sábado, julho 22, 2017

Treta da semana (atrasada): o racismo do anti-racismo.

Bill Maher é comediante nos EUA e, no seu programa de televisão, fez uma piada com a palavra nigga. Maher não é racista nem a piada era racista mas teve logo de pedir desculpa (1). O rapper Ice Cube, no programa de expiação de Maher, explicou que essa palavra já só pertence aos negros e que ouvir um branco a dizê-la é «como uma facada» (2).

Devia ser óbvio o racismo de proibir uma palavra a quem não tem a cor “certa”. Mas Maher é branco e o racismo, dizem muitos, é só coisa que brancos fazem aos negros. Por exemplo, Joacine Katar Moreira explica que «o racismo está intrinsecamente, e historicamente, ligado à inferiorização dos negros (e não dos brancos)» porque surgiu do comércio de escravos pelos colonizadores europeus (3). O argumento não faz sentido. Os europeus compravam os escravos a comerciantes africanos e a escravatura é uma prática tão antiga como a de considerar que “eles” não são como “nós”. É absurdo defender que a discriminação racial só seja racismo quando brancos discriminam negros. O racismo não deixa de o ser por causa da cor do racista.

No entanto, é verdade que o oprimido não pode restringir ilegitimamente a liberdade do opressor. Senão seria ele o opressor. E é isso que importa no problema do racismo. O racismo de quem só quer namorados de certa raça é irrelevante porque é legítimo escolher namorados como se quiser. O racismo do político que acha que todos os ciganos são parasitas ou do polícia para quem todos os negros são criminosos é que ameaça direitos fundamentais daqueles sobre quem o racista tenha poder. É por isso que o racismo dos negros em países ocidentais é, em média, menos grave do que o racismo dos brancos. Porque, em média, os negros têm menos poder. No entanto, nenhum caso é a média e, neste caso particular, Maher está em desvantagem por ser branco. Se fosse negro nunca seria obrigado a pedir desculpa por usar uma palavra reservada a outra raça. Fechar os olhos ao racismo de quem não é branco cria um poder ilegítimo para coagir artistas brancos a pedir desculpa por disparates como a “apropriação cultural”(4) ou o uso de palavras “exclusivas” de outras raças. Vai contra a média, mas é opressão à mesma.

A própria justificação é racista: Maher nunca teve escravos mas basta que a cor da pele dele seja igual à cor da pele de quem tinha escravos. É esta falácia que faz o polícia que lida com criminosos negros tratar todos os negros como se fossem criminosos ou o espectador que vê notícias sobre terroristas muçulmanos tratar todos os muçulmanos como terroristas. São erros de raciocínio como este que temos de corrigir para combater a discriminação injusta. E isso exige pensar bem na igualdade que queremos e no que temos de fazer para a alcançar.

Infelizmente, a irracionalidade domina o discurso. Porque é mais fácil mobilizar grupos apelando à emoção do que à razão. A razão dá bons resultados mas maus seguidores e, por isso, a política favorece chavões em vez de razões e um forte sentimento de “nós” contra “eles” em vez da colaboração na resolução de problemas. E também porque é mais fácil ter convicções fortes seguindo o que se sente do que tentando pensar no problema de forma imparcial. A imparcialidade e a reflexão são inimigas mortais da pureza ideológica. É por isso que as soluções mais populares para problemas complexos tendem a vir da tripa e fazer pouco sentido.

Isto prejudica a luta pela igualdade. É importante garantir igual liberdade para todos, independentemente de sexo, raça ou qualquer outra característica irrelevante, e ainda temos muito trabalho pela frente até o conseguir. Mas subordinar a razão à emoção impede-nos sequer de discutir estes problemas de forma racional, quanto mais resolvê-los. Muitos defendem actos discriminatórios em nome da igualdade, trocando a justiça por uma satisfação visceral de vingança. E se lhes apontam que não se pode promover a igualdade de direitos restringindo liberdades de forma discriminatória, a conversa descamba em acusações de privilégio ou falta de respeito pelas sensibilidades dos outros. Basta pensar no alarido que seria se Maher dissesse que racismo é proibi-lo de dizer uma palavra por não ser negro. Impossível, diriam. É apenas mais um branco insensível.

