domingo, agosto 26, 2012

Treta da semana: ensino profissional.

Há uns tempos criticaram alguns cursos superiores por falta de empregabilidade, sugerindo que o Estado regulasse a educação pelo mercado de trabalho em vez de por valores culturais ou pelos interesses dos alunos. Agora estão a aplicar o mesmo princípio ao ensino secundário. O ministro da educação quer «chegar aos 50 por cento na parte da escolaridade obrigatória [do 10º ao 12º ano] no ensino profissional»(1). Isto é uma asneira.

Primeiro, há o problema prático de implementar esta oferta no ensino público. A formação profissional é muito específica, exigindo muitos cursos diferentes como apoio à infância, apoio à gestão desportiva, animador sociocultural, gestão equina, turismo ambiental e rural, apoio psicossocial, vitrinismo e assim por diante (2). Além disso, as escolas têm de adaptar a oferta à procura na sua região. No entanto, os cursos são de três anos, do 10º ao 12º ano de escolaridade, e precisam de ser preparados com antecedência, o que implica um período mínimo de quatro anos entre a identificação das necessidades e a formação dos primeiros candidatos. É duvidoso que se consiga prever a procura por técnicos de vitrinismo ou de gestão equina com quatro anos de antecedência. Quem cair na larga margem de erro entre a estimativa e a realidade vai acabar com uma formação profissional especializada em algo que ninguém quer.

Há também o problema prático de organizar professores e alunos. Conheço um caso em que, após consulta do comércio local, um agrupamento de escolas reservou algumas turmas para formação de técnicos de vitrinismo. Não havendo docentes com experiência a preparar montras, desenrascaram-se com professores de áreas como educação visual. E acabou por não haver alunos, mas já não se podia alterar o número de turmas depois das inscrições. Esta caldeirada ad hoc de cursos, além de desperdiçar recursos, não garante um ensino de qualidade porque os mais habilitados para ensinar estas coisas são profissionais do sector privado e não os docentes do ensino público.

Deviam ser as associações de empresas a identificar e dar a formação que julgassem valer a pena. O contributo da escola pública seria, no máximo, o de dar aos alunos interessados algum tempo para terem estágios de formação nas empresas. Desta forma, garantia-se que só era dada formação profissional que valesse mesmo a pena (suspeito que muitos destes cursos só lá estão por estar), o sistema podia adaptar-se rapidamente às mudanças no mercado de trabalho e o ensino teria a qualidade que as empresas exigissem.

Pior do que estas questões práticas é o objectivo expresso de que «os jovens escolham as suas carreiras»(1) quando ainda estão na escola. Nem é uma altura boa para isso nem é realista esperar que vão fazer sempre o mesmo durante décadas de actividade profissional. O maior problema da nossa força laboral não está nos jovens acabarem o 12º ano sem experiência em gestão equina ou apoio psicossocial. O pior é o grande número de profissionais com pouca formação académica que passou décadas a fazer sempre o mesmo numa empresa que agora faliu. São excelentes profissionais mas demasiado especializados e sem capacidade para mudar de profissão. Em vez de prevenir esta situação com uma educação mais ampla vão agravar o problema afunilando a formação com o propósito declarado de formar trabalhadores menos adaptáveis. A par disto, cortam também «564 milhões de euros ao eixo da "adaptabilidade e aprendizagem ao longo da vida"».

Com a rapidez com que a tecnologia e o mercado mudam hoje em dia, o mais importante em qualquer profissão é a capacidade de aprender. Para que os profissionais sejam bons a longo prazo é preciso ensinar-lhes a ler, a resolver problemas, a estudar e a escrever. Em suma, a aprender. Desta forma facilmente aprenderão a gerir equídeos ou apoiar o turismo rural, conforme precisem. O contrário, escolher aos 16 anos uma carreira para a vida, é disparate.

Mas o mais importante é que o dever do Estado não é formar profissionais à conveniência das empresas. O dever do Estado é formar pessoas pelo direito que cada pessoa tem a uma educação, que é muito mais do que o mero treino profissional. Cada pessoa tem o direito de votar, de educar os seus filhos, de usufruir da sua herança cultural e de participar na criação artística e científica da sua sociedade. A educação pública deve garantir a formação necessária para exercer estes direitos, o que exige aprender coisas como ciência, filosofia e literatura em vez de aprender a servir cafés ou coser sapatos.

Enquanto a formação académica visa o desenvolvimento da pessoa, o que é um direito e transversal a todos os aspectos da sua vida, a formação profissional foca apenas a relação comercial entre o empregado e o patrão, e os seus benefícios económicos repartem-se por ambos. Por isso, a formação profissional devia ser um complemento à formação académica e nunca uma alternativa. E devia ficar a cargo das empresas porque estas, além de mais habilitadas do que o Estado, também beneficiam directamente de trabalhadores com formação profissional especializada. Ao Estado compete formar cidadãos capazes de exercer os seus direitos e de usufruir da sua cultura independentemente da profissão que escolham. Formar empregados é uma tarefa para as empresas.

1-SIC, Governo quer que 50% do ensino obrigatório seja profissional
2- DRELVT, Min.Edu.,Cursos profissionais de nível secundário (pdf)

sábado, agosto 25, 2012

A prova e os deuses.

