segunda-feira, fevereiro 20, 2017

Treta da semana (atrasada): taxas e tachos.

Em Janeiro, representantes da Sociedade Portuguesa de Autores reuniram-se com alguns eurodeputados portugueses e apelaram ao voto pela «urgente salvaguarda dos muitos milhares de autores europeus em relação à utilização muito frequente das suas obras protegidas em plataformas digitais que, não regulamentadas, representam a privação do indispensável pagamento de direitos a esses autores, sendo a omissão desse pagamento um contributo grave para o seu empobrecimento e para o empobrecimento da vida cultural europeia.»(1). Traduzindo, querem mais leis que lhes permitam cobrar mais dinheiro.

Além da violência contra a língua portuguesa, esta pretensão tem vários problemas. A noção moderna de direitos de autor, e do copyright anglo-saxónico, foi-se formando durante os séculos XVIII e XIX. Nessa altura, a distribuição das obras dependia totalmente de quem tivesse o capital necessário para fabricar cópias e, por isso, os editores dominavam a “indústria cultural”. Este domínio durou até ao fim do século XX e foi tal a habituação que a expressão “indústria cultural” até perdeu o seu carácter depreciativo. Hoje, muitos até julgam que cultura é o que se vende com licença de utilização. Quando a tecnologia obrigava os autores a depender dos distribuidores, o monopólio legal sempre permitia ao autor cobrar alguma coisa aos editores. Os editores acabavam por ficar com os direitos exclusivos, e com o grosso do lucro, mas como os autores apenas cediam o direito de fazer algo que não conseguiriam fazer – imprimir, encadernar e distribuir milhares de livros, por exemplo – parecia melhor do que nada.

Nas últimas décadas o efeito inverteu-se. Com cassetes, CD e Internet, o monopólio tecnológico dos distribuidores desapareceu e os direitos de autor, inicialmente pensados para contrariar esse monopólio, foram adaptados para manter os intermediários alapados entre os autores e o seu público. Quer por alterações à lei, como o DRM, taxas pela cópia pessoal ou criminalização da partilha, quer por práticas como a de exigir sempre direitos exclusivos, tornando quase impossível o autor celebrar um contrato sem perder direitos. A SPA é um de muitos exemplos disto.

Alegadamente, é bom pertencer à SPA porque «só a SPA tem os meios necessários para fazer a cobrança de todos os seus direitos.»(2) Mas, além de exigir que o candidato autorize a cooperativa a cobrar as quantias devidas em seu nome, exige também o compromisso de «não autorizar, directamente ou através de terceiros, a utilização das referidas obras, bem como a não aliená-las ou isentá-las do pagamento de direitos sem prévio consentimento da Cooperativa.» Para cobrar o que é devido ao autor não é preciso retirar ao autor o direito de decidir se ou quanto cobra. Mas, na verdade, o que importa não é o autor. Apesar da sociedade ser nominalmente “de Autores”, pode ser associado qualquer pessoa singular ou colectiva desde que tenha direitos exclusivos sobre as obras, «quer originariamente, quer por sucessão, transmissão ou outro título aquisitivo». À SPA só importa esses monopólios legais que permitem interpor-se entre criadores e público. E o proveito não é pequeno. Em 2015, a SPA cobrou 37 milhões de euros e distribuiu 14 milhões a entidades portuguesas com direitos sobre obras geridas pela SPA (não necessariamente autores), 9 milhões a entidades estrangeiras e os restantes 14 milhões ficaram pelo caminho (3). Este esquema de taxas cobradas por uma entidade privada que fica com parte do dinheiro e distribui o resto por quem lhe ceda os seus direitos é ineficiente, opaco e injusto. Se é mais disto que a SPA pretende, espero que os eurodeputados votem contra.

Outro problema da pretensão da SPA é a premissa de que zelam pelos direitos dos autores. O problema é logo aparente no funcionamento da cooperativa: exige que os autores cedam o direito de decidir sobre as suas obras; fica com boa parte do dinheiro; e muito do que distribui é para detentores de direitos que não são autores, como editoras, por exemplo. Mas não é só por isto. Há direitos mais fundamentais que são incompatíveis com estes esquemas de cobrança, como o direito à educação e à participação cultural. Não se pode ser escritor sem ler livros nem compositor sem ouvir música e, se cobram por todo o acesso à cultura, então só os ricos poderão ser autores. Os ricos ou os piratas. Assumem também que o lucro é a motivação indispensável para o autor. Para a “indústria cultural” sim. Estes esquemas são indubitavelmente atraentes para gestores de direitos como editoras e produtores. Mas os autores são motivados pela vontade de criar. O acesso livre à cultura é muito mais importante do que uma promessa vaga de que, se venderem muito, a SPA depois dá-lhes algum dinheiro em troca dos direitos exclusivos de negociar o uso da obra.

