Treta da semana (passada): a teoria da confusão.
O Orlando Braga discordou da definição de evolução como sendo a variação nas características hereditárias ao longo das gerações. Em vez disso, propôs que «No sentido biológico, “evolução” designa um processo pelo qual a vida emerge da matéria não-animada e se desenvolve depois por meios exclusivamente naturais. Foi esse o sentido que Darwin emprestou à palavra e foi retido pela comunidade científica.» (1)
É curioso. Na primeira edição de “A Origem das Espécies”, Darwin usou o termo “evolução” exactamente zero vezes (2). Em vez disso, falou sempre em descendência com modificação, que é, aliás, o significado que a biologia moderna atribui ao termo “evolução” (3). Se bem que na sexta edição já tivesse mencionado “evolução”, fê-lo praticamente só no contexto das objecções à sua teoria (4). Quanto à origem da vida em si, Darwin foi bastante claro: «a ciência, por enquanto, não esclarece o problema muito maior da essência ou origem da vida»(4). A definição de evolução que Braga atribui a Darwin, «processo pelo qual a vida emerge da matéria não-animada», teria surpreendido e chocado o próprio Darwin.
Braga discordou também da minha explicação de que os mecanismos da evolução podem ser mais ou menos aleatórios (5). Aparentemente, julga que ser aleatório é como estar grávida. Ou está, ou não está. Mas isto é errado. O resultado de lançar um dado equilibrado é aleatório, com uma probabilidade de um em seis para cada número. Se o dado estiver viciado e a probabilidade de sair 6 for 50%, o resultado continua a ser aleatório mas será menos aleatório porque é mais previsível. E se lançarmos ambos os dados um milhão de vezes, é praticamente certo que o dado viciado terá um resultado médio superior ao do dado equilibrado. É isto que acontece na evolução. O acaso tem alguma influência. Por exemplo, a retina dos vertebrados desenvolve-se como uma extensão do cérebro e acaba por ficar ao contrário, com os receptores atrás dos nervos e dos vasos sanguíneos. Nos invertebrados, a retina desenvolve-se a partir de uma invaginação da cabeça e fica orientada da forma mais conveniente. Alguma mutação menos feliz num ancestral dos vertebrados deu neste azar. Mas a aleatoriedade não é total, e os enviesamentos causados pela pressão da selecção natural fizeram com que os olhos dos vertebrados acabassem por ser quase tão eficientes quanto os dos invertebrados.
Além de persistir nas confusões sobre a informação e o teorema de Gödel, Braga acrescenta agora que eu estou «a misturar a micro-evolução com a macro-evolução» enquanto que ele só está a falar desta última. Este é um truque comum entre os “cépticos” da evolução. A ideia é a de que aceitam que as populações se vão modificando com o passar das gerações mas não aceitam que a alteração seja muito grande. Exactamente o que isso quer dizer ou porque defendem isso nunca é explicado. É como aceitar que uma pessoa pode envelhecer um ou dois anos mas nunca setenta, porque o macro-envelhecimento é impossível.
Na verdade, existem várias distinções entre micro-evolução e macro-evolução. Uma é a distinção entre a evolução de elementos microscópicos do organismo, como enzimas e células, e elementos macroscópicos como ossos e escamas. Isto é relevante em paleontologia, por exemplo, onde normalmente só os macroscópicos são visíveis. Outra distinção é a da evolução dentro de uma mesma população e a evolução que envolve formação de novas espécies. No entanto, tudo isto refere ao mesmo processo de evolução e, por isso, muitos autores simplesmente ignoram essa distinção como pouco relevante. Mas há um sentido no qual a diferença entre micro-evolução e macro-evolução pode ser importante. Como Ernst Mayr apontou, a teoria da evolução descreve apenas o que acontece às populações, ao longo das gerações, sob pressão dos outros organismos com quem coexistem e do ambiente onde vivem. No entanto, esta teoria é omissa acerca do impacto que os organismos têm sobre o ambiente. Que normalmente é negligenciável mas por vezes não é.
Por exemplo, há coisa de dois mil milhões de anos começaram a proliferar bactérias capazes de aproveitar o hidrogénio da água durante a fotossíntese. Sobrava o oxigénio, que deitavam fora. Este poluente foi reagindo com os iões metálicos dissolvidos no oceano formando óxidos insolúveis e, assim, retirando gradualmente este iões da água. Pior ainda, quando se esgotaram os iões metálicos nos oceanos, o oxigénio começou a escapar-se para o ar e alterou profundamente a atmosfera da Terra. A teoria da evolução permite modelar como é que as populações foram sendo pressionadas a adaptar-se a estas condições mas, por si só, não nos permite prever o que iria acontecer aos iões metálicos nos oceanos ou à composição química da atmosfera. Quando a evolução decorre durante muito tempo, os organismos podem ter grande impacto no ambiente e esse impacto tem de ser modelado por outras teorias que não a da evolução. Pela química, geologia, física e assim por diante. É essa a diferença mais importante entre micro-evolução e macro-evolução. No entanto, do ponto de vista da evolução, o processo é o mesmo. É sempre o lento acumular de mutações hereditárias sob pressão selectiva. Dizer que se aceita a micro-evolução mas que a macro-evolução é impossível é apenas uma forma rebuscada de admitir que não se percebe nada do assunto.
1- Orlando Braga, Ludwig Krippahl: mistura, baralha, confunde, e diz que é ciência
2- Project Gutenberg, On the Origin of Species, first edition.
3- Wikipedia, Evolution.
4- Project Gutenberg, On the Origin of Species, sixth edition
5- Treta da semana (atrasada): Impossível.