domingo, março 31, 2013

Treta da semana (passada): a importância de respirar.

Recebi há dias um email a anunciar um novo curso do «MÉTODO JC - O renascer da essência no retorno à fonte. Um curso para o despertar da luz interna»(1). Criado por Joaquim Caeiro, «tendo por base a sua própria evolução e o seu despertar espiritual», este curso oferece formação em áreas diversas, desde «Como lidar com a energia do dinheiro» até à «Criação de condições para facilitar o Método JC». Como é costume nestas coisas, o curso não tem um preço mas sim um investimento. São 40€ por pessoa para investir neste capitalismo espiritual, onde o capital financeiro serve para gerar capital «nos campos emocionais, mentais, espirituais e/ou energéticos». O Joaquim, facilitador e criador do método, alivia assim aos alunos o fardo espiritual de "lidar com a energia do dinheiro”. É bom ver que ainda há pessoas dispostas a sacrificar-se pelos outros.

O percurso de vida do Joaquim, no qual ele baseou o seu método espiritual e/ou energético, também é notável. Inicialmente gestor de empresas, passou a «Psicoterapeuta da Alma & Life Coach, Orador, Escritor, Professor de Meditação» depois de uma importante descoberta:

«Na tentativa de organizar a minha mente e tudo o que nela se produzia, resolvi [iniciar-me] na meditação, apenas com os livros do grande psiquiatra Brian Weiss. Nesta busca, tive a oportunidade de partilhar momentos inesquecíveis com alunos deste médico, numa meditação guiada no algarve. Após estas vivências, e sabendo que a solução estava na tranquilidade e organização mental, insisti na meditação, e nada resultava. Até que sozinho, descobri que a Respiração se encontrava na base da Vida.»(2)

Foi a partir desse momento que Joaquim Caeiro decidiu entregar-se «à prática constante da respiração», uma decisão ainda mais assombrosa por só ter sido tomada aos 33 anos.

1- Akademia do ser, MÉTODO JC - O renascer da essência no retorno à fonte, com Joaquim Caeiro
2- Joaquim Caeiro, Universo Espirito de Luz

sexta-feira, março 29, 2013

Censura.

Antes da nossa conversa sobre copyright e censura ser interrompida pelo início do semestre lectivo, o Nelson Zagalo escreveu que «A censura não quer saber da estrutura das palavras, quer saber das ideias. Já o copyright protege a estrutura, não as ideias»(1). Concordo com a primeira frase e, por isso, discordo da segunda. Por exemplo, nos últimos dias a associação dos clubes de vídeo (ACAPOR) fez encerrar dois “sites de partilha” com ameaças de processos judiciais (2). Esses “sites de partilha” são fóruns de discussão onde os utilizadores trocam informação sobre como e onde podem descarregar certos ficheiros, mas os sites não armazenam os ficheiros em si. Claramente, não se trata de proteger a “estrutura das palavras” mas sim de censurar certas informações qualquer que seja a forma pela qual são transmitidas. E mesmo que se descarte esta acção da ACAPOR como uma parvoíce anómala, sendo movida por quem nem é autor nem tem nada a ganhar com a publicidade negativa que isto lhe trará, permanece o problema do copyright moderno só funcionar com censura.

Originalmente, o copyright concedia ao autor um monopólio temporário sobre a reprodução tipográfica da sua obra. Mais nada. Isto restringia a regulação à cópia industrial sem afectar a vida privada, a liberdade de expressão ou a criatividade. Infelizmente, a partir deste precedente legal os lobbies da cópia e distribuição foram aumentando o âmbito do monopólio*. Em alguns casos apenas estendendo o mesmo princípio a outras tecnologias de cópia, como cassetes e CD, mas, noutros, descartando o princípio de “proteger a estrutura e não as ideias”. Por exemplo, o copyright sobre as histórias do Mickey e do Harry Potter não cobre apenas essas histórias, com essa estrutura, mas abarca também a própria ideia dos personagens. A extensão do copyright a obras derivadas torna ilegal publicar sem autorização histórias novas do Harry Potter, banda desenhada do Mickey ou pautas com arranjos musicais mesmo que o resultado seja novo e diferente do original. Não se restringe a uma estrutura particular. Abrange os conceitos em si, proibindo a sua expressão.

