeiam os judeus é, para dizer o mínimo, fantasiosa. É verdade que na sua retórica, dizem que Israel não tem direito a existir, etc, etc. Mas na prática, conseguem ser bem mais moderados do que os israelitas. Dou como exemplo o que sucede com Israel quando o Hamas quer negociar uma trégua: os israelitas designam isso de "peace offensive" (não estou a gozar), e vão logo tentar arranjar maneira de sabotar a coisa. Porquê? Porque se houver uma trégua, Israel fica sem justificação para intervir -- enquanto que se levar com meia dúzia de morteiros artesanais, já pode ir lá alegremente terraplanar mais umas cidades, para se "auto-defender". Para este e (muitos) outros exemplos, recomendo vivamente a leitura de "Gaza: An Inquest Into Its Martyrdom", de Norman Finkelstein.

    Não concordo com tudo o que os palestinianos fazem, mas se há povo que tem o direito de se defender pela força das armas, são eles: *meio-século* de opressão dá-lhes esse direito.

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  2. Já agora, também sobre a invasão da Ucrânia, aproveito para deixar aqui uma thread do twitter onde se mostra como, para vários analistas Americanos (muitos deles conservadores), ela é tudo menos inesperada. De facto, eles andam *há anos* a avisar para este perigo. Dizer apenas que esta guerra é um «erro trágico motivado por ambição e incompetência», é mentir por omissão (mas os jornalistas têm maior culpa). https://mobile.twitter.com/RnaudBertrand/status/1498491107902062592

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  3. Óscar Pereira,

    «a ideia de que os palestinianos odeiam os judeus é, para dizer o mínimo, fantasiosa.»

    Discordo. Mesmo antes de Israel existir, já os lideres palestinos tentaram obter ajuda de Hitler para, entre outras coisas, se livrarem dos judeus na região.

    E a carta constitutiva do conselho nacional palestino declara Israel como uma "invasão zionista" que tem de ser eliminada.

    https://avalon.law.yale.edu/20th_century/plocov.asp

    «Não concordo com tudo o que os palestinianos fazem, mas se há povo que tem o direito de se defender pela força das armas, são eles»

    Depende. Provavelmente estás a pensar em os palestinos defenderem a sua terra, a palestina de agora, e os israelitas voltarem para a sua terra, que é Israel. Só que da perspectiva dos palestinos a sua terra é toda aquela religião e Israel não deve existir. Para os palestinos defender a sua terra é eliminar Israel e expulsar da região todos os milhões de judeus que vieram para Israel após 1947. É com isso que concordas?

    «para vários analistas Americanos (muitos deles conservadores), ela é tudo menos inesperada.»

    Não é só para analistas americanos. Putin anexou a Crimeia em 2014 após ter falhado na tentativa de controlar a Ucrânia por intermédio de um fantoche seu, e entretanto tem estado a fomentar uma guerra civil no leste da Ucrânia. Isto segue de perto o que fez na Georgia, por isso o passo seguinte não foi grande surpresa.

    No entanto, não deixa de ser um erro motivado pela ambição de Putin e alguns dos seus companheiros em conjunção com uma enorme incompetência institucional que o fez estimar de forma errada quer a capacidade militar russa quer a vontade dos ucranianos se defenderem e a reacção internacional. O facto de ser um erro previsível dado o padrão de comportamento de Putin não o torna menos errado...

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  4. Ludwig,

    «Discordo. Mesmo antes de Israel existir, já os lideres palestinos tentaram obter ajuda de Hitler para, entre outras coisas, se livrarem dos judeus na região.»

    Mencionaste isso também no post, mas sem indicar referências. Existem algumas, ou é só "hearsay"? Para além disso, os "judeus na região" estavam muito, mas muito longe de serem uns cordeirinhos indefesos: https://apps.dtic.mil/sti/pdfs/ADA047231.pdf.

    «Provavelmente estás a pensar em os palestinos defenderem a sua terra, a palestina de agora, e os israelitas voltarem para a sua terra, que é Israel. Só que da perspectiva dos palestinos a sua terra é toda aquela religião e Israel não deve existir. Para os palestinos defender a sua terra é eliminar Israel e expulsar da região todos os milhões de judeus que vieram para Israel após 1947. É com isso que concordas?»

