Antes da nossa conversa sobre copyright e censura ser interrompida pelo início do semestre lectivo, o Nelson Zagalo escreveu que «A censura não quer saber da estrutura das palavras, quer saber das ideias. Já o copyright protege a estrutura, não as ideias»(1). Concordo com a primeira frase e, por isso, discordo da segunda. Por exemplo, nos últimos dias a associação dos clubes de vídeo (ACAPOR) fez encerrar dois “sites de partilha” com ameaças de processos judiciais (2). Esses “sites de partilha” são fóruns de discussão onde os utilizadores trocam informação sobre como e onde podem descarregar certos ficheiros, mas os sites não armazenam os ficheiros em si. Claramente, não se trata de proteger a “estrutura das palavras” mas sim de censurar certas informações qualquer que seja a forma pela qual são transmitidas. E mesmo que se descarte esta acção da ACAPOR como uma parvoíce anómala, sendo movida por quem nem é autor nem tem nada a ganhar com a publicidade negativa que isto lhe trará, permanece o problema do copyright moderno só funcionar com censura.
Originalmente, o copyright concedia ao autor um monopólio temporário sobre a reprodução tipográfica da sua obra. Mais nada. Isto restringia a regulação à cópia industrial sem afectar a vida privada, a liberdade de expressão ou a criatividade. Infelizmente, a partir deste precedente legal os lobbies da cópia e distribuição foram aumentando o âmbito do monopólio*. Em alguns casos apenas estendendo o mesmo princípio a outras tecnologias de cópia, como cassetes e CD, mas, noutros, descartando o princípio de “proteger a estrutura e não as ideias”. Por exemplo, o copyright sobre as histórias do Mickey e do Harry Potter não cobre apenas essas histórias, com essa estrutura, mas abarca também a própria ideia dos personagens. A extensão do copyright a obras derivadas torna ilegal publicar sem autorização histórias novas do Harry Potter, banda desenhada do Mickey ou pautas com arranjos musicais mesmo que o resultado seja novo e diferente do original. Não se restringe a uma estrutura particular. Abrange os conceitos em si, proibindo a sua expressão.
Ainda mais grave é a extensão do copyright ao domínio digital. A distinção entre uma forma particular de exprimir uma ideia e a informação acerca da ideia era parte intrínseca da noção de cópia no domínio analógico porque esta exigia semelhanças na forma. Fotocopiar um livro produz uma cópia mas codificar o texto numa lista de números não seria uma cópia do livro e, antes do advento da tecnologia digital, nem sequer era possível reclamar monopólios sobre sequências de números, independentemente do que representassem. Isto era essencial para distinguir entre o monopólio sobre uma forma particular de exprimir certa informação e a censura da informação em si. No domínio digital esta distinção desapareceu.
Quando uma obra é expressa como uma sequência de letras no papel, símbolos na pauta ou sons o copyright cobre essa estrutura mas não a informação, em abstracto, que a possa especificar. Por exemplo, publicar um desenho do Mickey pode violar o copyright sobre essa obra mas publicar uma lista de instruções detalhadas para desenhar o Mickey é legítimo porque nem é uma cópia do desenho nem o copyright abrange procedimentos ou receitas. No entanto, quando a obra é codificada como uma sequência de números num suporte digital, o copyright passa a cobrir qualquer sequência de números, lista de instruções ou procedimento que possa ser usado para representar a obra, independentemente da forma ou método de codificação. Se a lista de instruções para desenhar o Mickey estiver no formato SVG (3) já viola o copyright do desenho. No domínio digital, a distinção que o Nelson alega, entre estrutura e ideia, é eliminada. O critério para determinar se um certo ficheiro viola o copyright não é se a ideia está expressa na mesma forma com que foi expressa no original mas se o ficheiro permite, seja de que forma for, obter a informação necessária para recriar o original. É a isto que chamo censura.
O sistema de incentivar a criatividade concedendo monopólios sobre a cópia não é adequado à tecnologia digital. Para poder proteger o negócio da cópia sem censurar é necessário que a cópia seja definida pela forma e não pela informação que contém. É necessário distinguir entre o desenho do Mickey e as instruções para desenhar o Mickey. Com a representação digital isso é impossível. O disparate de julgar que a álgebra é como as fotocópias transformou o copyright em censura. A única forma de corrigir este erro é abandonar a regulação da cópia. Felizmente, há outras formas de incentivar a criatividade. Uma é simplesmente deixar que os criadores de músicas, livros e filmes negoceiem o seu trabalho directamente com quem estiver disposto a pagar-lhes, como fazem os criadores de roupas, cozinhados, edifícios, tácticas de futebol, teoremas matemáticos ou teorias científicas. Se for necessário subsídios do Estado, podem ser em dinheiro em vez de leis ou então o monopólio pode ser sobre a exploração comercial em vez de ser sobre a cópia. Seja como for, o sistema de incentivo à criatividade tem de ser mudado, não só porque a economia da cópia mudou mas também, e especialmente, porque já não é possível regular a cópia sem censura.
* Já me disseram ser falácia designar por monopólio este direito exclusivo de copiar e distribuir algo. Mas é esse o significado do termo. Chamar “protecção” ao poder de impedir outros de distribuir e copiar é que é falacioso porque a única coisa que o copyright protege é o negócio e é criando um monopólio.
1- Comentários em Um acidente histórico.
2- ACAPOR, ACAPOR saúda encerramento de NÉ MIGUELITO, e PDC Links também encerra
3- Wikipedia, Scalable Vector Graphics