Provar hipóteses acerca de deuses é um problema complicado, em grande parte, pela confusão entre vários significados de “prova”. Alguns entendem “prova” como uma dedução formal e, assim, conseguem provar a existência de (pelo menos) um deus. Por exemplo: só Deus pode causar o universo; o universo tem de ter causa; portanto, Deus tem de existir. O problema é que a dedução formal não diz nada acerca das premissas e depende totalmente delas. Por isso, é fácil provar também o contrário partindo de outras premissas. Por exemplo: Deus está fora do universo; o universo é o conjunto de tudo o que existe; portanto, Deus não existe. Se bem que a lógica formal seja útil para avaliar algumas inferências, não chega para fundamentar conclusões. Para isso é também preciso ter atenção ao que se assume à partida.

Outra noção de prova é aquela que conhecemos dos tribunais, de indício forte da verdade de uma afirmação. É neste contexto que surgem as ideias de que não se pode provar a inexistência de algo e de que é quem defende que algo existe que tem o ónus da prova. Isto não é a melhor maneira de ver um problema como o da existência de algum deus porque esta noção de prova é mais adequada ao sistema judicial do que ao diálogo racional ou à análise imparcial de hipóteses. Como é praticamente impossível provar que o acusado não matou ninguém, e sendo o homicídio punido com anos de prisão, é justo que presumi-lo inocente a menos que haja indícios fortes da sua culpa. Mas se estamos apenas a discutir a hipótese de haver zero, um ou mais deuses, não faz sentido ser a “acusação” a arcar com ónus da prova ficando a “defesa” isenta de se justificar. Num diálogo racional cada parte tem o dever de justificar a sua posição, qualquer que esta seja.

Além disso, é falso que não se possa provar a inexistência de algo. A maioria dos leitores provavelmente considerá cientificamente provado que não existem unicórnios, fadas ou klingons. Isto porque a prova científica não é uma dedução com premissas arbitrárias nem um caso de tribunal. A prova científica é a melhor explicação, aquela que resolve o enigma que os dados nos apresentam encaixando no resto do nosso conhecimento e exigindo menos premissas que não tenham confirmação independente. Não pode ser uma mera dedução porque não partimos de axiomas, e a própria interpretação dos dados é questionável. Nem tem o carácter definitivo do trânsito em julgado. É sempre trabalho em curso, sempre potencialmente provisória e sujeita a correcções. E tem de ser sempre avaliada por comparação com as alternativas.

Consideremos, para ilustrar, duas hipóteses acerca da origem do universo. Uma é a de que o universo foi criado por um deus omnipotente, inteligente, que existe fora do espaço e do tempo e que tinha vontade de criar isto tudo. A outra é que o universo surgiu de uma flutuação quântica espontânea, sem causa. Ambas nos dão um relato acerca de como isto tudo surgiu. No entanto, a primeira invoca excepções a tudo o que sabemos. Uma criação milagrosa, um ser omnipotente que existe fora do espaço e do tempo, e assim por diante. Tudo isto são premissas que não podemos confirmar independentemente desta hipótese, e nada disto encaixa no que sabemos acerca da realidade. Em contraste, temos confirmação independente de que a matéria pode surgir espontaneamente, sem causa, e a energia total do universo parece ser nula, exactamente o que teria de ser se, de acordo com o que sabemos, a energia tivesse de se manter conservada. Na verdade, as hipóteses da física para a origem do universo – sem invocar qualquer deus – são muito melhores do que o esboço grosseiro que apresento aqui. Ficam tão além do criacionismo milagreiro que podemos considerar que são uma prova científica sólida de que o universo não foi criado por um deus.

O mesmo se aplica à própria existência de qualquer ser mitológico, de Apollo a Zeus, passando por Jeová, fantasmas ou o Espírito Santo. Os muitos relatos deste tipo de coisa em todas as culturas constituem um enigma que precisa ser esclarecido. Mas a melhor explicação, em todos os casos – e não em todos excepto um, como defendem os crentes de cada religião – é a de que as pessoas inventam estas histórias. Não é preciso nada de sobrenatural para explicar a epopeia de Gilgamesh, o Livro dos Mortos, o Génesis ou o Corão, nem para explicar as crenças que surgiram à volta destes escritos. A explicação natural, pela natureza humana, é muito mais consistente com o que sabemos, parte de premissas que podemos confirmar independentemente e explica todos os dados sem problema. A prova científica da inexistência de deuses é evidente não só na física, na química e na biologia, mas também na história, na literatura e na psicologia. A ciência dá-nos explicações muito melhores para tudo aquilo que as religiões poderiam explicar invocando deuses, e isso é uma prova sólida de que esses deuses não existem.

Já agora, antecipando a objecção de que a fé não quer explicar nada, admito que até possa ser verdade em alguns casos mas é irrelevante. Também a crença no Pai Natal ou os livros do Homem-Aranha não pretendem explicar nada, mas assumir que esses seres não existem continua a dar-nos uma explicação melhor, mais entrosada no que sabemos e com mais fundamento independente, do que a hipótese alternativa. Por isso, queiram explicar ou não, neste momento temos uma prova sólida de que estes seres são fictícios. Não é uma conclusão definitiva nem uma certeza absoluta. Mas é uma certeza forte, considerando o que sabemos. Suficientemente forte para não dar o benefício da dúvida a estas tretas.

quarta-feira, agosto 22, 2012

Os campos.