    Isto é tão enviesado, que francamente me surpreende ver-te escrever uma coisa destas. Em primeiro lugar, a falácia do espantalho: eu disse claramente que na retórica, os palestinianos realmente dizem tudo isso de "Israel não deve existir" e por aí fora -- mas nas suas acções podem ser bem diferentes (veja-se até o caso do "movimento extremista" HAMAS, que foi de "Israel não tem direito a existir", para "admitimos negociar com eles o regresso às fronteiras de 1967". Aqui: https://icg-prod.s3.amazonaws.com/49-enter-hamas-the-challenges-of-political-integration_0.pdf, pp. 19--22. Retirado de Finkelstein, op. cit., p. 11). Depois, não só na retórica -- mas também na prática, ao contrário do que sucede com os palestinianos -- também em Israel se diz que a Palestina não deve existir:

    https://www.theguardian.com/world/2019/apr/07/benjamin-netanyahus-proposal-would-bury-the-two-state-solution

    «By trouncing his left-wing opponents and beating a challenge from a new centrist party, Mr. Netanyahu gained more than just another term in office: He secured a fresh mandate for his idea of Greater Israel.»

    O que eu defendo é que se regresse às fronteiras pré-1967 -- e que são violadas sempre que Israel decide construir mais uns colonatos. Que são, acrescente-se, ilegais: https://www.craigmurray.org.uk/archives/2016/12/joyous-news-palestine/. Ao contrário da Palestina, Israel está há meio-século a violar decisões das instâncias máximas do direito internacional.

    ---

    Quanto ao Putin e à Ucrânia, para que não restem dúvidas: a invasão é ilegal. Só que dizer que ela se deve à «ambição de Putin e alguns dos seus companheiros» é uma asneira de todo o tamanho. Não porque essa ambição não exista, mas antes porque sem a expansão da NATO, essas ambições militaristas dificilmente teriam passado do papel. Não sou eu que o digo -- são os tais analistas conservadores Americanos, que diz que até percebem algo do assunto... (leste/viste alguma coisa daquela thread?)

    Mas de facto, «o passo seguinte não foi grande surpresa» -- o que só torna a expansão da NATO ainda mais abjecta e merecedora de repúdio. Sabiam qual seria o resultado das suas politicas, implementaram-nas na mesma, chegou o resultado, e agora escondem-se atrás dum "a culpa é de Putin!" É patético e desprezível, para além de trágico. E se Putin devia ser julgado em Haia -- e eu acho que devia -- aqueles que levaram a NATO para a fronteira russa deviam sê-lo primeiro.

    (Já agora, antes que venha a resposta do "ah e tal, mas a Ucrânia é soberana para decidir se adere ou não à NATO!", as relações entre os povos não funcionam assim... infelizmente. Do mesmo modo que os EUA nunca tolerariam uma aliança militar do Canadá e/ou México com a China, também para a Rússia ter a NATO nas suas fronteiras é intolerável. Novamente, não sou eu que digo: https://www.youtube.com/watch?v=W6NcrIHw0BE)

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  5. O link do theguardian está errado; devia ter sido este: https://www.nytimes.com/2019/04/18/opinion/benjamin-netanyahu-israel.html

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  6. Óscar Pereira,

    «Mencionaste isso também no post, mas sem indicar referências. Existem algumas, ou é só "hearsay"?»

    Isto é história do século XX. Não é conhecimento esotérico. É como pedir referências para a afirmação de que Hitler queria exterminar os judeus. Mas podes começar por este senhor:

    https://encyclopedia.ushmm.org/content/en/article/hajj-amin-al-husayni-the-mufti-of-jerusalem

    «Isto é tão enviesado, que francamente me surpreende ver-te escrever uma coisa destas. Em primeiro lugar, a falácia do espantalho: eu disse claramente que na retórica, os palestinianos realmente dizem tudo isso de "Israel não deve existir" e por aí fora»

    Tu disseste que é "na retórica". Eu discordo dessa abordagem de, quando alguém diz que quer fazer algo terrível, fazer de conta que está a brincar. E não é só dizer. Está escrito nos documentos constitutivos da PLO, organização que a Constituição da Palestina refere, a Declaração de Independência diz que a Palestina é onde vivem os árabes palestinos, onde quer que estejam, e a Constituição também refere essa declaração. E a Constituição começa assim:

    «In the Name of God, the Merciful and the Compassionate.
    The continuous attachment of the Arab Palestinian people to the land of their fathers and forefathers, on which this people has historically lived, is a fact that has been expressed in the Declaration of Independence, issued by the Palestine National Council. The strength of this attachment is con#rmed by its consistency over time and place, by keeping faith with and holding onto national identity, and in the realization of wondrous accomplishments of struggle. The organic relationship between the Palestinian people, their history and their land has con#rmed itself in their unceasing effort to prompt the world to recognize the rights of the Arab Palestinian people and their national entity, on equal footing with other nations»

    https://www.constituteproject.org/constitution/Palestine_2005.pdf?lang=en

    Tu podes preferir acreditar que estão só na brincadeira, que isto não é a sério, hahaha, mas acho que isso é apenas um erro da tua parte.

