Treta da semana: ensino profissional.
Há uns tempos criticaram alguns cursos superiores por falta de empregabilidade, sugerindo que o Estado regulasse a educação pelo mercado de trabalho em vez de por valores culturais ou pelos interesses dos alunos. Agora estão a aplicar o mesmo princípio ao ensino secundário. O ministro da educação quer «chegar aos 50 por cento na parte da escolaridade obrigatória [do 10º ao 12º ano] no ensino profissional»(1). Isto é uma asneira.
Primeiro, há o problema prático de implementar esta oferta no ensino público. A formação profissional é muito específica, exigindo muitos cursos diferentes como apoio à infância, apoio à gestão desportiva, animador sociocultural, gestão equina, turismo ambiental e rural, apoio psicossocial, vitrinismo e assim por diante (2). Além disso, as escolas têm de adaptar a oferta à procura na sua região. No entanto, os cursos são de três anos, do 10º ao 12º ano de escolaridade, e precisam de ser preparados com antecedência, o que implica um período mínimo de quatro anos entre a identificação das necessidades e a formação dos primeiros candidatos. É duvidoso que se consiga prever a procura por técnicos de vitrinismo ou de gestão equina com quatro anos de antecedência. Quem cair na larga margem de erro entre a estimativa e a realidade vai acabar com uma formação profissional especializada em algo que ninguém quer.
Há também o problema prático de organizar professores e alunos. Conheço um caso em que, após consulta do comércio local, um agrupamento de escolas reservou algumas turmas para formação de técnicos de vitrinismo. Não havendo docentes com experiência a preparar montras, desenrascaram-se com professores de áreas como educação visual. E acabou por não haver alunos, mas já não se podia alterar o número de turmas depois das inscrições. Esta caldeirada ad hoc de cursos, além de desperdiçar recursos, não garante um ensino de qualidade porque os mais habilitados para ensinar estas coisas são profissionais do sector privado e não os docentes do ensino público.
Deviam ser as associações de empresas a identificar e dar a formação que julgassem valer a pena. O contributo da escola pública seria, no máximo, o de dar aos alunos interessados algum tempo para terem estágios de formação nas empresas. Desta forma, garantia-se que só era dada formação profissional que valesse mesmo a pena (suspeito que muitos destes cursos só lá estão por estar), o sistema podia adaptar-se rapidamente às mudanças no mercado de trabalho e o ensino teria a qualidade que as empresas exigissem.
Pior do que estas questões práticas é o objectivo expresso de que «os jovens escolham as suas carreiras»(1) quando ainda estão na escola. Nem é uma altura boa para isso nem é realista esperar que vão fazer sempre o mesmo durante décadas de actividade profissional. O maior problema da nossa força laboral não está nos jovens acabarem o 12º ano sem experiência em gestão equina ou apoio psicossocial. O pior é o grande número de profissionais com pouca formação académica que passou décadas a fazer sempre o mesmo numa empresa que agora faliu. São excelentes profissionais mas demasiado especializados e sem capacidade para mudar de profissão. Em vez de prevenir esta situação com uma educação mais ampla vão agravar o problema afunilando a formação com o propósito declarado de formar trabalhadores menos adaptáveis. A par disto, cortam também «564 milhões de euros ao eixo da "adaptabilidade e aprendizagem ao longo da vida"».
Com a rapidez com que a tecnologia e o mercado mudam hoje em dia, o mais importante em qualquer profissão é a capacidade de aprender. Para que os profissionais sejam bons a longo prazo é preciso ensinar-lhes a ler, a resolver problemas, a estudar e a escrever. Em suma, a aprender. Desta forma facilmente aprenderão a gerir equídeos ou apoiar o turismo rural, conforme precisem. O contrário, escolher aos 16 anos uma carreira para a vida, é disparate.
Mas o mais importante é que o dever do Estado não é formar profissionais à conveniência das empresas. O dever do Estado é formar pessoas pelo direito que cada pessoa tem a uma educação, que é muito mais do que o mero treino profissional. Cada pessoa tem o direito de votar, de educar os seus filhos, de usufruir da sua herança cultural e de participar na criação artística e científica da sua sociedade. A educação pública deve garantir a formação necessária para exercer estes direitos, o que exige aprender coisas como ciência, filosofia e literatura em vez de aprender a servir cafés ou coser sapatos.
Enquanto a formação académica visa o desenvolvimento da pessoa, o que é um direito e transversal a todos os aspectos da sua vida, a formação profissional foca apenas a relação comercial entre o empregado e o patrão, e os seus benefícios económicos repartem-se por ambos. Por isso, a formação profissional devia ser um complemento à formação académica e nunca uma alternativa. E devia ficar a cargo das empresas porque estas, além de mais habilitadas do que o Estado, também beneficiam directamente de trabalhadores com formação profissional especializada. Ao Estado compete formar cidadãos capazes de exercer os seus direitos e de usufruir da sua cultura independentemente da profissão que escolham. Formar empregados é uma tarefa para as empresas.
1-SIC, Governo quer que 50% do ensino obrigatório seja profissional
2- DRELVT, Min.Edu.,Cursos profissionais de nível secundário (pdf)