Uma hipótese plausível da física moderna é que o Universo surgiu espontaneamente por processos quânticos descritos como flutuações nos campos correspondentes às partículas fundamentais. É este o tema central do livro de Lawrence Krauss, A Universe from Nothing. Há umas semanas o Alfredo Dinis transcreveu o que chamou «a devastadora crítica de David Albert a Krauss», na qual Albert afirma que os campos da mecânica quântica são “coisas físicas”, «não menos que girafas ou frigoríficos ou sistemas solares» e que «O verdadeiro equivalente ao nada nos campos da mecânica quântica relativista não é esta ou aquela combinação particular dos campos [mas sim] a simples ausência de campos»(1). Isto não faz sentido, e penso que o Alfredo só considerou esta critica como sendo “devastadora” porque não percebeu bem o que “campo” quer dizer neste contexto.

Matematicamente, um campo é uma função que relaciona pontos e valores. É uma abstracção e não um objecto material. Mesmo quando é aplicado na física, onde os valores são grandezas mensuráveis relevantes como a gravidade ou o electromagnetismo, continua a ser um conceito abstracto e podemos definir os campos que quisermos. Por exemplo, podemos definir o campo do chocolate como sendo a função que faz corresponder a cada ponto a massa do chocolate que estiver a menos de 10cm desse ponto.

É fácil ver que este campo não é uma “coisa física” como «girafas ou frigorificos ou sistemas solares», ao contrário do que Albert defende. O campo descreve, pelo seu valor numérico, algo de físico – a massa de chocolate nessa região do espaço – mas, por si só, é apenas um conceito. Não surge nada de novo no universo só por definirmos este campo*. Também é fácil perceber a confusão de perguntar se este campo existe, ou se existe na Terra ou em Marte. Este campo apenas “existe” como conceito mas, como podemos fazer corresponder qualquer ponto a um valor de massa de chocolate, “existe” tanto em Marte como na Terra. O que acontece é que, tanto quanto sei, em Marte todos os valores deste campo serão zero. Mas o campo “existe” em Marte da mesma forma meramente conceptual como “existe” na tablete de chocolate que tenho na cozinha. E como “existia” antes do universo existir.

Este é o primeiro ponto importante que queria que o Alfredo percebesse. Quando nós modelamos o universo, conceptualmente, como coisas a causar outras coisas, é inevitável perguntar “o que causou a primeira coisa?” porque qualquer ideia que formulemos nos compromete à existência dessas coisas pelas quais descrevemos o universo. Sejam deuses ou electrões. É assim que Albert está a pensar, e é assim que os teólogos, filósofos e cientistas pensaram neste problema durante muito tempo. Mas esta noção de campo dá-nos um ponto de partida diferente porque não presume nada acerca da existência de coisas. Pensar nos valores do campo do chocolate em Marte não presume haver chocolate em Marte, ou em lado algum. Nem faz sentido exigir “a ausência de campos”. No vazio do nada o campo do chocolate será nulo, mas “existe” lá da mesma forma como “existe” aqui e em Marte. Conceptualmente, mais nada.

Esta mudança de paradigma revela outro ponto importante. Quando pensamos em coisas (forças, ondas, matéria, etc) o estado mais elementar, a partir do qual teremos de explicar outros, será aquele em que nenhuma coisa existe. Daí a pergunta “porque existe algo em vez de nada?” Mas se pensarmos em campos em vez de em coisas, além de não se pôr a questão dos campos existirem ou deixarem de existir, também não é evidente que o valor que exige menos explicação seja sempre o valor nulo. Para o campo de chocolate é, porque qualquer valor não nulo implica uma mistura complexa de moléculas orgânicas muito específicas. Mas do campo electromagnético, por exemplo, o que sabemos é que não se pode manter exactamente nulo porque está sempre sujeito a uma indeterminação significativa e oscila espontaneamente. Neste caso, se definirmos um “nada” onde este campo é exactamente nulo já não estamos a definir um estado fundamental de onde explicamos o resto mas sim um estado que não se consegue explicar e que, tanto quanto sabemos, é impossível de atingir.

A crítica de que no nada não podiam existiam campos é tão disparatada como exigir que alguém inventasse o número um antes de poder aparecer a primeira coisa. O campo do chocolate sempre “existiu” porque é apenas um conceito, tal como o número um. E se queremos explicar a origem deste universo temos de o fazer a partir de um estado, mesmo que hipotético, que exija menos explicação. Isto força-nos também a rejeitar a ideia de que todos os campos seriam nulos porque, em geral, isso é impossível de justificar. Para perceber a resposta da física moderna à pergunta “porque há algo em vez de nada?” é preciso perceber estes dois aspectos. Primeiro, que os elementos fundamentais da descrição moderna da realidade não são as coisas em si mas sim conceitos matemáticos nos quais a existência ou inexistência de cada coisa é representada por combinações de valores. E, em segundo lugar, que o estado mais fundamental, menos carente de justificação, a partir do qual explicamos o resto não corresponde a ter exactamente, e permanentemente, zero em todos esses valores.

