O problema da autoridade.
A propósito do post anterior, o Carlos Leal criticou-me por «juntar no mesmo exemplo [...] a referência ao Papa (que dispensa apresentações biográficas), Gabrielle Amorth, velho gagá de 88 anos (o tal dos bispos do Mexico), um padre português irrelevante e desconhecido, e os espíritas» porque, segundo o Carlos, é preciso «citar as fontes relevantes»(1). Quando apontei que, objectivamente, não temos dados que permitam determinar qual destes senhores percebe mais de demónios e espíritos, o Carlos invocou “razões de coração” que levam as pessoas a «confiar numa história de fé que os tem ‘humanizado’ e até tornado mais exigentes do ponto de vista da fé e, sobretudo, acerca de "a quem dar fé"». Deu até o exemplo costumeiro do amor como antítese da ciência: «não levaste a hipótese de casar ao laboratório, para dentro de um modelo matemático».
O exemplo do amor depende sempre de duas confusões. Primeiro, a confusão entre valores e alegações de factos. A paixão é um critério importante em certas decisões mas não constitui uma descrição dos factos e até reconhecemos o erro de deixar que a paixão nos distorça a percepção da realidade. Enquanto a minha decisão de casar foi muito influenciada pelo que sinto, o que sei acerca da pessoa com quem casei não resulta do “coração” mas sim de um grande conjunto de dados objectivos, acumulados durante duas décadas, que me permitiu formar opiniões de forma científica, num sentido lato do termo. Esta é a segunda confusão.
A matemática e o trabalho de laboratório são ferramentas úteis para a ciência mas não a circunscrevem. O fundamental na ciência é que a confiança depositada em cada hipótese seja proporcional ao suporte que os dados dão a essa hipótese e retiram às alternativas. Isto em contraste com as abordagens tradicionais de confiar numa hipótese porque surgiu num sonho, porque gostaríamos que fosse verdade, porque dá uma desculpa para mandar nos outros, porque está escrita num livro antigo, porque o mestre a afirmou e razões afins. Neste sentido, que remete à origem etimológica de “ciência” como conhecimento, tudo o que fundamente legitimamente uma alegação factual é científico. A menos que alguém esteja cego pela paixão, formará uma ideia daquilo que o outro realmente é seleccionando as alternativas mais suportadas pelo que observa. Se não o fizer, se a paixão o convencer de que é amado por alguém que o ignora ou maltrata, então dizemos que, pobre coitado, anda iludido.
O mesmo se passa com a autoridade. Considerar uma fonte autoritária por gostar muito da pessoa, venerar o livro ou pertencer à religião é uma ilusão análoga. A opinião acerca dos factos não se justifica “pelo coração” mas apenas pelo fundamento em dados objectivos. Assim, uma fonte só é autoridade legítima sobre certas matérias se houver indícios objectivos de que as suas afirmações tendem a corresponder melhor à realidade do que, em média, as afirmações de fontes não autoritárias. Desses indícios destaco três pela sua relevância.
Primeiro, a fonte autoritária tem de ser capaz de averiguar a verdade daquilo que alega. Se não consegue saber se o que diz é verdadeiro ou falso não é autoridade nenhuma. Por isso, só podemos confiar numa fonte como autoridade se houver razões objectivas para confiar na forma como determinou a verdade do que alega. Não precisamos de saber os detalhes, mas é preciso ter indícios de que o fez de forma correcta e fiável. Por exemplo, se um astrónomo me disser a percentagem de estrelas que é da mesma categoria do Sol eu confio nele como autoridade, mesmo não dispondo dos dados, porque percebo que a forma como os astrónomos determinam essas coisas é fiável. Por outro lado, se um tarólogo me diz que descobriu por intuição que a carta do enforcado na casa de Júpiter revela dificuldades profissionais eu não lhe dou crédito nenhum. Todas as alegadas autoridades em matéria de demónios e espíritos falham este critério porque, do Papa aos espíritas, nenhum dá evidências objectivas de poder determinar a verdade do que alega de forma fiável. Especulam, nada mais.
Também é importante que a opinião da fonte que consideramos autoritária seja consensual entre os peritos que cumpram os mesmos requisitos de autoridade. Por exemplo, se o valor que o astrónomo me der for muito diferente do valor indicado por outros astrónomos, então já não me posso fiar nele. E se não houver consenso entre os astrónomos então não há autoridade na matéria, pelo menos enquanto não determinarem quem tem razão. Também nisto os espíritas, o Papa, o Gabrielle Amorth e restantes falham. Em geral, as superstições, incluindo as religiosas, têm muitos peritos, cada um reconhecido pelos seus seguidores, mas não têm qualquer consenso acerca disto dos deuses e dos demónios, nem forma de o encontrar.
Finalmente, a fonte autoritária tem de ser imparcial. A avaliação de alegações factuais exige a ponderação imparcial das evidências. Quando recorremos a uma autoridade estamos a delegar nela a tarefa de avaliar as evidências e escolher a hipótese que tem melhor suporte. Mas se o perito tem interesse pessoal na defesa de certa hipótese já não podemos confiar que a esteja a indicar por ser objectivamente a que tem melhor suporte. Também pode ser que nos diga que é aquela porque lhe dá jeito. O vendedor de automóveis pode perceber muito de mecânica mas, dado o claro conflito de interesses, não vamos simplesmente aceitar o que nos diz do carro que nos quer vender.
A razão pela qual eu junto no mesmo saco espíritas, exorcistas, padres e o Papa é porque, de facto, pertencem todos à categoria das falsas autoridades.
1- Comentários em Treta da semana (passada): o diabo das respostas.