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  7. Há muito poucas pessoas cuja opinião individual realmente importa na minha vida e com essas não é nas redes sociais que converso. É verdade que me preocupa a popularidade de algumas opiniões...parece uma contradição num é? e aparentemente pela troca de comentários acima diria que tenta convencer o outro da justeza da sua opinião

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  8. Tempus fugit,

    «parece uma contradição num é?»

    Não. Preocupar-me que uma opinião tenha muitos adeptos não é o mesmo que me preocupar que aquela pessoa em particular tenha essa opinião. Por exemplo, se tu fores fundamentalista muçulmano não me ralo. Mas se 9 milhões de portugueses fossem fundamentalistas muçulmanos era tramado.

    «e aparentemente pela troca de comentários acima diria que tenta convencer o outro da justeza da sua opinião»

    Não. Eu tento tornar clara a minha posição, fundamentar o que penso, esclarecer o que está em causa, etc. Pelas razões que explico no post. Se Óscar muda de ideias ou não isso é lá com ele, e não é algo com o qual eu vá perder sono.

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    1. tempus fugit,

      «Não. Preocupar-me que uma opinião tenha muitos adeptos não é o mesmo que me preocupar que aquela pessoa em particular tenha essa opinião. Por exemplo, se tu fores fundamentalista muçulmano não me ralo. Mas se 9 milhões de portugueses fossem fundamentalistas muçulmanos era tramado.»

      O problema começa a ser esse. Há muitos que começam a adoptar a perspectiva do Ludwig: da bondade implícita das potências do ocidente, ou de países identificados com o ocidente (Israel). Ou das respectivas organizações (NATO). Se fosse só Ludwig e mais uns gatos pingados, não me incomodaria nada. Mas começa a ser muita gente, em Portugal e não só...

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  9. Ludwig,

    «Ao contrário de ti, eu não vou seleccionado afirmações conforme melhor suportem posições pré-concebidas.»

    As minhas posições sobre o conflito israelo-palestiniano são tudo menos pré-concebidas: durante muitos anos pensei exactamente como tu. Não concordando com tudo o que Israel ia fazendo, achava que, no essencial, eram eles que tinham razão. Mudei de opinião porque as evidências em sentido contrário são *avassaladoras*. E a julgar pelas tuas respostas, não me parece que tenhas sequer olhado para as parcas referências que dei. Por isso é que a única referência que dás é sempre para o suposto facto de que «lideres palestinos tentaram obter ajuda de Hitler para, entre outras coisas, se livrarem dos judeus na região» (tenho mais a dizer sobre isto dentro de momentos), ignorando o resto: os colonatos (e a grotesca ilegalidade que eles consubstanciam), o facto de que nas décadas finais do Mandato da Palestina, não só os árabes, mas também os judeus, recorreram à força das armas, ou o facto de ser Israel que está há 50+ anos a violar decisões das instâncias maiores do direito internacional. Porque aparentemente, o direito internacional é só para aplicar ao Putin, e outras personagens de quem o ocidente não gosta...

    Mas voltando à conversa dos palestinos + Hitler, eu acabei por ir pesquisar sobre o senhor al-Husseini. E se por um lado parece inegável que ele apoiou, ou no mínimo dos mínimos foi conivente, com a "solução final" dos nazis, por outro lado, dizer que é por causa disso que *ainda hoje* os árabes odeiam os judeus, é não querer tirar a cabeça da areia. Talvez seja pedir muito, mas se te deres ao trabalho de olhar para outras evidências que não sejam documentos e actos de há mais de meio século atrás, irás descobrir (como eu descobri) que há uma razão bem mais plausível para a animosidade que os palestinianos nutrem em relação ao judeus israelitas: é que estes últimos forçam-nos a viver privados dos recursos da sua terra, daquela terra que até a tua adorada "comunidade internacional" reconhece como pertença legítima dos palestinianos (a fronteira "pré-1967"). Os colonatos são disto um exemplo; Gaza é outro (ainda pior), que até David Cameron, num momento de rara lucidez, reconheceu ser "uma prisão a céu aberto".