*Infelizmente. Mais chocolate é sempre bom.

1- Comentário em A fé, adenda.

domingo, agosto 19, 2012

Treta da semana: A nossa TDT.

A Televisão Digital Terrestre traz vantagens sobre a transmissão analógica de sinais de TV. A transmissão digital é mais robusta, os algoritmos de compressão reduzem a largura de banda necessária para transmitir vídeo com a mesma qualidade e é mais fácil transmitir em vários formatos. Mais importante, para os espectadores, pode-se facilmente ter dezenas de canais de TV gratuitamente, sem satélites nem subscrições de serviços por cabo.

Foi o que aconteceu aqui, ao pé de Valença. Tínhamos quatro canais e agora temos uns cinquenta. Graças à TDT. À TDT espanhola, claro. Porque portugueses continua a haver apenas quatro. O que é uma aldrabice.

A ANACOM concedeu a exploração de um quinto da banda disponível à Portugal Telecom (PT). Apesar de haver outras empresas interessadas na TDT, a ANACOM decidiu que o resto era para guardar, não se fosse estragar. Excepto a parte que vendeu para serviços de rede móvel 4G. Também à PT. Entretanto, ficamos apenas os quatro canais que já tínhamos mais, eventualmente, o do Parlamento. A PT tinha ficado também com uma concessão para canais de TDT pagos mas, em 2010, pediu para revogar o contracto, alegando que o negócio já não era viável, e que lhe dessem o dinheiro de volta. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social disse que isso era uma desculpa da treta e que não mereciam reembolso nenhum, mas a ANACOM teve pena e devolveu o dinheiro. Entretanto não houve mais concursos para essas frequências (1).

A gama de frequências é de todos, mas tem de ser gerida senão ninguém se entende. A justificação para concessionar a agentes privados um bem que é público é que, supostamente, uma empresa privada pode usar esse recurso para gerar algo cujo valor compense estar a cobrar-nos dinheiro para usufruirmos do que é nosso. Mas estas parcerias público-privadas só funcionam se não for a parte privada a decidir tudo e se o regulador regular como deve ser. Neste caso, estamos mal. A ANACOM tem favorecido a PT (2) e a PT apenas quer ficar com estes canais para vender os seus serviços de rede móvel e evitar que haja concorrência aos seus serviços de TV por cabo, que têm ganho muitos subscritores com a perda do sinal analógico (3). Entretanto, até a televisão pública, que já pagamos através da taxa audiovisual e dos impostos, tem canais transmitidos por cabo apenas a quem pagar novamente para os ver (4).

Penso que a única coisa boa na TDT em Portugal é haver tanto Portugal mesmo ao pé de Espanha. De resto, é mais um exemplo de como este país funciona.

1- Sérgio Denicoli, Os paradoxos da TDT portuguesa. Leiam também o blog do Sérgio: TV Digital
2- O que não é de admirar, com coisas como esta: Novo vogal da Anacom era membro do Conselho Consultivo da PT
3- MEO foi o grande beneficiado após a chegada da TDT e ampliou em 185,7% o total de clientes e Telecom: PT com 1,111 milhões clientes Meo no 1.º trimestre, aumento de 27%
4- Deputada utiliza argumento equivocado ao justificar ser contra à inclusão dos canais da RTP na TDT e Resposta da deputada Francisca Almeida, do PSD, a respeito do pedido para que os canais da RTP sejam disponibilizados na TDT

sábado, agosto 18, 2012

A “evidência científica”.

Hoje é difícil às tretas admitirem ser contra a ciência. Não seria bom para o sucesso comercial de um astrólogo admitir que aquilo que defende contradiz a astronomia, ou um reflexólogo reconhecer que as suas premissas são contrárias ao conhecimento médico, ou um teólogo confessar que chega às suas conclusões por inferências que a ciência rejeita como inválidas. Por isso a moda é alegarem que não fazem parte da ciência mas que também não estão contra, complementando-a no estudo de outras dimensões da realidade ou coisa assim. Enfim, desculpas para fingirem ter a mesma legitimidade da ciência sem se sujeitarem àquele grau de exigência que os impediria de chegar às conclusões que escolheram à partida.

Uma peça importante neste truque é a falsa distinção entre “evidências científicas” e “evidências não científicas”, como se o carácter de ser científico estivesse nas evidências em vez de estar nos processos de inferência. Para isso invocam as tais coisas do Céu e da Terra das quais a filosofia do Horácio nem sonha. Que, com o passar do tempo e o progresso científico, vão mudando e sendo cada vez menos. Antigamente era quase tudo, das doenças às reacções químicas ou o magnetismo. Depois foi a electricidade do Dr. Frankenstein, mais tarde a radioactividade do Dr. Banner. Agora que a ciência se intrometeu nisso tudo e que a filosofia do Horácio está bem maior e mais sonhadora, estão reduzidos a apelar vagamente a aspectos subjectivos da nossa vida, como o amor ou a intuição. O Alfredo Dinis até afirmou que «a nossa vida diária [...] está cheia de evidências não científicas»(1), mas sempre com o cuidado de não dizer em rigor quais são nem porque não hão de ser científicas.

