domingo, novembro 17, 2024

Ciência, ética e filosofia.

A nossa capacidade de formar crenças acerca da realidade levanta a questão de como o devemos fazer. Há muitas possibilidades, como acreditar no que nos apetecer, seguir um livro sagrado ou tradições, confiar nas redes sociais ou nos nossos amigos ou atirar a moeda ao ar. Mas todas estas têm o problema de levar pessoas diferentes a conclusões diferentes. Muita gente vive bem com isto mas, para alguns, incomoda não haver convergência na compreensão da realidade. A ciência surge de se desejar um processo racional que permita essa convergência. Idealmente, que resista a preconceitos e acidentes e nos mostre o caminho para crenças que qualquer ser inteligente e informado reconheceria como factuais. É para isto que serve testar hipóteses, usar instrumentos, submeter resultados a revisão pelos pares e afins. É trabalho em curso e nada garante que funcione. Mas os resultados são encorajadores. Ao contrário das crenças obtidas por tradições, religiões ou outros métodos, as que são obtidas pela ciência tendem a gerar consenso.

A ética é semelhante mas o problema é diferente. Em vez de motivada pela capacidade de formar crenças, é a nossa capacidade de agir que suscita a questão de como o fazer. Também neste caso a resposta pode ser religiões, caprichos, tradições, ambição ou o que calhar, todas sofrendo do problema de dar resultados diferentes para pessoas diferentes. Há quem se contente em seguir os seus preceitos religiosos ou culturais mesmo sabendo que seguiria quaisquer outros que lhe tivessem calhado. Mas quem não aceita fazer isto à sorte procura uma abordagem racional que leve à convergência acerca de coisas como o bem, a justiça, virtudes ou deveres. É isto que a ética almeja. Como é mais difícil testar hipóteses acerca de valores do que acerca de factos, a ética parece avançar menos que a ciência mas, ainda assim, tem dado bons resultados. Houve muito progresso em questões acerca de escravatura, igualdade de direitos, legitimidade dos governos, processos judiciais e outros. É uma abordagem claramente melhor do que autos de fé, ditaduras caprichosas ou tapar a cara às mulheres só porque é costume.

A filosofia, proponho, é o que ética e ciência têm em comum e que pode ser generalizado para qualquer problema intelectual: abordá-lo de forma racional procurando respostas que qualquer ser inteligente, informado e imparcial concordaria serem as correctas. Tanto faz o tema ou a questão. Seja órbitas, estética, deuses, virtude, deveres, linguagem, consciência ou o que for, pode ser abordado de forma racional em vez de com mitos, teorias da conspiração, racionalizações ou histórias da carochinha. Por "racional" não refiro uma virtude abstracta mas a atitude concreta de apresentar razões, exigir razões, e levá-las a sério. Não são razões como meras desculpas ou racionalização mas como condições para que a conclusão seja aceite e eficazes a mudar a conclusão se forem adequadamente postas em causa.

Reconheço que esta forma de conceber filosofia não é consensual. Muita gente que se identifica como filósofo prefere impor mais restrições para encolher a filosofia e aconchegá-la à sua área de interesse. E muita gente que se identifica como cientista terá horror à ideia da ciência ser apenas um ramo da filosofia. Mas os gregos que começaram esta coisa não eram niquentos. Tanto lhes fazia se era biologia, física, política ou o que fosse, atacavam tudo da mesma maneira. O que lhes importava era dar razões e criticar as dos outros. E é por isso que, até 1833, em vez de ciência havia filosofia natural. Mas o progresso tecnológico estava a criar novas práticas. Navios e navegação permitiam viajar para ver culturas, organismos e paisagens muito diferentes. Instrumentos revelavam como os nossos sentidos são inadequados. A quantidade crescente de informação exigia cada vez mais matemática e as ideias tornavam-se obsoletas cada vez mais depressa. Para quem gostava de ler livros, coleccionar ideias antigas e reflectir à lareira isto foi um choque porque a vantagem na compreensão da realidade estava cada vez mais em quem andava a polir lentes, afinar relógios e correr tudo a experiências, observações e cálculos.