Finalmente, a pretensão da SPA assenta numa ideia errada de quem são os autores. A legislação dos direitos de autor cobre todas as «criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas». Isto inclui, por exemplo, os desenhos dos meus filhos, os vídeos e fotografias das férias, as aulas preparadas por trezentos mil professores e os trabalhos feitos por quase dois milhões de alunos em Portugal. A SPA representa 25 mil detentores de direitos, mas isso é uma percentagem ridiculamente pequena dos autores portugueses. Que, sendo qualquer pessoa que exteriorize uma criação intelectual, é praticamente toda a população do país. Além de não representar os interesses desta esmagadora maioria de autores, a SPA ainda lhes cobra 37 milhões de euros por ano. A cultura não é feita por quem tem cartão de associado e cobra bilhete. A cultura é uma criação colectiva de todos.

Espero que os nossos eurodeputados zelem por todos os direitos de todos os autores e não apenas pelos interesses económicos de uns poucos que agarraram o tacho.

1- SPA, SPA reúne-se em Bruxelas com Eurodeputados Portugueses
2- SPA, Torne-se Sócio
3- SPA, Relatório e Contas (Direitos Cobrados e Distribuídos 2015)

7 comentários:

  1. Ludwig,

    Dizes «Espero que os nossos eurodeputados zelem por todos os direitos de todos os autores e não apenas pelos interesses económicos de uns poucos que agarraram o tacho.»

    Esperas cada coisa mais estranha... Mais vale esperar que o Trump mude de penteado!

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  2. António,

    «Mais vale esperar que o Trump mude de penteado!»

    Esse basta uma rabanada de vento :)

    Mas a democracia funciona bem quando o pessoal se mexe. Vê o que aconteceu recentemente na Roménia, por exemplo. O problema é só pôr o pessoal a mexer.

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    1. Ludwig,

      Eu até concordo que existe verdade nisso ("O problema é só pôr o pessoal a mexer"), na verdade é um grande problema, basta pensar que o Salazar (que o diabo o guarde por muitos e bons milénios!) manteve-se no poder muito graças ao "bom povo português"...

      Em geral, se não parece afectar-me, eu não quero saber. Há um grande comodismo entre o pessoal, e a ideia de que "eu não estou para me chatear" prevalece. Não que eu concorde, mas é o que temos.

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  3. "Nas últimas décadas o efeito inverteu-se. Com cassetes, CD e Internet, o monopólio tecnológico dos distribuidores desapareceu e os direitos de autor, inicialmente pensados para contrariar esse monopólio, foram adaptados para manter os intermediários alapados entre os autores e o seu público"

    Quais intermediários? Que eu saiba quem recebe direitos de autor são os autores e não quaisquer intermediários.

    "e muito do que distribui é para detentores de direitos que não são autores, como editoras"

    Podes dar exemplos de editoras que recebem direitos de autor e referentes a que artistas?


    "A cultura não é feita por quem tem cartão de associado e cobra bilhete. A cultura é uma criação colectiva de todos."

    Faz-te confusão que algumas pessoas que são criadoras de arte ganhem dinheiro com isso porque na tua opinião toda gente é artista. Mas não te faz confusão que tu ganhes dinheiro a ensinar quando toda gente é professora ( todos jà ensinamos coisas a alguém)ou que o Ronaldo ganhe dinheiro a jogar à bola quando toda gente o faz tb. É uma questão de mercado mas é difícil para ti entender isso.


    "se cobram por todo o acesso à cultura, então só os ricos poderão ser autores. Os ricos ou os piratas"

    Errado , se não se compensa os artistas pelas obras que criam só quem não precisa de ganhar dinheiro( rico) vai investir tempo e dinheiro a estudar música , pintura , cinema, literatura etc. e a produzir uma obra que não é barata e exige tempo e dedicação.

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  4. «Quais intermediários? Que eu saiba quem recebe direitos de autor são os autores e não quaisquer intermediários.»

