...e o autor de direito.
Na propaganda que se faz hoje em dia aos direitos de autor, o autor é apresentado como o único responsável e “dono” da sua criação. Mas será que a criação artística é algo tão individual como querem que acreditemos?
Eu sou o autor deste texto, mas não inventei as palavras, nem a gramática, nem as expressões idiomáticas. Vendo bem, quase tudo neste texto é algo que me foi dado pela comunidade em que vivo. A lei consagra-me exclusividade de direitos sobre esta forma particular de exprimir estas ideias, mas parece-me que muito pouco disto é exclusivamente meu.
Imaginem que faço uma escultura na areia numa praia pública, com areia que é de todos, e que ponho uma vedação à volta para que quem quiser ver a escultura tenha que me pagar. É certo que na escultura está algo de exclusivamente meu, da minha criatividade, mas a areia e a praia são de todos. Não é justo eu apropriar-me do que é de todos apenas porque acrescentei um pouco de algo só meu. O mesmo se passa com toda a arte. Há um grande conjunto de obras que é de todos, e nos quais os artistas se baseiam fortemente para criar as suas obras. Daquela praia enorme onde estão todos os textos possíveis, eu apropriei-me duma zona, a que inclui este texto e todas as variantes (e traduções) suficientemente similares para a lei considerar como violações do meu direito de autor. Antes de escrever isto esse espaço era de todos, mas como acrescentei uma pitada da minha criatividade a uma enorme dose do trabalho dos outros, a lei dá-me um bocado da praia só para mim.
Justo? Treta.
Mas talvez necessário. Antes que me acusem de ser comunista, devo esclarecer que isto pode mesmo assim ser boa ideia. Se fosse do interesse de todos incentivar as esculturas na areia, podia ser vantajoso dar aos escultores vantagens legais. Por exemplo, dar-lhes temporariamente o direito exclusivo à exploração comercial da zona da praia onde fizeram a escultura. É isto que fazemos com músicas e textos, mas não com receitas e equações matemáticas, e não digo que seja sempre má ideia.
Mas esta imagem que nos querem impingir, do autor como criador ex nihilo, é treta. A matéria prima da criatividade é a cultura, um bem de todos, e a criação artística é um processo muito mais colectivo que individual (quantos compositores nunca ouviram música?). O que deveria ditar a lei dos direitos de autor é a relação entre os custos e os benefícios para a comunidade e a criatividade artística em geral, e não os benefícios económicos dos detentores de direitos (que normalmente nem são os autores).
O que se passa hoje em dia, graças à distorção destas ideias, é que a lei acaba por prejudicar não só a distribuição de arte e cultura, mas a própria inovação artística. No livro “Copyrights and Copywrongs”, Vaidhyanathan dá vários exemplos disto, um dos quais a musica blues nos EUA. Tradicionalmente, os compositores blues adaptavam as melodias uns dos outros, uma forma de homenagem e de aperfeiçoamento colectivo das obras. Com o aumento de poder das empresas discográficas, esta tradição foi reprimida, ao abrigo da lei.
Isto não é exclusivo dos blues. Outros exemplos mais recentes incluem o sampling e as compilações criadas por DJs, e parece-me que a criatividade musical popular sempre foi fortemente colectiva, com uma grande interacção entre estilos e compositores. As empresas discográficas fizeram fricassé com a galinha dos ovos de ouro quando decidiram apropriar-se de pedaços da musica popular e processar todos que tentem saltar as vedações.