Isto não seria uma coisa má se não fosse Whewell, em 1834, inventar o termo "cientista". Sem isso, talvez tivéssemos hoje uma distribuição saudável e contínua dos mais recatados leitores aos mais enérgicos experimentalistas. Mas a ideia infeliz de Whewell cortou a distribuição a meio e separou os lados. A marca "filosofia" tornou-se propriedade das humanidades, a quem desagrada a experimentação, a matemática, a estatística e a análise de dados. Com isto ficou mais permeável a tretas como religião, floreados, demagogias pós-modernas e afins. E a ciência, para a maioria dos seus praticantes, relegou para segundo plano a compreensão da realidade e tornou-se numa linha de montagem onde cada um só conhece a sua tarefa, maximiza a "produtividade" e é avaliado por coisas como indicadores bibliométricos de desempenho.

Entender a filosofia como a procura racional por respostas, e a ética e a ciência como filosofia aplicada a questões acerca de como saber e agir, não só dá uma ideia mais completa do que é procurar a sabedoria como ajuda a resistir a muitos disparates. Entre outros, a tese de que a ciência pode substituir a ética; que afirmações acerca da realidade ficam imunes à crítica científica se as rotularmos de filosóficas, metafísicas ou teológicas; que há diferentes níveis de realidade estudados pela fé, ciências ocultas, medicinas alternativas e outras confusões. Não é defesa garantida porque temos sempre de decidir sob incerteza. Mas, perante qualquer alegação acerca do que é ou deve ser, podemos sempre questionar se foi obtida por essa via racional. Podemos avaliar se é parte de um processo convergente, usando a razão para superar enviesamentos e procurar conclusões que não dependem de peculiaridades subjectivas. Se sim, é filosofia. Se não, é treta.

6 comentários:


  1. Ludwig, as questões e as respostas que propões, em variados aspetos remetem para alguns problemas que também abordei noutros lugares, nomeadamente, blogs.
    Deixo aqui a reprodução das minhas considerações acerca dos pontos que estruturam a minha teoria segundo a qual a cultura, sob qualquer das suas formas, é um resultado, efeito, consequência, produto, enfim, escolha de indivíduos conscientes, racionais. Neste aspeto é um facto, mas todo o processo ou génese é acto, individual, consciente, racional. Os artefactos, resultados, etc, podem ser todos diferentes, no tempo, no espaço e na autoria, ou agente.
    As tuas ideias sobre a filosofia e a ciência e a ética podem ser e são diferentes das outras, se não em todos, em alguns aspetos. Mas são produtos, na acepção referida. O acto, ou actos, que se concretiza, ou manifesta, ou objetiva, ou objetifica em facto cultural é um processo mental, individual, mais ou menos complexo, de escolhas, ainda que apenas pensadas antes de serem manifestadas ou objetivadas. E, em meu entender, a cultura, em qualquer das suas formas, corporiza esta realidade de ser produzida por indivíduos com uma estrutura mental e neurológica que é a forma de que dispõem para isso.
    As diferentes ideias, as diferentes culturas, enfim, as tuas, as minhas, as dos antigos, as dos cientistas, dos religiosos, dos crentes, dos ateus, dos artistas, do legislador e do polícia, têm em comum o serem produzidas segundo um processo mental de pensamento, consciente e racional, conducente a uma escolha. Daí que seja indiferente dizer que devemos ser racionais, na medida em que, se estivermos conscientes, em algum grau estaremos capazes de distinguir aquilo que se nos representa mentalmente.
    Os apelos à racionalidade e à consciência pretendem significar que o processo das escolhas, do ponto de vista da estrutura neurológica e psicológica, em suma, biológica, embora seja uma “constante”, ao longo dos tempos e dos espaços, no processo de produção de cultura, esta, por sua vez, depende e varia incomensuravelmente da dimensão, intensidade e extensão da consciência de cada indivíduo sobre as possibilidades, subjetivas e objetivas, de escolha.
    Escolha que incide sobre “aquilo” que o indivíduo mentalmente representa como efeito da escolha, ou seja, racional.
    Perante o quadro, ou panóplia de possibilidades, o indivíduo escolherá a melhor. Esta é uma “lei” a que poderei chamar lei da melhor escolha, ou, lei das escolhas, para evitar a redundância, uma vez que a escolha é, e não pode deixar de ser a melhor.

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  2. Carlos Soares,

    «As diferentes ideias, as diferentes culturas, enfim, as tuas, as minhas, as dos antigos, as dos cientistas, dos religiosos, dos crentes, dos ateus, dos artistas, do legislador e do polícia, têm em comum o serem produzidas segundo um processo mental de pensamento, consciente e racional, conducente a uma escolha.»