    O dinheiro é pago aos detentores dos direitos de distribuição. Em geral, não são os autores mas sim os distribuidores.

    «Podes dar exemplos de editoras que recebem direitos de autor e referentes a que artistas?»

    Sim. Tens aqui vários:

    http://www.rollingstone.com/music/news/the-new-economics-of-the-music-industry-20111025

    «Adele, who is signed to Sony Music, sells "Rolling in the Deep" for $1.29. Apple, as the retailer, keeps 30 percent, or roughly 40 cents. The rest, 90 cents, goes to Sony. From that, the major record label must deduct 9.1 cents as a "mechanical royalty," paid to Adele and her co-writer, Paul Epworth»

    Apple, 30 cêntimos. Sony: 81 cêntimos. Autores: 9 cêntimos. Depois recebe também pelas vendas cerca de 20 cêntimos, mas disso desconta todo o dinheiro que a Sony lhe cobra pelo álbum, publicidade, estúdio e assim por diante, o que muitas vezes não dá nada (depende dos autores). Mas, seja como for, a fatia principal fica com a Apple e a Sony. E isto é com a Adelle. Imagina como é com autores menos famosos...

    «Faz-te confusão que algumas pessoas que são criadoras de arte ganhem dinheiro com isso porque na tua opinião toda gente é artista.»

    Não me faz confusão que pessoas ganhem dinheiro seja pelo que for. Pode ser a jogar futebol, a cortar cabelo, a pintar quadros, a dar aulas, etc.

    O que me faz confusão é que se crie leis impondo restrições ao uso de propriedade pessoal, como computadores pessoais e telemóveis, com o intuito de tornar lucrativo um negócio de cópia de sequências de bits que não tem qualquer valor comercial porque qualquer pessoa faz isso de graça.

    Nota que isto não tem nada que ver com a criação artística, porque se um artista de que muita gente gosta quiser ganhar dinheiro certamente consegue convencer os seus admiradores a pagar-lhe pelo trabalho. Como muitos já fazem sem precisar de restrições legais à cópia.

    «Errado , se não se compensa os artistas pelas obras que criam»

    Se um artista quer criar uma obra e mil pessoas querem ver essa obra criada e o artista disser “por vinte mil euros crio a obra” e essas mil pessoas estiverem dispostas a dar vinte euros cada uma, o artista cria a obra e é compensado. Se não quiserem, então o artista que arranje outro emprego. Se eu cobrasse 20€ a cada pessoa que viesse ler o meu blog simplesmente deixava de ter leitores e, por isso, não faço dinheiro com isto. Mas a transacção voluntária de dinheiro e serviços não justifica a concessão de monopólios legais que violem direitos pessoais de propriedade. Não é por eu ter vontade de ganhar dinheiro com o blog que se justifica proibir que tu copies coisas com o teu computador.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. "Sim. Tens aqui vários:

    http://www.rollingstone.com/music/news/the-new-economics-of-the-music-industry-20111025"

    Mas esse dinheiro provem de direitos de autor? isso passa pela SPA? Penso que esses dinheiro tem mais a vêr com royaltis.

    Uma editora quando faz uma edição de x exemplares de um cd , paga aos autores da letra e da música através da SPA os devidos direitos autorais. É a editora que paga ao artista ! . No caso do streaming não percebo bem como funciona (se calhar não funciona), estive a lêr no site da SPA e fiquei com a ideia que tem de se pagar uma licença, mas provavelmente poucos cumprem e por isso esta necessidade de encontrar formas de corrigir a situação a nivel Europeu.


    "O que me faz confusão é que se crie leis impondo restrições ao uso de propriedade pessoal.."

    Já te expliquei noutra discussão que os teus direitos de propriedade pessoal são pouco relevantes quando estão em jogo outros direitos mais importantes para a economia e para a sociedade.

    "Se um artista quer criar uma obra e mil pessoas querem ver essa obra criada .."

    Essa ideia não funciona, principalmente para artistas desconhecidos.


    "Se eu cobrasse 20€ a cada pessoa que viesse ler o meu blog simplesmente deixava de ter leitores e, por isso, não faço dinheiro com isto."

    O teu blog ou emitir opiniões nada tem a vêr com arte, que é do que estamos a falar. As pessoas sempre estiveram dispostas a pagar por arte e é por isso que tem mercado , gera emprego, é benéfica para a sociedade e para a economia; e por tudo isso deve ser protegida.

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