Isto é um erro. Consideremos, por exemplo, o comportamento dos pais ou cônjuges. O comportamento em si é um dado perfeitamente científico e faz parte da análise de factores de risco na violência familiar ou no abuso de crianças, por exemplo. O que não é científico é alguém levar pancada do cônjuge mas ainda achar que o cônjuge lhe tem amor. Isso não é científico, mas o problema está na inferência e não na evidência.

É o que se passa com as evidências invocadas para justificar os dogmas religiosos. Que muitos milhões de católicos acreditam que Maria ascendeu corporalmente ao Céu é um dado tão científico como qualquer outro. Pode ser útil para uma caracterização antropológica, sociológica, histórica ou psicológica destas pessoas. O que não é científico é inferir daí que é mesmo verdade que Maria ascendeu ao Céu de alma, corpo e eventualmente roupa vestida. O facto de pessoas acreditarem em algo – mesmo que sejam muitas pessoas e com uma crença sentida – não justifica concluir que é verdade sem mais nada que o justifique. Esta inferência não é científica porque é um disparate.

Este é outro aspecto importante que muitos tentam baralhar. A distinção entre científico e não científico não é meramente arbitrária. Não são jogos nem alternativas igualmente legítimas para conhecer a realidade. Quando formamos opiniões acerca dos factos há muitos factores que nos podem induzir em erro. Conclusões precipitadas, enviesamentos, pressões psicológicas e sociais e assim por diante. A ciência é todo o conjunto de técnicas que fomos desenvolvendo para combater estes erros. Se ajuda a reduzir a probabilidade de erro, é científico. Se não ajuda, não é. Todas as alternativas – seja fé, tradição, intuição, autoridade, revelação divina, opinião popular ou o que for – são mais susceptíveis de nos levar a errar.

Não há evidências científicas e não científicas. Há formas diferentes de procurar descrições correctas da realidade. Aquelas que contribuem para minimizar a taxa de erros chamam-se ciência. O resto é treta.

1- Comentário em A fé, adenda.

domingo, agosto 12, 2012

Treta da semana: especial silly season.

As seitas mais ortodoxas do judaísmo consideram pecado qualquer contacto entre homens e mulheres fora do casamento. Por isso, em Israel, exercem muita pressão para segregar homens e mulheres nas filas das lojas, nos transportes públicos e assim por diante. Como disparate não paga imposto, por “contacto” entendem também olhar para as mulheres. Mas aqui, finalmente, tomaram uma opção mais justa. Agora os homens judeus ortodoxos podem comprar óculos especiais que obscurecem a visão (1), evitando assim o perigo de ver alguma mulher. Correm mais perigo de serem atropelados, é verdade, mas, no cômputo geral, não é uma grande desvantagem.

Além de ser uma bonita metáfora para a forma como as religiões lidam com a realidade, estes óculos são também um bom exemplo para todos os religiosos. Em vez de chatearem os outros com as suas crenças religiosas resolvem o problema na origem: se não querem ver mulheres, tapam os olhos e não as mulheres. Simples, eficaz e, dentro da insanidade que as religiões invariavelmente são, é certamente o mal menor.

Infelizmente, suspeito que, se fosse por eles, em vez de serem os homens a usar os óculos de ver pior, punham era as mulheres em sacos de lona ou coisa assim. É a solução consensual noutros lados em que conseguem fazê-lo. Suspeito que é apenas a crescente tendência dos seus conterrâneos para troçar destes disparates religiosos, e para opor os abusos da fé, que tem obrigado esta mudança de atitude (2). Mas, por sua vez, este pequeno passo, mesmo contra vontade, poderá contribuir para reduzir o fervor religioso. É que, se a religião deixa de servir para mandar nos outros, perde logo quase todo o interesse. Se é assim mais vale ficar só pela fé, e mesmo isso só quem quiser.

1- Daily Mail, Orthodox Jewish men given a new weapon in the war against sexual temptation… blurred glasses so they can’t see women
2- Frum Satire, Charedi technology to fight the war on pritzus

sexta-feira, agosto 10, 2012

Disto e daquilo, 2.

Notícias
A propósito das cheias na Indonésia nas Filipinas, ouvi ontem no noticiário da TVI que se prevê uma precipitação de 40cm por metro quadrado. É como o limite legal da velocidade ser 120Km/h por automóvel ou alguém ter a idade de 18 anos por pessoa. Também estavam a evacuar as pessoas. A menos que estejam com problemas graves de prisão de ventre, parece-me preferível evacuar as zonas afectadas pelas cheias. Outra calinada irritante, e permanente durante a época de incêndios, é a treta dos cinco meios aéreos, dois meios aéreos ou, quem sabe, um meio aéreo. Caros jornalistas, os meios são os recursos em geral. Não é um meio por cada avião ou helicóptero. Já agora, deixo também um pedido aos agentes da autoridade para que, quando usarem um cão para farejar drogas, digam que usaram um cão. Não chamem “binómio” ao bicho só porque vem com um guarda a segurar a trela. Se tiverem vários cães vai ser o quê? Um polinómio?

Multa
O grupo Jerónimo Martins foi condenado a pagar a multa máxima pela venda de quinze produtos abaixo do seu custo na promoção de dia 1 de Maio. Terão de pagar trinta mil euros. No entanto, é provável que contestem a decisão em tribunal, assim que conseguirem parar de rir.