    Eu discordo disto.

    Logo à partida porque há muita coisa que não vem de um processo consciente, derivando de sentimentos viscerais como amor pelos filhos, sexo, desconfiança de estranhos, etc. Coisas como ciúmes, racismo, xenofobia, amor, ganancia e afins não são escolhas deliberadas e racionais e, no entanto, são muito influentes em crenças e elementos culturais quando não se faz um esforço para as contrariar.

    Depois, mesmo elementos culturais e ideias que surjam de forma deliberada e consciente podem não ser racionais. Muitas não têm justificação em razões adequadas. Por exemplo, as mulheres não poderem ser sacerdotes na Igreja Católica, a crença de que o nascimento de Maria foi imaculado e que depois engravidou virgem, etc.

    «Perante o quadro, ou panóplia de possibilidades, o indivíduo escolherá a melhor. Esta é uma “lei” a que poderei chamar lei da melhor escolha, ou, lei das escolhas, para evitar a redundância, uma vez que a escolha é, e não pode deixar de ser a melhor.»

    Essa visão do humano como um ser infalível a quem qualquer impulso conduz ao melhor desfecho possível parece-me contrária às evidências...

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  3. Ludwig,
    A minha teoria assenta no pressuposto de que não há racionalidade se não houver consciência e de que a consciência se manifesta por sinais de racionalidade. O meu conceito de racionalidade, por sua vez, pretende depurar o uso corrente e indiscriminado de racionalidade, razão, racional, irracional, cujas cargas valorativas tendem a confundir racional com razoável, fundamentado, lógico, bom, certo, verdadeiro, pensado. O meu conceito de racionalidade não se restringe a uma racionalidade no sentido humano de racionalidade acerca da(s) racionalidade(s) uns dos outros, mormente da racionalidade discursiva, entendida como razoabilidade ou boas razões para. Este conceito de racionalidade deixa de fora os animais. O meu conceito, diferentemente, supõe que a racionalidade é, não um produto cultural, característica de um produto cultural, mas uma faculdade natural dos seres humanos e, numa acepção mais alargada, dos seres vivos. Para simplificar, racionalidade, neste meu entendimento, é a faculdade que temos de distinguir as coisas e de reconhecer ou de estabelecer relações entre elas, qualquer que seja a distinção e a relação que possamos estabelecer, qualitativa, quantitativa, real, hipotética, ilusória, valorativa, matemática, sensitiva, cognitiva, musical, sensorial, numérica, geométrica, moral, etc.. Nesta acepção, tanto é racional distinguir um quadrado de um triângulo, como distinguir o amarelo do azul, ou relacionar o número 10 com o número 2. Se consegues estabelecer um rácio entre o quadrado e o triângulo, ou entre o 10 e o 2, também consegues estabelecer um rácio entre o amarelo e o azul. Independentemente dos rácios que sejas capaz de estabelecer, a racionalidade é essa faculdade de discernir. Ora, só é possível discernir coisas diferentes, qualquer que seja a causa dessa diferença. Sem a consciência julgo que tal não é possível. Daí eu dizer que a racionalidade e a consciência são como duas faces de uma moeda transparente.
    As tuas objecções não me parece que tenham em consideração esta concepção de racionalidade como função natural que opera tanto nas crenças a que aludes como noutras quaisquer.
    Por exemplo, quando dizes «há muita coisa que não vem de um processo consciente» que «são muito influentes em crenças e elementos culturais» não estás a reconhecer que a minha teoria não põe em causa que a maior parte daquilo que somos e fazemos, desde nascer, respirar, dormir, crescer, pensar, etc., precede a consciência e até pode prescindir dela, exceto talvez pensar. A minha tese é que, quando fazes uma escolha, isso deriva de um processo em que tinhas consciência, pese embora poder haver graus de consciência, e avaliaste, com a tal faculdade de estabelecer rácios e executaste (entenda-se executar como concretização da escolha, que pode ser meramente mental, sem manifestações exteriores de comportamento).
    O que torna racional a escolha não é o ser adequado ou ter justificação de um qualquer ponto de vista, subjetivo, ou objetivo. Parece-me que aqui a tua discordância também tem a ver com o entendimento de que partes acerca do que é racional.
    Por outras palavras, não direi que algo, seja o que for, torna a escolha racional (embora também tenha uma teoria sobre isso), digo é que a escolha é racional, independentemente daquilo sobre que incide.

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