Ciência, ética e filosofia.
A nossa capacidade de formar crenças acerca da realidade levanta a questão de como o devemos fazer. Há muitas possibilidades, como acreditar no que nos apetecer, seguir um livro sagrado ou tradições, confiar nas redes sociais ou nos nossos amigos ou atirar a moeda ao ar. Mas todas estas têm o problema de levar pessoas diferentes a conclusões diferentes. Muita gente vive bem com isto mas, para alguns, incomoda não haver convergência na compreensão da realidade. A ciência surge de se desejar um processo racional que permita essa convergência. Idealmente, que resista a preconceitos e acidentes e nos mostre o caminho para crenças que qualquer ser inteligente e informado reconheceria como factuais. É para isto que serve testar hipóteses, usar instrumentos, submeter resultados a revisão pelos pares e afins. É trabalho em curso e nada garante que funcione. Mas os resultados são encorajadores. Ao contrário das crenças obtidas por tradições, religiões ou outros métodos, as que são obtidas pela ciência tendem a gerar consenso.
A ética é semelhante mas o problema é diferente. Em vez de motivada pela capacidade de formar crenças, é a nossa capacidade de agir que suscita a questão de como o fazer. Também neste caso a resposta pode ser religiões, caprichos, tradições, ambição ou o que calhar, todas sofrendo do problema de dar resultados diferentes para pessoas diferentes. Há quem se contente em seguir os seus preceitos religiosos ou culturais mesmo sabendo que seguiria quaisquer outros que lhe tivessem calhado. Mas quem não aceita fazer isto à sorte procura uma abordagem racional que leve à convergência acerca de coisas como o bem, a justiça, virtudes ou deveres. É isto que a ética almeja. Como é mais difícil testar hipóteses acerca de valores do que acerca de factos, a ética parece avançar menos que a ciência mas, ainda assim, tem dado bons resultados. Houve muito progresso em questões acerca de escravatura, igualdade de direitos, legitimidade dos governos, processos judiciais e outros. É uma abordagem claramente melhor do que autos de fé, ditaduras caprichosas ou tapar a cara às mulheres só porque é costume.
A filosofia, proponho, é o que ética e ciência têm em comum e que pode ser generalizado para qualquer problema intelectual: abordá-lo de forma racional procurando respostas que qualquer ser inteligente, informado e imparcial concordaria serem as correctas. Tanto faz o tema ou a questão. Seja órbitas, estética, deuses, virtude, deveres, linguagem, consciência ou o que for, pode ser abordado de forma racional em vez de com mitos, teorias da conspiração, racionalizações ou histórias da carochinha. Por "racional" não refiro uma virtude abstracta mas a atitude concreta de apresentar razões, exigir razões, e levá-las a sério. Não são razões como meras desculpas ou racionalização mas como condições para que a conclusão seja aceite e eficazes a mudar a conclusão se forem adequadamente postas em causa.
Reconheço que esta forma de conceber filosofia não é consensual. Muita gente que se identifica como filósofo prefere impor mais restrições para encolher a filosofia e aconchegá-la à sua área de interesse. E muita gente que se identifica como cientista terá horror à ideia da ciência ser apenas um ramo da filosofia. Mas os gregos que começaram esta coisa não eram niquentos. Tanto lhes fazia se era biologia, física, política ou o que fosse, atacavam tudo da mesma maneira. O que lhes importava era dar razões e criticar as dos outros. E é por isso que, até 1833, em vez de ciência havia filosofia natural. Mas o progresso tecnológico estava a criar novas práticas. Navios e navegação permitiam viajar para ver culturas, organismos e paisagens muito diferentes. Instrumentos revelavam como os nossos sentidos são inadequados. A quantidade crescente de informação exigia cada vez mais matemática e as ideias tornavam-se obsoletas cada vez mais depressa. Para quem gostava de ler livros, coleccionar ideias antigas e reflectir à lareira isto foi um choque porque a vantagem na compreensão da realidade estava cada vez mais em quem andava a polir lentes, afinar relógios e correr tudo a experiências, observações e cálculos.
Isto não seria uma coisa má se não fosse Whewell, em 1834, inventar o termo "cientista". Sem isso, talvez tivéssemos hoje uma distribuição saudável e contínua dos mais recatados leitores aos mais enérgicos experimentalistas. Mas a ideia infeliz de Whewell cortou a distribuição a meio e separou os lados. A marca "filosofia" tornou-se propriedade das humanidades, a quem desagrada a experimentação, a matemática, a estatística e a análise de dados. Com isto ficou mais permeável a tretas como religião, floreados, demagogias pós-modernas e afins. E a ciência, para a maioria dos seus praticantes, relegou para segundo plano a compreensão da realidade e tornou-se numa linha de montagem onde cada um só conhece a sua tarefa, maximiza a "produtividade" e é avaliado por coisas como indicadores bibliométricos de desempenho.
Entender a filosofia como a procura racional por respostas, e a ética e a ciência como filosofia aplicada a questões acerca de como saber e agir, não só dá uma ideia mais completa do que é procurar a sabedoria como ajuda a resistir a muitos disparates. Entre outros, a tese de que a ciência pode substituir a ética; que afirmações acerca da realidade ficam imunes à crítica científica se as rotularmos de filosóficas, metafísicas ou teológicas; que há diferentes níveis de realidade estudados pela fé, ciências ocultas, medicinas alternativas e outras confusões. Não é defesa garantida porque temos sempre de decidir sob incerteza. Mas, perante qualquer alegação acerca do que é ou deve ser, podemos sempre questionar se foi obtida por essa via racional. Podemos avaliar se é parte de um processo convergente, usando a razão para superar enviesamentos e procurar conclusões que não dependem de peculiaridades subjectivas. Se sim, é filosofia. Se não, é treta.
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