Não faz sentido lutar pela sensibilidade de quem se ofende com as palavras de Maher ou as tranças de Perry. Também não é pela igualdade em si que temos de lutar. Seria estúpido, e até injusto, exigir quotas para brancos nas corridas de cem metros, ou limitar os salários das super-modelos ao que os homens conseguem ganhar nessa profissão, só para equilibrar estatísticas. Nem tão pouco é a discriminação que temos de combater. Cada um tem o direito de gostar ou detestar do que lhe der na telha e ninguém tem nada que mandar nas preferências dos outros. O alvo é apenas a injustiça de restringir a liberdade de alguém por causa de atributos que não o justificam. Como não poder dizer uma palavra só porque é branco.

1- The New Yorker, Bill Maher’s Weird, Effortful Apology for Saying the N-Word
2- TVLine, Ice Cube Schools Bill Maher on N-Word: 'It's Like a Knife — You Can Use It as a Weapon or You Can Use It as a Tool'
3- Público, A falácia do “racismo inverso”
4- NME, Katy Perry apologises for ‘cultural appropriation’

1 comentário:

  1. Ludwig,

    até gostava de abordar alguns dos teus argumentos, que me parecem um pouco maniqueístas, mas acho que há um problema fundamental logo na tua premissa de partida.

    «Devia ser óbvio o racismo de proibir uma palavra a quem não tem a cor “certa”».

    Acho que montaste logo aqui um espantalho com a utilização da palavra "proibir". Não a leio em nenhuma das fontes citadas, e não vejo nem que o Ice Cube, nem que a comunidade negra, esteja a enquadrar a questão num plano de proibir que a palavra "nigger" seja usada por não negros. Talvez seja porque assim é mais fácil encaixar este assunto na narrativa da "opressão da ditadura do politicamente correcto", mas como sempre estes casos têm algumas nuances, e é diferente dizer "tu não deves usar essa palavra" e "vou proibir que uses essa palavra".

    E é assim tão chocante alguém dizer "esta palavra não deve ser usada?". Sobretudo sendo uma palavra que é usada milhares de vezes por dia nos Estados Unidos, como um insulto particularmente odioso. Além disso é uma palavra que tem um peso histórico fortíssimo, e um contexto cultural carregado de significado (que não sei se ignoras ou desconheces).

    O Bill Maher não foi processado, não foi a tribunal, e continua a poder dizer "nigger" quando quiser, em publico ou em privado. Pode sofrer represálias profissionais? Óbvio. Da mesma forma que se ele fizer uma piada sobre judeus e sabonetes.

    É uma lógica curiosa, alguém dizer "os brancos não devem usar esse palavra porque fora do contexto da cultura negra (i.e. do Hip Hop, que 'reclamou' a palavra de volta, etc) ela tem conotações racistas e que nos ferem na nossa dignidade, etc" e tu apareces e dizes "não! isso é que é racismo! estão a oprimir o branco de dizer piadas racistas no seu programa de televisão".

    Além de que, como em todas estas questões, há sempre um contexto, e variações. O Louis CK já fez piadas em que usou palavra "nigger" e nunca teve de vir pedir desculpa por causa disso. É só um dos maiores comediantes dos Estados Unidos, e branco. Espero também que não estejas a ignorar que o facto do Ice Cube achar que os negros poderem usar essa palavra tem a ver com o Hip-Hop, um movimento cultural. Não conheço discussões sobre quem pode dizer "coon" ou "spade", outros insultos racistas, mas "nigger" tem de facto um estatuto "especial", que se relaciona com essas dinâmicas culturais..

    E depois, parece-me que deturpaste um dos argumentos fundamentais da Joacine Katar Moreira na questão do racismo inverso. Ela refere a questão da escravatura colonial como o ponto de partida, que resulta DEPOIS em sociedades opressoras para os negros, através de estruturas históricas, politicas, económicas e sociais. Estruturas essas que se mantinham plenamente até há poucas décadas, e que ainda se vão arrastando, o que significa que não faz grande sentido falar em racismo inverso. Podes contestar essa ideia de que essas estruturas se mantém (com mais ou menos força), ou a definição de racismo que ela usa, que tem mais a fazer com poder institucional do que insultos pessoais; mas o argumento de "quem vendeu os escravos também era negro, portanto afinal há racismo inverso" não tem qualquer cabimento na discussão sobre esta situação concreta.

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