Ainda mais grave é a extensão do copyright ao domínio digital. A distinção entre uma forma particular de exprimir uma ideia e a informação acerca da ideia era parte intrínseca da noção de cópia no domínio analógico porque esta exigia semelhanças na forma. Fotocopiar um livro produz uma cópia mas codificar o texto numa lista de números não seria uma cópia do livro e, antes do advento da tecnologia digital, nem sequer era possível reclamar monopólios sobre sequências de números, independentemente do que representassem. Isto era essencial para distinguir entre o monopólio sobre uma forma particular de exprimir certa informação e a censura da informação em si. No domínio digital esta distinção desapareceu.

Quando uma obra é expressa como uma sequência de letras no papel, símbolos na pauta ou sons o copyright cobre essa estrutura mas não a informação, em abstracto, que a possa especificar. Por exemplo, publicar um desenho do Mickey pode violar o copyright sobre essa obra mas publicar uma lista de instruções detalhadas para desenhar o Mickey é legítimo porque nem é uma cópia do desenho nem o copyright abrange procedimentos ou receitas. No entanto, quando a obra é codificada como uma sequência de números num suporte digital, o copyright passa a cobrir qualquer sequência de números, lista de instruções ou procedimento que possa ser usado para representar a obra, independentemente da forma ou método de codificação. Se a lista de instruções para desenhar o Mickey estiver no formato SVG (3) já viola o copyright do desenho. No domínio digital, a distinção que o Nelson alega, entre estrutura e ideia, é eliminada. O critério para determinar se um certo ficheiro viola o copyright não é se a ideia está expressa na mesma forma com que foi expressa no original mas se o ficheiro permite, seja de que forma for, obter a informação necessária para recriar o original. É a isto que chamo censura.

O sistema de incentivar a criatividade concedendo monopólios sobre a cópia não é adequado à tecnologia digital. Para poder proteger o negócio da cópia sem censurar é necessário que a cópia seja definida pela forma e não pela informação que contém. É necessário distinguir entre o desenho do Mickey e as instruções para desenhar o Mickey. Com a representação digital isso é impossível. O disparate de julgar que a álgebra é como as fotocópias transformou o copyright em censura. A única forma de corrigir este erro é abandonar a regulação da cópia. Felizmente, há outras formas de incentivar a criatividade. Uma é simplesmente deixar que os criadores de músicas, livros e filmes negoceiem o seu trabalho directamente com quem estiver disposto a pagar-lhes, como fazem os criadores de roupas, cozinhados, edifícios, tácticas de futebol, teoremas matemáticos ou teorias científicas. Se for necessário subsídios do Estado, podem ser em dinheiro em vez de leis ou então o monopólio pode ser sobre a exploração comercial em vez de ser sobre a cópia. Seja como for, o sistema de incentivo à criatividade tem de ser mudado, não só porque a economia da cópia mudou mas também, e especialmente, porque já não é possível regular a cópia sem censura.

* Já me disseram ser falácia designar por monopólio este direito exclusivo de copiar e distribuir algo. Mas é esse o significado do termo. Chamar “protecção” ao poder de impedir outros de distribuir e copiar é que é falacioso porque a única coisa que o copyright protege é o negócio e é criando um monopólio.

1- Comentários em Um acidente histórico.
2- ACAPOR, ACAPOR saúda encerramento de NÉ MIGUELITO, e PDC Links também encerra
3- Wikipedia, Scalable Vector Graphics

domingo, março 24, 2013

Treta da semana (passada): o argumento do Bernardo e do Tomás.