Código
A Maria Madalena Teodósio tem tentado explicar algumas coisas de evolução ao Jónatas Machado, entre as quais que o código genético é uma invenção nossa e não uma prova de que o ADN foi criado pelo menino Jesus (1). Desejo-lhe boa sorte na ingrata tarefa e aproveito para apontar que o código que usamos para designar o ADN não são as quatro letras – A, C, G, e T – correspondentes às quatro bases dos nucleótidos. Temos também o Y para qualquer uma das pirimidinas (C ou T), o R para as purinas (A ou G), W, S, K, M, e assim por diante. E como N designa qualquer nucleótido, todos os genes podem ser escritos como NNNNN...(2) É realmente um código inteligente, mas um código que serve para trocarmos, entre nós, informação acerca dessas moléculas. À citosina tanto faz se lhe chamamos C, M, S ou X.

Ordenados
Um dado que, aparentemente, surpreendeu alguns jornalistas, foi o de que «Serralheiros, canalizadores e torneiros mecânicos podem conseguir ordenados mais altos do que arquitetos ou advogados» (3). Além do problema metodológico de considerarem os valores extremos de três mil ofertas de trabalho como representativos seja do que for, não acho estranho que um canalizador ganhe mais do que um recém-licenciado em direito. Ser canalizador não é trivial e só é canalizador quem tiver experiência profissional, tendo demonstra não só que sabe mas que sabe fazer. Um recém licenciado teve apenas a experiência de trabalhar para si. Falta-lhe ainda mostrar que se safa quando aquilo que faz tem consequências para os outros.

Pirataria interplanetária
Pouco depois da NASA pôr no YouTube um vídeo da aterragem* do Curiosity, o vídeo foi retirado por violação de copyright. A queixa veio de uma empresa privada de notícias que tinha usado o vídeo da NASA, gratuitamente, e tinha-o registado como seu no sistema de gestão de conteúdos do YouTube (4). Isto mostra três coisas. Primeiro, a deturpação de valores acerca da distribuição. As alegações de direitos exclusivos, mesmo sem fundamento, têm toda a prioridade enquanto que o direito de expressão e de acesso à informação são tão irrelevantes que até automatizam o bloqueio e quem for injustamente penalizado que se amanhe. Enquanto quem faz estas alegações falsas não sofre consequências, um cidadão britânico vai ser vai ser extraditado para os EUA por ter um site com ligações a ficheiros sob copyright alojados noutros sítios, algo que nem é claro que seja crime no seu país mas que lhe pode dar cinco anos de cadeia nos EUA(5). Em segundo lugar, este episódio mostra como os monopólios sobre a distribuição afectam mesmo os produtores que não os querem. A NASA tem peso para resolver estas coisas rapidamente, mas muitos não têm essa facilidade (6). E, em terceiro lugar, mostra que se pode produzir obras caras sem precisar de monopólios sobre a distribuição. Pôr o Curiosity em Marte custou 2500 milhões de dólares. Se até ciência a este nível se pode fazer sem direitos exclusivos não vejo desculpa para filmes e canções terem esses privilégios legais.

* Vem de terra, e não de Terra, por isso é que é amaragem quando cai no mar na Terra e aterragem quando cai na terra em Marte.

1- Neste post, com os resultados esperados. Talvez melhor seja dar uma olhada no blog da Maria Madalena Teodósio.
2- IUPAC ambiguity codes.
3- Ofertas de emprego para soldadores e mecânicos com salários mais altos que doutores e engenheiros
4- Motherboard, NASA's Mars Rover Crashed Into a DMCA Takedown
5- Huffington Post, Richard O'Dwyer Memo Leaked To TorrentFreak Reveals MPAA's Insecurity In Piracy Fight
6- Lon Seidman, via BoingBoing.

segunda-feira, agosto 06, 2012

Treta da semana (passada): a posição oficial.

Há duas semanas mencionei o caso de Sanal Edamaruku, escrevendo apenas que «mostrou que a água milagrosa que brotava de uma estátua de Jesus não vinha de Deus mas sim de um cano entupido. Como a lei de lá pune quem “magoa sentimentos religiosos”, os bispos católicos querem mandá-lo já para a prisão enquanto aguarda julgamento»(1). Sem dar exemplos concretos, o Alfredo Dinis acusou «Os ateus de língua portuguesa» de relatar este episódio «pelo processo de copy-paste, sem [...] confirmar a verdade do que copiam.»(2) Segundo o Alfredo, o exemplo de «incorrecções e inverdades que [os ateus] apresentam acriticamente como verdades» é, desta vez, dizermos que «De uma imagem de Cristo Crucificado saiam gotas de água, o que logo foi considerado como milagre pela Igreja Católica. Demonstrado porém por Sanal que se tratava de um fenómeno natural de infiltração de águas na estátua, logo a Igreja Católica o levou a tribunal.» O Alfredo dedica-se então a demonstrar que a Igreja Católica não tinha proclamado oficialmente o milagre. Para nada, porque nem vi alegarem que a Igreja Católica tinha oficializado o milagre nem é isso que importa.

