quarta-feira, maio 13, 2015

Boa pergunta.

No Público, o Secretário de Estado da Cultura tentou defender a taxa sobre os suportes digitais invocando a “propriedade intelectual”. Esta frase tortuosa resume a justificação: «Querer retirar a autores e artistas a possibilidade de um controlo da sua propriedade sobre os conteúdos por eles gerados no sistema de distribuição da remuneração da cadeia de valor económico da criação e gestão de conteúdos é contribuir para uma sociedade menos plural e para a crescente concentração do poder de informar e formar nas mãos de poucos.»(1)

A afirmação é falsa porque é precisamente o sistema de monopólios legais sobre a distribuição que concentra o poder nas mãos de poucos, que assim decidem o que é distribuído, quando e como. E não justifica uma taxa sobre o armazenamento digital porque, primeiro, a taxa incide sobre equipamento que serve para imensas coisas, como fazer trabalhos de escola, ler correspondência, guardar fotografias das férias, telefonar à avó, consultar o saldo bancário ou preencher a declaração do IRS, tudo taxado em nome da cópia privada. E, em segundo lugar, porque o suposto direito pelo qual estamos a pagar não existe. Como escreve Barreto Xavier, «A cópia privada, enquanto reprodução feita por quem compra dada obra legalmente, é uma exceção ao direito exclusivo de propriedade de um autor ou artista sobre a sua obra». No entanto, no domínio digital não existe essa excepção porque os esquemas de licenciamento e protecção de cópia impedem o cidadão de fazer cópias legais contra a vontade dos detentores de direitos. Quem reproduz uma obra que adquiriu em suporte digital ou está a violar a lei ou fá-lo com a anuência dos detentores dos direitos exclusivos.

Outro problema no argumento de Barreto Xavier é a confusão entre direitos de propriedade e os monopólios legais a que chama “propriedade intelectual”. É verdade que «ninguém põe em causa os direitos exclusivos sobre determinado bem por parte do seu proprietário.» Mas há uma grande diferença entre ser dono de um objecto e mandar nos outros, mesmo quando se cria algo. Quando alguém se lembrou de atar uma pedra afiada a um pau e fez o primeiro machado, esse machado era seu. Não seria legítimo tirarem-lho ou privarem-no do uso exclusivo desse objecto que criou. Mas daqui não segue que, em virtude de ter sido a primeira pessoa a atar um pau a uma pedra, ganhasse o direito de proibir todos os outros de fazer o mesmo. Além de não ter nada que ver com o direito de propriedade sobre o machado original, tal monopólio sobre os machados seria uma violação dos direitos de propriedade que as outras pessoas teriam sobre os seus paus e as suas pedras. Milhares de anos mais tarde, temos o mesmo problema com este texto. Os meus direitos de propriedade sobre o meu computador permitem-me guardar este texto aqui sem que ninguém o venha cá ler ou apagar, se eu quiser. É o meu computador, em minha casa, por isso aqui mando eu. Mas o monopólio legal sobre a cópia do texto publicado implica que eu possa proibir os leitores de, em suas casas, usar o botão da direita do rato e escolher “guardar como...”. Isto não só ultrapassa os limites dos meus direitos de propriedade como viola claramente os vossos direitos de propriedade. Finalmente, a tese de que isto se justificaria por eu ser o proprietário deste texto em abstracto, separado de qualquer suporte, é disparatada porque não faz sentido ter direitos de propriedade sobre entidades abstractas e é irrelevante porque a lei não me dá direitos de propriedade sobre o texto em abstracto. Por exemplo, não posso proibir que memorizem ou texto ou que o leiam em voz alta. A lei apenas me dá o direito exclusivo de distribuir e copiar o texto e isso não tem nada que ver com direitos de propriedade.

Para justificar a taxa, Barreto Xavier alega também que todos os autores «têm direito a ser remunerados pelas suas criações enquanto sua propriedade». No entanto, não só o direito a remuneração carece de um acordo prévio – se eu tocar música na rua não é por esse trabalho em si que os transeuntes passam a ter a obrigação de me remunerar – como nada disto justifica conceder monopólios e, ainda menos, uma taxa. O cabeleireiro também tem o direito de ser pago pelos seus serviços mas isto não implica o direito a deter um monopólio sobre os caracóis ou a receber uma taxa pelo comércio de pentes e secadores.

Mas o mais importante do texto de Barreto Xavier é a pergunta que ele coloca no início. «Devem os modelos jurídicos, económicos, políticos que conformam uma certa ideia de sociedade continuar a defender a propriedade intelectual ou devemos tornar indiscriminado o acesso a conteúdos até agora protegidos?» Pensemos no caso geral da cultura e do acesso ao conjunto de obras, tradições e conhecimento que a nossa sociedade produz. Pensemos nas escolas, nas bibliotecas, nos museus, nos monumentos e naquilo que uma Secretaria de Estado da Cultura devia fazer em vez de leis parvas como esta. Pensemos em Camões e Eça em vez de só na Madonna e no Quim Barreiros. Pensando nisto parece-me claramente errado discriminar ou restringir o acesso à cultura. É verdade que restrições e taxas podem dar lucro a alguns vendedores, mas o que está em jogo é muito mais importante do que a venda de licenças. Pela primeira vez na história temos os meios tecnológicos para garantir um acesso universal à cultura. Não devemos deixar que um punhado de comerciantes nos impeça de aproveitar esse potencial.

1- Publico, A cópia privada

1 comentário:

  1. Li hoje este artigo a defender o fim dos direitos de autor que achei de interesse para a audiencia deste blog: https://sujato.wordpress.com/2015/05/20/copy-this/

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