O Bernardo Motta rescreveu há uns meses o argumento teológico de Tomás de Aquino, defendendo que «a existência de Deus pode ser conhecida com certeza racional a partir da observação das coisas existentes». No entanto, contrariando a sua própria alegação, em vez de fundamentar essa alegada certeza em observações o Bernardo baseia-se apenas em especulações às quais abusivamente designa de axiomas. Este problema pode ser ilustrado com um contra-argumento muito mais sucinto do que o do Bernardo.

O universo é o conjunto de tudo o que existe.
O universo surgiu há cerca de 13800 milhões de anos.
Logo, não pode existir um deus eterno.

A primeira premissa pode ser considerada um axioma porque apenas estipula como uso o termo “universo” no contexto deste argumento. Mesmo quem prefira dar-lhe um significado diferente pode aceitar que, neste argumento, é isso que quero dizer. Mas a segunda premissa não pode ser um axioma porque não se pode determinar só com o que sabemos da nossa liguagem se tudo o que existe só existe há cerca de 13800 milhões de anos. É por isso que este argumento não basta para demonstrar que esse deus é um personagem fictício. Essa conclusão é correcta e pode ser justificada, mas não inventando axiomas. É apontar evidências concretas como a diversidade dos mitos, a capacidade humana para inventar deuses, o jeito que a religião dá independentemente de ser verdade ou não e assim por diante. Não resolvemos estes assuntos com argumentos axiomáticos como se se tratasse de um mero exercício de dedução formal.

O Bernardo comete este erro ao propor “axiomas” como «Os meus sentidos são relativamente fiáveis», «a teoria correcta acerca do tempo é a de [...] que o passado já não existe e que o futuro ainda não existe» ou «há essências nas coisas». Estas afirmações não são axiomas mas sim hipóteses que carecem de evidências antes de serem aceites como provisoriamente verdadeiras. Especialmente saliente é a hipótese do nada do qual «nada vem. Ou seja, sendo o "nada" um termo usado para designar a não existência de coisas, então rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe.» Que o Bernardo use “nada” para designar “a não existência de coisas” é perfeitamente aceitável, mas isso não implica que “a não existência de coisas” respeite a regra determinística do “rigorosamente coisa alguma pode surgir do que não existe”. Isso já é uma afirmação especulativa acerca da realidade, e a evidência que temos até sugere o contrário. Não parece haver qualquer impedimento a que coisas que não existem passem a existir. Aparentemente, fazem-no de forma aleatória, espontânea e abundante (2). Mesmo que o Bernardo insista em definir o seu termo “nada” como designando algo do qual “rigorosamente coisa alguma pode surgir”, resta a questão de esse “nada”, definido dessa forma, aparentemente não corresponder a qualquer aspecto da realidade.

O argumento principal do Bernardo depende da realidade se conformar a estas expectativas: Deus existe porque só esse ser eterno é que pode ter causado tudo o resto. Mas mesmo se aceitássemos essa premissa, não há via racional para se chegar daí ao deus do Bernardo. Ao longo do argumento, o Bernardo vai acrescentando gratuitamente atributos até chegar a uma «coisa eterna, auto-existente, imutável, imaterial, simples, una, causa primeira e sumamente perfeita». Em alguns casos até se contradiz, na ânsia de adjectivar. Por exemplo, se é imutável então não pode ter causado nada. Pior ainda, depois afirma que isto é «o conceito teísta de Deus». Nem nada que se pareça. O deus teísta é uma pessoa que pensa e sente, que tem desejos e planos, que ama, que se preocupa connosco, que ouve preces, faz milagres, perdoa e encarnou no seu próprio filho. A premissa de que é preciso uma causa eterna para haver universo, mesmo que a aceitássemos, não contribui nada para demonstrar uma coisa destas.

