A próxima revolução.
Há dias tive o prazer de debater com colegas e alunos o impacto da inteligência artificial (IA) na sociedade (1). A minha expectativa, consensualmente considerada pessimista, é a de que o progresso tecnológico vai reduzir muito o mercado para o trabalho humano nas próximas décadas, ou mesmo já nos próximos anos. Não é necessariamente mau. É uma boa oportunidade para criar uma sociedade mais justa e melhor para todos. Mas compreendo que este futuro pareça indesejável quando se assume que só quem tem pais ricos ou encontra comprador para o seu trabalho é que merece viver confortavelmente e participar no mercado.
Há duas razões normalmente invocadas para defender que o progresso tecnológico presente não vai reduzir o mercado de trabalho: sempre que a tecnologia eliminou profissões surgiram profissões novas para as substituir; e há profissões que nunca irão desaparecer por muito que se automatize. Isto é quase verdade mas o diabo está nos detalhes. Consideremos, por exemplo, o que aconteceu nos EUA de 1850 até hoje (2). A agricultura, que ocupava a maioria das pessoas em 1850, já era residual em 1950. O trabalho industrial aumentou inicialmente, em substituição da agricultura, mas acabou por diminuir também e agora os serviços dominam o mercado de trabalho. Muitos julgam que o próximo passo será mais do mesmo. Eu duvido que seja.
A mecanização da força humana libertou pessoas da agricultura para outras profissões que já existiam. Médicos, operadores de máquinas, advogados, professores. Sugiram algumas profissões novas mas o seu impacto foi pequeno. O que safou foi que havia muitas profissões nas quais os tractores não substituíam ninguém. Mais tarde, a automação nas fábricas substituiu a destreza humana em tarefas repetitivas mas isso não criou profissões novas com impacto relevante no mercado de trabalho. Apenas deslocou trabalho para profissões nas quais máquinas de furar, soldar ou tecer não adiantavam de nada. Noto que deslocou trabalho e não os trabalhadores. Não foi o operário de 40 anos tornado redundante pelo robô de soldadura que foi tirar um curso de cirurgia. Esse tramou-se. Mas a geração seguinte teve tempo de se preparar para carreiras diferentes. Este é outro aspecto preocupante do progresso tecnológico presente: é muito mais rápido. Mas o problema principal é que, ao contrário do que sempre aconteceu até hoje, agora não há sectores significativos da economia onde a tecnologia não substitua mão-de-obra. Quando se substituiu a força aumentou trabalho de destreza e inteligência. Quando se substituiu a destreza o trabalho migrou quase todo para os serviços. Agora estamos a substituir o trabalho cognitivo e o que sobra é muito pouco ou quase nada. E se é verdade que muitas profissões não vão desaparecer, essa esperança é enganadora.
Apesar do progresso que houve desde 1850, ainda há pessoas a trabalhar na agricultura e em fábricas. Essas profissões não desapareceram. Mas a procura por esse trabalho diminuiu muito e isso é que importa. Um sistema de IA que faça perguntas aos utentes do centro de saúde e prepare um diagnóstico preliminar enquanto esperam pelo atendimento não permite dispensar os médicos. Mas adianta trabalho que permite ao médico antender mais pacientes e isso significa menos médicos. Robôs que fazem as camas, dão injecções, mudam o soro e monitorizam os doentes reduzem a procura por enfermeiros. Vai haver menos empregados de balcão, menos motoristas, menos mecânicos. E até menos jornalistas, futebolistas e apresentadores porque a automação está a criar formas alternativas de entretenimento e de comunicação que competem nesse mercado mas compram muito menos trabalho. Facebook, YouTube, Google, Netflix e afins, por exemplo.
Não me parece sensato contar com novas actividades que rentabilizem o trabalho humano substituído pela automação. O progresso tecnológico sempre empurrou o trabalho para áreas que a tecnologia não tinha afectado mas essas já não existem. A requalificação da força laboral também exige tempo, que é cada vez mais curto. A formação de trabalhadores capazes de fazer coisas que as máquinas não fazem tem exigido um aumento constante no nível de escolaridade e esse parece estar a atingir um limite prático. Além disso, a tendência do mercado é para actividades económicas que exigem muito menos mão-de-obra. Tudo isto aponta para um decréscimo na procura por trabalho humano e um aumento na dificuldade de vender trabalho.
Que, de resto, não é mera futurologia. Já podemos ver a acontecer. O aumento da produtividade não tem sido acompanhado por um aumento no poder de compra dos trabalhadores. Nos EUA, por exemplo, à excepção dos salários acima do percentil 90, o rendimento real está estagnado (3). A precariedade está a aumentar, com as empresas a recorrer cada vez mais ao trabalho temporário e, em cada vez mais casos, o empregado está a transformar-se num cliente da empresa. Exemplos como Uber, Glovo ou AirBnb mostram como as empresas podem lucrar intermediando a venda de serviços entre terceiros sem empregarem essas pessoas. O resultado é forçar quem tem de vender trabalho a baixar constantemente o preço numa competição desigual com sistemas automáticos cada vez mais baratos.
Isto pode ser uma coisa boa. Se a maioria não conseguir vender trabalho por falta de comprador, isso quer dizer que não precisamos de obrigar essas pessoas a trabalhar. É uma oportunidade excelente para tornar o rendimento menos dependente da venda de trabalho e a sociedade mais justa e igualitária. O problema é que muita gente se vai tramar enquanto não se adaptar a sociedade a estas condições. É só nisto que a revolução tecnológica de hoje vai ser semelhante às anteriores.
1- No MathMasters 2020, organizado pelo Departamento de Matemática da FCT/NOVA.
2- Os EUA porque foi o pais para o qual encontrei os gráficos. Mas será mais ou menos a mesma coisa por todo o lado: Five lessons from history on AI, automation, and employment
3- Pew Research Center, For most U.S. workers, real wages have barely budged in decades