    Eu não ganho royalties com as vendas do livro, nem nada do género, mas novamente recomendo a leitura de Gaza, de Finkelstein. O livro é *densamente* anotado, e o autor tem isto a dizer no prefácio:

    «Readers will be able to judge by themselves ... whether this writer is partisan to Gaza, or whether the facts are partisan to it».

    Não quero com isto diminuir a importância que têm os textos fundacionais do estado palestiniano, mas achar que isso chega para dar (ainda que com uns senãos) a razão a Israel, e retirá-la aos palestinianos -- que é a ideia que dão os teus comentários -- é ser extremamente desonesto.

    E eu já nem falo no facto de até a Amnistia Internacional ter reconhecido que Israel é um estado onde vigora o apartheid:

    «Amnesty International’s new investigation shows that Israel imposes a system of oppression and domination against Palestinians across all areas under its control: in Israel and the OPT, and against Palestinian refugees, in order to benefit Jewish Israelis. This amounts to apartheid as prohibited in international law.»

    https://www.amnesty.org/en/latest/campaigns/2022/02/israels-system-of-apartheid/

    Termino mencionando o seguinte: no documento sobre o HAMAS que referi, é dito que se Israel regressar às fronteiras pré-1967, o HAMAS admite que a luta continuará, *mas passará a ser apenas uma luta politica, não armada*. A resposta de Israel é sobejamente conhecida. Quem é o extremista fanático violento aqui, mesmo?

    Quanto ao camarada Putin, vai ter que ficar para amanhã.

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  10. Óscar,

    «Não concordando com tudo o que Israel ia fazendo, achava que, no essencial, eram eles que tinham razão.»

    Eu não acho que têm razão em expulsar palestinos de suas casas, encher casas com cimento, criar colonatos fora do seu território, etc. Eu acho que Israel faz muita coisa má, sem razão.

    Só que eu acho que os palestinos também não têm razão, nem nunca tiveram no seu ódio contra os judeus mesmo antes de Israel existir.

    Portanto se a tua posição é que Israel abusa, estamos de acordo. Abusa.

    Onde discordei do João Vasco foi na tese de que devemos apoiar os palestinos. Isso não consigo, tal como não consigo concordar apoiar os nazis só porque acho condenável o que Israel faz.

    «E se por um lado parece inegável que ele apoiou, ou no mínimo dos mínimos foi conivente, com a "solução final" dos nazis, por outro lado, dizer que é por causa disso que *ainda hoje* os árabes odeiam os judeus, é não querer tirar a cabeça da areia.»

    A minha posição não é a de que esse apoio foi a causa do ódio aos judeus. Isso é realmente ridículo. Os palestinos procurarem aliança com Hitler e os lideres palestinos apoiarem Hitler foi um efeito, e não uma causa, do ódio aos judeus, que já é antigo.

    Mas esse episódio serve para ilustrar este ponto importante: o ódio aos judeus não é uma coisa recente que se possa explicar como resultado dos actos de Israel. É algo muito mais profundo e antigo, eventualmente com raízes nas guerras de extermínio que durante milénios decorreram entre etnias diferentes naquela região, algumas delas até relatadas na Bíblia. É isto que condiciona boa parte das relações que há hoje entre árabes e judeus no Médio Oriente, e é algo muito mais profundo do que os acontecimentos das últimas décadas.

    «Eu não ganho royalties com as vendas do livro, nem nada do género, mas novamente recomendo a leitura de Gaza, de Finkelstein. O livro é *densamente* anotado, e o autor tem isto a dizer no prefácio:»

    Penso que não adianta. Eu concordo contigo que o que se passa em Gaza é condenável e que Israel não está a agir de forma correcta nessa região. Esse não é o ponto em que divergimos.

    O ponto em que divergimos é se devemos apoiar os palestinos ou se devemos apenas condenar os actos abusivos de Israel. Eu vou pela segunda via.

    Imagina que em Israel a pena por usar uma camisola com uma suástica era ser queimado vivo. Eu condenaria isso, porque acho uma punição exagerada e inaceitavelmente cruel mesmo para um nazi. Mas isso não me levaria a simpatizar com o nazismo nem a ficar do lado dos nazis. Seria contra aquele acto e seria à mesma contra o nazismo.