O que argumentos como este reforçam é precisamente a tese contrária. É um caso análogo aos da astrologia, bruxaria, telepatia e afins. Tal como o deus do Bernardo, se estas coisas fossem reais já teríamos evidências sólidas em seu favor. Como a Lua ou o granito, cuja existência pode ser facilmente demonstrada sem axiomatizações obscuras e demagógicas. Mas quando se alega demonstrar que algo existe com «certeza racional a partir da observação das coisas existentes» e, em vez dessa observação, se assenta tudo em “axiomas” sem fundamento, a única certeza racional é a de que o argumento é treta.

1- Bernardo Motta, Demonstrar a existência de Deus...
2- Gordon Kane,Are virtual particles really constantly popping in and out of existence? Or are they merely a mathematical bookkeeping device for quantum mechanics?

domingo, março 17, 2013

Treta da semana (passada): eliminar estereótipos.

Na terça feira o Parlamento Europeu aprovou um relatório pedindo a «eliminação dos estereótipos de género na UE»(1), se bem que tenha rejeitado alguns artigos mais problemáticos (2). O relatório suscitara contestação por pedir, entre outras coisas, «a proibição de todas as formas de pornografia nos meios de comunicação social», onde incluía o «campo digital». Noutros meios de comunicação é fácil distinguir entre privado e social. Ainda que “todas as formas de pornografia” seja uma categoria demasiado abrangente, pode-se regular a venda de revistas pornográficas sem interferir em conversas telefónicas ou na troca de fotografias entre namorados. Mas “no campo digital” não há correlação entre o meio e o tipo de comunicação. Uns emails são privados mas outros vão para várias pessoas ou listas públicas de discussão. Muitos blogs são públicos mas outros são só para convidados ou autores. E há serviços com “opções de privacidade” para que as fotografias de uns só sejam visíveis aos seus cinco mil “amigos”. Não se pode regular “todas as formas de pornografia” neste meio sem atropelar vários direitos fundamentais. Felizmente, essa parte acabou rejeitada. Mas há outros problemas fundamentais nesta proposta.

Um problema é o estereótipo ser apenas um atalho cognitivo para inferir conclusões a partir de pouca informação. Se me dizem que alguém trabalha num infantário suspeito que seja mulher, se dizem que é jogador de basquetebol julgo que será alto e se dizem que é reformado penso que terá mais de 60 anos. São conclusões precipitadas, por vezes erradas mas, por si só, o estereótipo é inofensivo e até potencialmente útil. O que é mau é o preconceito, por ser uma disposição emocional contra alguém assente em estereótipos. Por exemplo, não gostar dos alemães por se julgar que são todos nazis. Mas, mesmo sendo mau, o preconceito é um direito. Podemos discordar da xenofobia, da misoginia e do racismo, e até considerá-los indicadores de mau carácter, mas não se pode proibir ninguém de sentir estas coisas. Só a discriminação, o acto de prejudicar os outros por preconceito, é que se pode regular em alguns casos. Mas tentar eliminar preconceitos ou estereótipos por força da lei é um remédio pior do que a doença.

Outro problema é a subversão do feminismo. O feminismo tem sido um motor importante de progresso a vários níveis. Progresso social e ético, obviamente, mas também progresso económico, científico e tecnológico. Não é por acaso que as sociedades que não aproveitam o potencial de metade da população sejam um atraso de vida mesmo a nadar em petróleo e uma desgraça completa quando nem isso têm. Mas o feminismo tem sido um factor de progresso na medida em que defende que homens e mulheres devem ser igualmente livres, autónomos e responsáveis mesmo que sejam diferentes. Quando o objectivo é a igualdade de género em vez da igualdade de direitos, quando a preocupação é a publicidade «retratar as mulheres como objetos sexuais», quando exigem «tolerância zero na UE relativamente a insultos sexistas ou imagens degradantes de mulheres e raparigas nos meios de comunicação social» e quando querem proibir «todas as formas de pornografia nos meios de comunicação social» estão a atacar o feminismo. Porque em vez da ideia meritória de que as mulheres são tão capazes como os homens de serem autónomas, responsáveis e livres, querem leis especiais para as proteger, retirar-lhes o direito de decidir e até para forçar homens e mulheres a serem mais parecidos só para não ser preciso lidar com as diferenças. Por exemplo, protestam contra «a sexualização das raparigas» pela publicidade às bebidas alcoólicas. Mas nestes anúncios só participam adultos. Ou seja, não se trata da sexualização de raparigas de dez anos mas sim de “raparigas” adultas que já deviam poder decidir por elas se querem aparecer de biquíni num anúncio de cerveja. Não se vê igual preocupação com “rapazes” de vinte anos que apareçam de calções para mostrar os peitorais.

