Treta da semana (atrasada): o fascismo.
Ao contrário de muitos “ismos”, “fascismo” não refere uma ideologia concreta. Não há um Marx, Smith ou Paulo do fascismo que dê algum fundamento conceptual à doutrina, como há no socialismo, capitalismo ou cristianismo. Na origem do fascismo está o manifesto da “Liga Italiana de Combate”, fundada por Mussolini em 1919, mas as exigências desses «fasci italiani di combattimento» não tinham nada daquilo a que hoje chamamos fascismo. Exigiam coisas como o direito de voto para as mulheres, o salário mínimo e uma jornada de trabalho de oito horas(1). O que “fascismo” agora refere é uma combinação avulsa de truques que alguns ditadores usaram para agarrar o poder. Nacionalismo, repressão da oposição política, militarismo, racismo, culto da personalidade e afins. Dos «fasci» originais só sobra o nome. Como todas as definições de “fascismo” vêm dos seus opositores, o termo é apenas um rótulo depreciativo para condenar certas atitudes de direita. Não refere qualquer ideologia que alguém realmente defenda.
Isto é relevante porque estes elementos soltos não são igualmente importantes nem são exclusivos do fascismo. Por exemplo, a Coreia do Norte não é fascista, tendo uma economia controlada pelo Estado. Mas do resto tem tudo. Tem nacionalismo, repressão autoritária, culto da personalidade e até racismo e xenofobia, e em doses maiores do que no fascismo de Salazar. Mas eliminar o racismo e a xenofobia, que muitos apontam como o pior do fascismo, deixaria a Coreia do Norte na mesma porque o maior problema é o totalitarismo. Quando castigam a oposição ao regime prendendo toda a família do opositor em campos de concentração durante três gerações, não será por serem menos racistas que se vai notar melhorias.
Em discussões a propósito da rábula da palestra (2), tenho assistido também a uma confusão frequente entre o fascismo e a ideia do fascismo. Eu sou contra a monarquia. É inaceitável atribuir poder a alguém só por ser filho dos seus pais. Mas quero uma sociedade livre e essa tem de respeitar liberdades como a de debater publicamente os méritos e deméritos da monarquia. O regime em si não é aceitável mas a ideia e a sua defesa têm de ser admitidas porque pertencem àquela esfera de liberdades onde o indivíduo é soberano. Muitos afirmam opor o fascismo mas, na verdade, o que opõem é a liberdade de debater o fascismo, escapando-lhes até a ironia de cometerem uma das injustiças mais características daquilo que alegam opor.
Preocupa-me também a incapacidade de compreensão entre os que dizem opor o fascismo e aqueles que rotulamos de fascistas. Especialmente nos extremos, cada vez mais populosos. A extrema esquerda académica vive num mundo de narrativas fantásticas sobre a “violência simbólica” e a “interseccionalidade” onde se discute o privilégio do homem branco como o maior flagelo social, ignorando que é o dinheiro que explica quase toda a desigualdade. Como nem com as mais elaboradas teorias feministas conseguem convencer homens brancos sem dinheiro nem emprego de que deviam ter vergonha do seu privilégio, os guerreiros da justiça social cortam relações e, imaginando a sociedade como um grande departamento de ciências da comunicação, pretendem matar o fascismo impedindo a divulgação das suas teorias e narrativas.
O efeito é o contrário do pretendido. Não adianta impedir essas conversas porque o fascismo não nasce em palestras ou teorias. Vem da tripa. Vem do que sentem desempregados e precários quando a igualdade de género na administração de empresas preocupa mais políticos do que problemas mais sérios e que afectam mais gente. Ou quando vêem um vídeo de marginais africanos a espancar um segurança em Estocolmo e ouvem rumores de que as coisas estão ainda piores mas “eles” ocultam as notícias. Impedir pessoas de falar não tira nada que faça falta ao racismo. Só confirma estes medos e alimenta a revolta de quem se sente injustiçado. E essa é a parte mais perigosa. Se dialogassem com as pessoas que rotulam de fascistas, em vez de se gabarem de as “limpar” das listas de contactos, perceberiam que ninguém adere ao fascismo como opção ideológica. É um processo gradual de revolta contra injustiças, reais ou imaginárias, como a corrupção, a destruição da nossa indústria, o controlo estrangeiro de Portugal, os imigrantes que roubam postos de trabalho e cometem crimes, o uso do poder para impor umas ideologias e reprimir outras e assim por diante. É isto, e não as palestras, que pode levar as pessoas ao ponto de aceitarem um ditador para acabar com as injustiças.
O fascismo não é uma ideologia coerente escolhida pela virtude da sua argumentação. É só o nome que damos a um conjunto desagradável de preconceitos e reacções viscerais. Para impedir que voltem a aproveitar-se disto para nos governar não podemos enveredar pela repressão coerciva destes sentimentos. Ninguém se cura de uma fobia por ser multado e legislar contra coisas como o racismo faz tanto sentido quanto criminalizar o medo de palhaços. Além disso, este fascismo surge da percepção de injustiça e perseguição. Qualquer tentativa de o reprimir só o alimenta e legitima o autoritarismo que queremos evitar. Temos também de quebrar o hábito de tratar estas pessoas como se vivessem em cavernas. Políticas de imigração, trabalho, igualdade de género e afins levantam problemas complexos, de facto e de valor, e mesmo quem tenha ideias erradas merece perceber o erro em vez de levar só com o carimbo de reaccionário ou fascista. Num regime democrático, pode-se manter o poder ignorando minorias. Mas para acabar com um regime democrático não é preciso maioria. Basta uma minoria suficientemente motivada e que sinta não ter nada a perder em mandar tudo abaixo. Em suma, é preciso diálogo. Não é retórica da treta, nem sermões, nem slogans parvos ou gritaria. É preciso diálogo racional. O que exige dos participantes que fundamentem bem o que defendem e é arriscado para quem tem pés de barro. Daí a relutância de muitos em meter-se nisso. Mas é a única medida que nos pode safar. As alternativas, seja a de ignorar seja a de reprimir, já a história demonstrou que não funcionam.
1- Wikipedia, Fascist Manifesto
2- Treta da semana (atrasada): a palestra.