Treta da semana (atrasada): igualdades e confusões.
Aproveitando o final de Agosto, vou coçar esta borbulha mais uma vez. O debate à volta dos livros que a Comissão para a Igualdade de Género (CIG) recomendou que se retirasse do mercado trouxe à superfície muita confusão acerca da igualdade de género. Por sorte, Fernanda Câncio escreveu um bom catálogo dos erros principais nesta luta por uma igualdade mal definida.
Câncio começa pelas leis discriminatórias que havia há umas décadas. As mulheres tinham de pedir autorização aos maridos para viajar, os maridos geriam os seus bens, podiam ler a sua correspondência e assim por diante. É prova cabal de como o feminismo foi necessário. Mas parece confundir leis com opiniões. Eu tenho o direito legal de viajar sem pedir autorização à minha mulher. Mas a minha mulher tem também o direito de se divorciar de mim se não gostar da brincadeira. Câncio pergunta «Então o que é aquilo no artigo 13º da Constituição, sobre a interdição da discriminação com base no sexo, orientação sexual, etc?»(1). É apenas para impedir o Estado de legislar de forma discriminatória. Não é para impedir a minha mulher de se divorciar de mim se achar que os homens têm a obrigação de pedir autorização para viajar e eu não cumprir essa restrição. Desde que o feminismo ganhou a luta contra as leis discriminatórias tem andado a lutar contra opiniões discriminatórias. Essa confusão tira-lhe legitimidade porque quem não pode discriminar é o Estado. O indivíduo tem muito mais liberdade para o fazer.
Outra confusão é acerca da igualdade de género. Não faz sentido querer que os géneros sejam iguais porque o propósito dos géneros, enquanto identidade e construção social, é precisamente distinguir umas pessoas de outras. O que faz sentido é apenas a igualdade de direitos, e mesmo essa tem um significado restrito. Um direito é apenas um dever que outros têm para connosco. Como todos temos os mesmos deveres para com os outros independentemente de atributos como sexo, credo, raça ou orientação sexual, então todos temos direitos iguais. Mas no contexto desses deveres. Fora disso, a igualdade nem está garantida nem é expectável. Fora dessas obrigações, ninguém tem de me tratar como trataria a Sara Sampaio ou o Cristiano Ronaldo. Nem tem de me conceder as mesmas oportunidades, benesses ou favores que concederia à Sara Sampaio ou ao Cristiano Ronaldo. Desde que não viole as suas obrigações, pode discriminar pelo critério que quiser, seja pelos conhecimentos de bioinformática, pela beleza, pelo sexo, pela raça ou pela pontaria do remate. Discriminar é um direito sempre que não haja um dever de tratar todos por igual.
Outra confusão muito comum é entre normas e factos. Câncio menciona que a Constituição de 1932 discriminava contra as mulheres pelas «diferenças da sua natureza». Muita gente rejeita com veemência a possibilidade de haver diferenças biológicas entre homens e mulheres – apesar das evidências claras de que as há – com medo que essas diferenças “de natureza” justifiquem impor regras diferentes a homens e mulheres. É um medo disparatado. Ser diferente, mesmo por natureza, não implica ter menos direitos. Perante a lei, e apesar das nossas diferenças, eu, a Sara Sampaio e o Cristiano Ronaldo devemos ter exactamente os mesmos direitos. Câncio não parece cometer este erro de julgar que naturezas diferentes justificariam direitos diferentes. Mas a situação é outra quando Câncio defende que diferenças biológicas entre homens e mulheres não «justificam materiais didáticos diferentes para crianças entre quatro e seis anos, conforme sejam meninas ou meninos». Neste caso, não se está a inferir normas diferentes a partir de diferenças factuais. O que se está a fazer é a inferir que, se meninos e meninas têm preferências diferentes, quem vender brinquedos diferenciados vai ter mais lucro. Isto é perfeitamente justificado e deve ser o que acontece a menos que as empresas de artigos para crianças sejam todas geridas por parvos.
Outra confusão de Câncio é acerca das críticas à recomendação da CIG para que a Porto Editora não deixasse ninguém ter acesso a estes livros. Se bem que seja uma recomendação à editora, uma vez cumprida torna-se numa imposição a todos os potenciais leitores. Para ser realmente apenas uma recomendação, a CIG teria de recomendar às pessoas que não comprassem os livros. Dessa forma, cada um poderia decidir por si se seguia ou não seguia a recomendação. Mas se são retirados do mercado por recomendação do governo, o efeito é de censura: o leitor fica impedido de ler os livros que o governo julgou impróprios, quer concorde ou não com a recomendação. Ao contrário do que Câncio sugere, a crítica não é motivada pelo medo de que as crianças mudem de género por não terem livros azuis ou cor-de-rosa, que não me parece ser um medo muito comum. A crítica é motivada pela pretensão do governo de impedir a compra desses livros, uma ingerência ilegítima em decisões do foro pessoal.
O propósito da recomendação da CIG era mesmo impedir o acesso a esses livros para evitar “perpetuar estereótipos” que a CIG não aprova. O que nos traz ao maior defeito do politicamente correcto. Realmente, há ideias erradas. Há ideias más e prejudiciais. Há ideias que seria bom que todos rejeitassem. São muitas. Criacionismo, astrologia, que as vacinas causam autismo, quase tudo o que tem que ver com religião e carradas de outras coisas. Mas numa sociedade livre e justa, que respeite a liberdade de pensamento, só é admissível combater ideias pelo confronto com ideias melhores. Pela crítica aberta, pelo humor, pela ofensa livre e despudorada. Pelo diálogo. O politicamente correcto é um movimento autoritarista que não respeita o direito a uma opinião diferente e prefere mandar calar os outros em vez de persuadir pela razão. Mas este é um problema maior do que os livrinhos de passatempos e transversal a muitas outras lutas. Fica para outra oportunidade.
1- Fernanda Câncio, DN, Isto só lá vai com educação