Se um anúncio faz troça de um homem por ser gordo, se um personagem na novela é cómico por ser um homem lingrinhas e medricas ou se o segurança brutamontes é estúpido ninguém se revolta contra os “estereótipos de género”. O pugilismo é muito pior do que a pornografia, não só pelos riscos para a saúde mas também por ser mais degradante andar ao sopapo do que ter relações sexuais, mas é o sexo que querem esconder e só pela forma como, alegadamente, denigre a imagem da mulher. Isto não é apenas o estereótipo de que as mulheres são mais vulneráveis a «mensagens discriminatórias ou indignas». Nem sequer se limita ao preconceito contra quem tem opiniões ou gostos dos quais os autores do relatório não aprovam. Se fosse só isso pouco importava porque qualquer um tem o direito de estereotipar e preconceituar como bem entender. O inadmissível é usar a lei para coagir toda a gente a conformar-se a esses estereótipos e preconceitos. Isso é precisamente o contrário do que o feminismo deveria ser.

Durante quase toda a história da humanidade, e ainda hoje em muitos sítios, foi prática generalizada discriminar e subjugar uns por serem diferentes dos outros. Pelo sexo, pela cor da pele, pelo sítio onde tinham nascido, qualquer diferença servia de desculpa. A tentativa de resolver este problema alegando que somos todos iguais embateu sempre no facto inegável e evidente de que não somos. É óbvio que somos diferentes, não só de aspecto mas também de hábitos, gostos, objectivos e valores. Só se resolveu este problema com a ideia de que não faz mal sermos diferentes porque o que importa é sermos igualmente livres. A função da lei deve ser essa liberdade individual e não a regulação dos valores pelos quais cada um quer exercer a sua.

1- Parlamento Europeu, sobre a eliminação dos estereótipos de género na UE
2- Rick Falkvinge, Next Tuesday, The European Parliament Votes To Ban All Your Porn. Yes, Really. Take Immediate Action. e Porn Ban Update: Europarl Responds By Spamfiltering Constituents, Then Deletes Explanation Of Porn Ban But Keeps Effect e, finalmente, The European Parliament (Mostly) Said No To A Porn Ban.

domingo, março 03, 2013

Treta da semana: arreia-lhe enquanto não cresce.

O João Miguel Tavares defende que «uma palmada no rabo ou uma estalada na mão» são boas medidas para educar as crianças «demasiado novas para compreenderem argumentos racionais». Dar palmadas nos filhos, propõe o João, não é um problema ético porque «não há, de todo, uma igualdade entre pais e filhos [e a] hierarquia pai-filho deve estar bem estabelecida». Por outro lado, defende que a palmada no rabo e a estalada na mão são boas ferramentas educativas porque «ao contrário de tanto discurso cor-de-rosa, educar também é domesticar. Além de inteligência e racionalidade, nós temos um lado animal fortíssimo»(1). Parece-me que aquelas conclusões não se derivam destas premissas.