Várias associações católicas acusam Sanal de «ferir deliberadamente sentimentos religiosos e tentar actos maliciosos visando ultrajar os sentimentos religiosos de uma classe ou comunidade», o que é crime na Índia(3). A posição oficial da Igreja Católica acerca do milagre é irrelevante. O que importa é quererem meter o homem na prisão por isto. Mas isso não vem nem no post do Alfredo nem na declaração do Bispo de Bombaim acerca do sucedido.

O Alfredo transcreve essa declaração do Bispo Agnelo Gracias. Explica que a Igreja não se pronunciou acerca do milagre, por isso é possível que a água gotejante tenha explicação natural, mas o Sanal fez três alegações que o Bispo considera falsas e pretende corrigir assim: primeiro, a Igreja não defende a veneração de imagens porque, segundo o Bispo, há uma grande diferença entre honrar e venerar; segundo, a Igreja não fez aquela estátua para ganhar dinheiro; finalmente, nem a Igreja nem o Papa são contra a ciência. Como o Sanal afirmou o contrário, escreve o Bispo, então tem de pedir desculpa.

Antes de abordar as alegações do Bispo, queria reiterar que o problema não é quererem que ele peça desculpa. Se este fosse apenas mais um caso de crentes a queixarem-se de ofendidos não teria a gravidade que tem. O problema, que gostava que o Alfredo abordasse, é quererem mandar o Sanal para a prisão por causa disto. É um problema que me toca pessoalmente.

Tal como o Sanal, eu também defendo que a religião é incompatível com a ciência. A fé, os argumentos de autoridade, as alegadas revelações por processos misteriosos e irreprodutíveis e a mitologia sobrenatural são tudo coisas que a ciência rejeita com boas razões. A distinção entre “honrar” e “venerar”, no contexto de ir uma carrada de gente em procissão atrás da estátua de Maria, fazer fila para beijar o Jesus na cruz ou rezar à figura do santinho, não passa de demagogia. Certamente que os doutos teólogos terão muito a apontar sobre a etimologia destas palavras e as várias interpretações filosóficas dos termos mas, para a massa associativa que suporta a religião, esta é uma distinção sem diferença. E eu também critico a atitude da Igreja Católica, e todo o complexo politico-económico da superstição, por se aproveitarem da credulidade de milhões acerca de milagres, aparições, santos e afins.

Por isso preocupa-me esta atitude do Alfredo. Eu defendo o direito do Alfredo dizer mal dos ateus sempre que quiser, mesmo achando que ele não tem razão. E se algum ateu se ofender será a infantilidade do ateu que criticarei. Mas, apesar do Alfredo me parecer uma pessoa decente, se a lei aqui me prendesse por dizer o mesmo que o Sanal disse, suspeito que o Alfredo não se iria preocupar com os meus direitos. Temo que a sua indignação se reduzisse a apontar alguma confusão acerca de uma “posição oficial”, mesmo que a alegada confusão fosse inventada na altura. Esta é uma grande diferença entre a crença pessoal e a religião.

As crenças pessoais são um direito e, normalmente, são inofensivas. Seja no Jesus, no Joseph Smith, no SLB ou no pastel de Belém, uma pessoa boa e decente, deixada à vontade com as suas crenças, naturalmente as adapta aos seus valores e continua boa e decente. Mas o empacotamento de crenças em religiões, regulamentadas por autoridade e burocracia, tem este efeito perverso que o Alfredo, inadvertidamente, ilustra. A indignação que uma pessoa decente como o Alfredo devia sentir perante esta injustiça que é condenar o Sanal à prisão morre soterrada em dogmas, autoridade e “posição oficial”.

As atrocidades da Igreja Católica estão no passado. Hoje é mais o Islão que maltrata, tortura e mata quem discordar. Mas todas as religiões tentam recuperar a velha glória porque, ao contrário do que alguns julgam, o problema não é haver gente pérfida a deturpar a religião. A maior parte das pessoas é decente, se as deixarem com a sua consciência. É a institucionalização das crenças em “posições oficiais” que leva milhões de pessoas, de outra forma decentes, a cometer ou permitir tanta barbaridade.

«Religion is an insult to human dignity. With or without it you would have good people doing good things and evil people doing evil things. But for good people to do evil things, that takes religion.» (Steven Weinberg)

1- Treta da semana: o que eles querem sei eu.
2- Alfredo Dinis, Ateísmo (em) português (2)
3- Change.org, We call on the Catholic Archdiocese of Bombay to encourage the withdrawal of complaints against Indian Rationalist Sanal Edamaruku

sexta-feira, agosto 03, 2012

A fé, adenda.

A propósito do post anterior, o leitor rage comentou que «o apego às [...] crenças, a convicção do seu valor, mesmo quando injustificado» é comum em todos os humanos, não apenas nos fiéis de alguma religião, mencionando também a « necessidade em ciência de realizar testes com grupos de controlo para estabelecimento de baselines, e/ou com ocultação, para prevenir interpretações oblíquas dos resultados» (1). Tem razão, e é um ponto importante, mas a minha intenção não era alegar que só quem tem fé é que está sujeito a este erro.