    É esta a minha posição no que toca a muitos actos de Israel e à doutrina árabe que os palestinos seguem. Sou contra ambos.

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  11. Ludwig,

    OK, começo a compreender melhor a tua posição, mas continuo a achar que há aí uns pontos que carecem de fundamento. Senão vejamos, começando pelo fim.

    «Imagina que em Israel a pena por usar uma camisola com uma suástica era ser queimado vivo. Eu condenaria isso, porque acho uma punição exagerada e inaceitavelmente cruel mesmo para um nazi. Mas isso não me levaria a simpatizar com o nazismo nem a ficar do lado dos nazis. Seria contra aquele acto e seria à mesma contra o nazismo.»

    Totalmente de acordo: eu também não simpatizaria com o nazismo, nem ficaria ao lado dos nazis, *mas reconheceria -- e apoiaria -- o direito desses indivíduos a lutarem pela liberdade de expressão*. Porque mesmo sendo nazis (uma ideologia abominável) devem ter esse direito.

    Ou no caso dos palestinianos: mesmo achando que eles têm um ódio visceral, antigo e injustificável aos judeus (o que é questionável; ver mais abaixo), e mesmo que as acções deles constituam crimes, a minha posição é a de que se deve condenar os crimes, *reconhecendo a legitimidade da sua luta*. Por isso é que discordo totalmente disto:

    «O ponto em que divergimos é se devemos apoiar os palestinos ou se devemos apenas condenar os actos abusivos de Israel. Eu vou pela segunda via.»

    O problema que tem essa posição é que nega aos palestinianos direitos que assistem aos israelitas, nomeadamente poderem viver num estado em que não sejam vítimas de discriminação (entre outas coisas, algumas bem piores). Os «actos abusivos de Israel» tornam a solução de dois estados inviável -- ao mesmo tempo que a sua mera «condenação» perpetua o calvário dos palestinianos. É uma forma indirecta de deixar os israelitas impunes. Não é aceitável. A causa palestiniana tem que ser apoiada porque é o único modo de forçar Israel a encontrar um modus vivendi que não viole o inalienável direito dos palestinianos a viverem em paz. Caso contrário, apenas teremos Israel a construir mais colonatos, oprimindo ainda mais os palestinianos, que a dada altura reagirão, devido à tensão social acumulada, utilizando a força de que são capazes, e que depois servirá de pretexto para Israel ir tirar os bulldozers da garagem...

    «É esta a minha posição no que toca a muitos actos de Israel e à doutrina árabe que os palestinos seguem. Sou contra ambos.»

    Isso é assumir implicitamente que ambos são comparáveis. Não são, porque a violência que Israel inflige aos palestinianos é astronomicamente maior do que a violência em sentido contrário. É o mesmo que dizer que os crimes cometidos nas lutas anti-coloniais são comparáveis aos crimes cometidos pelo próprio projecto colonial...

    Se Israel alguma vez tivesse proposto uma solução viável para o conflito, e os palestinianos a tivessem rejeitado, "porque a Palestina é toda nossa, allez!" ou treta semelhante, dar-te-ia razão. Só que isso nunca aconteceu -- e portanto a tua posição resume-se a um "eu condeno os crimes de Israel, mas deixo-os continuar a oprimir a Palestina na mesma porque os palestinianos também cometeram crimes". Não é aceitável.

    Quanto ao suposto ódio bíblico dos palestinianos aos judeus, apenas noto que alguém que, imagino, perceberá disto mais do que qualquer um de nós -- Nassim Taleb, um libanês -- escreve o seguinte no seu Black Swan:

    «Today’s alliance between Christian fundamentalists and the Israeli lobby would certainly seem puzzling to a nineteenth-century intellectual -- Christians used to be anti-Semites and Moslems were the protectors of the Jews, whom they preferred to Christians. Libertarians used to be left-wing.»

    Quando, em adição a isto, se tem em conta que durante séculos, e até emigração em massa de judeus para a Palestina (que começa em finais do séc. XIX), naquela região sempre houve convivência de credos muitos distintos, sem nada que se compare à animosidade entre palestinos e judeus, essa tua premissa da origem bíblica de dita animosidade fica ainda mais questionável...