Se bem que o filho de cinco anos não seja igual ao pai de quarenta, nem a diferença nem a hierarquia, por si, tornam legítima qualquer forma de violência. O problema ético de um homem de quarenta bater a uma criança de quatro não desaparece magicamente só por serem pai e filho. E mesmo que «uma palmada no rabo ou uma estalada na mão» não seja tão mau como um ensaio de pancada, não é algo que aceitemos como legítimo na generalidade dos casos. À parte dos benefícios ou malefícios que a palmada traga à relação entre pais e filhos, o custo ético de bater em crianças não pode ser descartado como se não contasse.

Também não parece que a palmada e a estalada sejam benéficas. Esta passagem do João ilustra um dos problemas: «Pode ser que haja pais fabulosos que consigam, sem recurso à palmada ou ao grito (que eu também pratico muito, às vezes mais do que gostaria), educar exemplarmente os seus filhos.» É preciso ser mesmo muito fabuloso (mítico, até) para nunca perder a paciência com os filhos e nunca lhes dar um berro ou um ralhete mais exaltado. Ter filhos é muitas vezes enervante. Mas se a palmada surge pela falta de paciência, pela mesma pressão que nos faz gritar exaltados, então é desabafo em vez de pedagogia e, como desabafo, uma palmada ou uma estalada na mão não são nada de louvar.

Mesmo que a palmada seja aplicada de forma fria e controlada, a tese do «lado animal fortíssimo» tem dois buracos grandes. O primeiro é que o mais importante que temos de ensinar aos nossos filhos são características humanas complexas e não comportamentos animais simples. A dor ensina comportamentos rudimentares suscitando reacções fortes e imediatas. Basta uma experiência controlada para qualquer bebé aprender a não mexer nos alfinetes e a não pôr as mãos no cacto. Mas a dor não serve para ensinar valores, razões ou comportamentos mais complexos como ter cuidado com as coisas valiosas que se podem partir ou portar-se bem na escola. A resposta à dor é tão forte e imediata que o mais certo é a criança aprender apenas “o pai não pode saber disto”. Para aprender a classificar correctamente o seu comportamento e distinguir entre o que deve fazer e o que não deve fazer é preciso uma pressão mais suave, constante e paciente. O outro buraco na tese da natureza animal é que a violência despoleta sempre reacções de fuga ou agressividade. Se o João treinar um cão à palmada e à estalada só vai conseguir um animal instável e perigoso. Mesmo que um filho pequeno tenha muito de animal, e admito que tenha, é melhor um treino de paciência e repetição do que à palmada.

Finalmente, há o problema do castigo mais severo ser difícil de aplicar com a frequência necessária. O que acontece com a palmada é que a criança acaba por levar uma por cada cinquenta ou cem vezes que ouve “olha que levas”, e normalmente mais em função do estado de espírito do progenitor do que propriamente da gravidade do delito. Um castigo raro e difícil de prever é pouco eficaz.

Cá em casa não somos pais fabulosos. Também gritamos com os miúdos mais vezes do que devíamos. Mas nunca lhes batemos. E se bem que já tenha havido vezes em que me apeteceu dar uma palmada, em retrospectiva vejo claramente que em todas elas não bater foi o mais correcto. Nem consigo imaginar uma situação plausível em que bater fosse a resposta certa. O que fazia, durante aquela fase mais problemática dos 2 e os 6 anos, era pô-los de castigo sentados no chão por uns momentos. Bastava meio minuto para se sentirem castigados e para quebrar o ritmo à asneirada. Além disso, podia aplicar o castigo sempre que fosse preciso. Nalguns dias foram dezenas de vezes. A certeza do castigo, mesmo leve, tornava-o muito mais eficaz do que um castigo severo mas incerto. Faziam asneiras, é claro, mas não as repetiam nem era preciso bater-lhes para pararem. Até com o cão é assim. Se se porta mal não leva palmadas; leva uma rosnadela e fica de castigo na manta na cozinha. E há uma diferença importante entre as crianças e o cão. As crianças aprendem muito mais com o exemplo do que com os castigos.

1- João Miguel Tavares, Faz mal bater às crianças?