Alguma subjectividade é inevitável quando formamos uma crença, mesmo acerca de factos, porque temos de escolher onde pomos a fasquia do nosso cepticismo. Se é a uma confiança de 95%, como em muitos ensaios clínicos preliminares, ou a cinco sigma como na física de partículas, é uma decisão maioritariamente subjectiva. Mas há sempre um ponto a partir do qual o peso das evidências é suficientemente forte para reconhecemos que é erro defender uma opinião contrária. É um erro que todos podemos cometer; mesmo perante evidências fortes podemos ser pressionados por factores epistemicamente irrelevantes mas emocionalmente persuasivos. No entanto, é algo que reconhecemos como um erro e, por isso, em ciência temos a preocupação de o combater. Não só com que o rage mencionou, mas também formulando várias hipóteses em vez de considerar uma isolada, com a revisão pelos pares e a descrição cuidadosa dos métodos para confirmação independente, a crítica aberta e pública e assim por diante.

O que sobressai na fé religiosa é considerar que, para certas hipóteses acerca de um deus ou de escrituras sagradas, esse enviesamento que em tudo o resto se reconhece ser erro afinal é virtude. Quem não for criacionista percebe que acreditar numa criação em seis dias há poucos milhares de anos é teimosia fanática. Quem não for católico vê que é absurdo julgar o Papa infalível, seja no que for. Quem não for hindu ou budista reconhece que a crença na reencarnação não tem fundamento. Mas para o seguidor de uma religião manter as respectivas crenças é mais importante do que corrigir esse erro que é óbvio para os outros, e que até é óbvio para o próprio quando contempla as crenças dos outros.

1- A fé.

quinta-feira, agosto 02, 2012

A fé.

O Nuno Gaspar perguntou-me, com o seu jeito cristão gentil e educado, o que eu queria dizer quando afirmei que a fé «É uma meta-convicção, uma convicção no dever de estar convicto de algo» (1). Ora aqui vai.

O termo “fé” inclui várias coisas como crença, confiança, fidelidade, esperança e perseverança, que não são exclusivas daquilo que as religiões chamam fé. Não é preciso ter fé, nesse sentido religioso, para acreditar que o Sol é uma estrela, para confiar num amigo ou lhe ser fiel, para ter esperança que o PSD saia do governo ou para perseverar naquilo que se considera importante. O que caracteriza a fé, como os religiosos a entendem, é a crença de que certas crenças acerca dos factos têm valor por si. É uma meta-crença peculiar.

Não é peculiar só por ser meta-crença. No que toca aos valores, a crença no valor da crença é comum, e até esperada. Por exemplo, se eu acredito que ajudar os outros é uma virtude, é de esperar que também acredite que essa crença é uma virtude. Julgarei ter um defeito de personalidade alguém que acreditar que nunca se deve ajudar os outros, independentemente de os ajudar ou não. Em matéria de valores, as próprias crenças têm valor, bem como as crenças no valor das crenças e assim por diante.

No entanto, apesar de isto fazer sentido com valores é absurdo com os factos. Acreditar que o Sol é uma estrela não é uma virtude, só por si. É uma boa crença, assumindo que é verdade, mas se fosse falsa seria de rejeitar. A diferença é evidente quando consideramos uma situação que ponha em causa uma crença. Em questões de valor podemos ter um dilema constrangedor. Por exemplo, se só com uma tortura terrível é que podemos obrigar o terrorista a dizer onde escondeu a bomba antes que expluda, temos de escolher entre a crença de que é sempre mau torturar e a crença de que é sempre bom salvar vidas. Mas isto é constrangedor precisamente porque é uma escolha. Em matérias de facto as coisas são como são, e resta-nos apenas ajustar as nossas crenças ao que as evidências indicam. Descobrirmos que o Sol, afinal, não é uma estrela, seria surpreendente, seria uma revolução na ciência, mas não haveria razão para dilemas ou constrangimentos. Se as evidências mostrassem claramente que o Sol não era uma estrela o sensato seria mudar de crença e pronto.

O aspecto mais característico da fé é o valor que dá a certas crenças acerca de factos, como se fossem acerca de valores. Para a maioria das pessoas, encontrar evidências de que a Terra é mais antiga do que julgavam leva simplesmente a mudarem de crença. Para um fundamentalista evangélico não é assim, e evidências de que a Terra surgiu há muitos milhões de anos em vez de poucos milhares é fonte de um grande constrangimento porque a sua fé religiosa inclui a convicção de que deve acreditar numa Terra recente. Se acreditar que a Terra tem milhares de milhões de anos de idade está a ser infiel à sua religião.

É por isto que a fé é intrinsecamente contrária à razão e à ciência. Racionalmente, uma crença acerca da realidade só tem valor na medida em que corresponder aos aspectos da realidade que refere. E, epistemicamente, o valor de uma crença depende também da justificação objectiva para concluir que há tal correspondência. Por isso, a atitude correcta é estar disposto a mudar de crenças acerca dos factos sempre que as evidências o justificarem, sem problemas de consciência ou dilemas morais. A fé rejeita essa atitude de imparcialidade atribuindo a certas crenças acerca de factos um valor – até mesmo um dever moral – maior ainda do que o valor dado às evidências. Quem acredita por fé não precisa de evidências que suportem a sua crença nem liga a evidências que a refutem. Porque está convicto do dever de acreditar assim.

«Ora a fé é garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem.» Carta aos Hebreus, 11-1.

1- Comentários em Treta da semana: o que eles querem sei eu.