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  12. Quanto a Putin e companhia, acho que vou escrever um texto mais longo, desmontando em particular a treta da NATO ser "defensiva", e depois ponho aqui o link -- que já o outro comentário quase não dava para publicar, por ser demasiado grande...

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  13. Bom dia Ludwig,

    Enquanto pesquisava sobre os documentos fundacionais da NATO, encontrei este texto, onde se aventa a possibilidade de que a NATO foi de facto fundada como uma aliança defensiva, mas não relativamente a uma ameaça militar, mas sim contra uma ameaça *politica*:

    «A more reasonable concern for the American government was a political, rather than military, threat. ... [T]here were powerful communist parties across Europe, especially in France and Italy — ones that could plausibly win honest elections. The anti-communist forces in those countries needed the “confidence and energy” of NATO to fight back. Meanwhile, NATO would “inspire Soviet respect” that would hopefully lessen Russian support, material and moral, for Europe’s communist parties.»

    Isto foi antes do colapso da URSS. Depois, temos isto:

    «Then came the dissolution of the Soviet Union, beginning in the late 1980s. If NATO’s champions were correct, it would have similarly been disbanded, its purported purpose now moot. But NATO’s more skeptical critics, who claimed that it was largely an aggressive instrument of U.S. power, have clearly been proven right by time.»

    Só que em vez da extinção da NATO, aconteceu isto:

    «NATO’s goals have expanded along with its territory. The U.S. has found it particularly useful as a way to create legitimacy for wars when the United Nations won’t authorize them, as with the bombing of Serbia in 1999 and Libya in 2011. In both cases, the American government pointed to NATO’s involvement as making the wars “multilateral” — that is, not unilateral acts by the U.S. — even though the U.S. provided the crucial firepower and neither war would have happened if America hadn’t wanted them to.»

    Abjecto, mas também inteligente.

    https://theintercept.com/2021/06/15/meet-nato-the-dangerous-defensive-alliance-trying-to-run-the-world/

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  14. (cont. do comentário anterior)

    Para finalizar, quando dizes que:

    «Primeiro, a NATO não se expande. Os países da NATO não podem decidir que outros vão entrar.»

    estás a fazer o mesmo tipo de cambalhotas argumentativas que tanto criticas em teólogos e companhia. Basta ver as notícias de quando o Congresso dos EUA autorizou a ... *drumbeat*...EXPANSÃO da NATO, por exemplo, aqui: https://www.washingtonpost.com/archive/politics/1998/05/01/senate-approves-expansion-of-nato/38dded71-978c-475a-8852-58f5e285e572/

    Depois, dizer que «os países da NATO não podem decidir que outros vão entrar» é formalmente correcto, mas enganador: países como os EUA podem por exemplo, criar uma histeria russo-fóbica, o que vai, de modo previsível, influenciar países nas fronteiras russas. Aliás, criar histeria russo-fóbica é precisamente o que EUA têm feito desde 2016, com a conversa da "interferência russa nas eleições" -- que até o mesmo Washington Post admitiu. O artigo completo está atrás de paywall (https://www.wsj.com/articles/hillary-clinton-did-it-robby-mook-michael-sussmann-donald-trump-russia-collusion-alfa-bank-11653084709?mod=opinion_lead_pos11), mas aqui fica um excerto em contexto, via Craig Murray:

    «In a related matter, the editorial board of The Wall Street Journal has published an article with that attribution about the “Russiagate” hoax around the 2016 election, which is stunning:

    “The Russia-Trump narrative that Clinton sanctioned did enormous harm to the country. It disgraced the FBI, humiliated the press, and sent the country on a three year investigation to nowhere. Putin never came close to doing as much disinformation damage."»

    https://consortiumnews.com/2022/06/02/craig-murray-the-power-of-lies/

    Para não falar de provocações feitas à Rússia, que previsivelmente também podem criar, em países mais fracos nessa região, uma maior afinidade pela "protecção" que a pertença à NATO pode significar. Por exemplo, quando a Hillary foi convencer os polacos a porem um sistema de mísseis junto à fronteira russa (para propósitos tão defensivos quanto os mísseis soviéticos em Cuba...): https://www.france24.com/en/20100703-secretary-state-hillary-clinton-usa-poland-missile-shield-pact

    Os efeitos internacionais deste tipo de comportamentos não são despiciendos. Não justificam a criminosa invasão de Putin, mas mostram que a NATO está muito longe de ser um "innocent bystander"...

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