terça-feira, novembro 04, 2025

A burca.

A rábula da burca foi uma boa armadilha do Chega. A lei proposta não devia ser polémica. Proíbe forçar alguém «a ocultar o rosto por motivos de género ou religião»(1), o que é redundante porque coagir já é crime mas é difícil opor tal proibição. E proíbe ocultar a cara em público. Desde 2019 que é proibido «ostentar ou envergar qualquer utensílio ou apetrecho que oculte, total ou parcialmente, o rosto» em recintos desportivos (2) e isso nunca causou polémica. Essa lei surgiu na sequência de 50 adeptos encapuçados terem espancado jogadores do Sporting em Alcochete e ninguém quer homens de cara tapada em público. O projecto de lei do Chega, que proíbe «a utilização, em espaços públicos, de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto», apenas generaliza a medida anterior. A armadilha foi o Chega justificar esta lei com a burca. Se a justificação fosse claques de futebol, manifestantes de extrema direita ou homens em geral não haveria polémica porque ninguém quer gente assim de cara tapada nas lojas, transportes públicos ou centros comerciais. Mas a burca fez boa parte da esquerda reagir por reflexo e tentar argumentar, sem sucesso, contra uma lei razoável.

Uma objecção é que esta lei não ajuda mulheres coagidas a usar burca. No imediato, concordo que não ajuda. Proibir a mutilação genital feminina também não adianta às vítimas e famílias que queiram mesmo fazer isso às raparigas vão arranjar forma de o fazer. No entanto, a longo prazo estas leis favorecem mudanças de comportamento, são leis justas que indicam a quem queira integrar-se na nossa sociedade o que não toleramos por cá e, mesmo que o efeito seja pequeno, é melhor que nada. Mas a razão principal para rejeitar esta objecção é que, apesar da armadilha que o Chega montou, esta lei não é acerca da burca. Tal como a lei de 2019 proibindo que se oculte a cara em recintos desportivos, é uma medida genérica para que não andem de cara tapada. O que ainda é raro, é verdade, mas a lei deve prevenir em vez de correr atrás do prejuízo.

Outra objecção é que a lei tem de ter excepções para casos em que se justifica tapar a cara. Por motivos de saúde, condições climáticas ou outros. É uma objecção curiosa porque implicitamente aceita que a lei é boa ideia. Seja como for, é comum haver excepções para medidas destas porque é preciso considerar o contexto. A lei que proíbe andar de faca na mão em público permite que as pessoas comam em esplanadas ou restaurantes. Mas há uma grande diferença entre ver várias pessoas de faca na mão num restaurante ou num autocarro. Esta lei visa o problema de se tapar a cara com o propósito de a ocultar. Se houver uma justificação razoável deve ser permitido.

Há também quem defenda um direito de não mostrar a cara em público. Como escreve Fernanda Câncio, esta lei nega «o direito ao anonimato no espaço público (o que, a ser levado à letra, teria de determinar o fim do anonimato em geral e na internet em particular)»(3). Eu concordo com um direito geral ao anonimato. Qualquer pessoa deve poder publicar opiniões anónimas, participar em video-chamadas com a câmara desligada ou dialogar online sem publicar a sua foto porque na Internet cada um só vê o que quer e desliga quando lhe apetece. A interacção voluntária não exige muitas restrições e, por isso, devemos poder andar nus na praia de nudismo, proferir discursos políticos nos comícios, celebrar missa na Igreja, cantar karaoke no bar ou organizar bailes de máscaras. Mas só se a interacção for voluntária. Não se aplica quando partilhamos um espaço público com quem precisa de lá estar e pode não querer aturar estas coisas.

Por isso não temos direito de praticar nudismo no autocarro, celebrar missa no supermercado ou proferir discursos contra o capitalismo nos centros comerciais. A situação particular de partilhar um espaço por necessidade impõe certos deveres, entre os quais o de não esconder a cara. Por um lado, porque esconder deliberadamente a cara é uma atitude ameaçadora. E, por outro, porque mostrar a cara faz parte dos mecanismos sociais e legais para dissuadir violações de direitos que podem ocorrer na presença de estranhos. Não é preciso que cada um diga o nome e o NIF mas a possibilidade de ser reconhecido desencoraja muitos comportamentos indesejáveis. Quem oculta o rosto priva os outros dessa capacidade de o reconhecer, que é uma ferramenta importante na defesa dos seus direitos.

Finalmente, a alegação que esta lei viola a liberdade religiosa das mulheres que usam burca assenta numa concepção errada de liberdade religiosa. A liberdade do crente deve ser igual à de qualquer outra pessoa. Isto implica que ninguém deve ser privado de uma liberdade por causa da sua religião mas também que a religião não concede ao crente direitos que os outros não tenham. E ninguém tem o direito de esconder a cara quando impõe a sua presença aos outros.

Para perceber que esta proibição faz sentido basta imaginar que os homens andavam todos de cara tapada. O problema de segurança é óbvio se não nos deixarmos enganar pelo o foco nas mulheres de burca, que levou muita gente de esquerda a cometer dois erros. O primeiro foi defender o suposto direito dessas mulheres se vestirem assim quando o fazem ou porque são coagidas ou porque foram doutrinadas na ideia de que, por serem mulheres, têm de tapar a cara. E o segundo foi exigir que todos abdiquemos de poder ver quem partilha connosco o espaço público só para acomodar uma pequena minoria de fanáticos religiosos. É certo que muitos no Chega são motivados por racismo e xenofobia mas se invocamos isto para opor até o que é razoável, deixa de surtir efeito. É um padrão recorrente. O Chega não tem uma boa equipa mas é fácil ganhar quando o adversário só marca golos na própria baliza.

1- Parlamento, Projeto de Lei nº 47/XVI/1.a
2- Diário da República, Lei 113/2019
3- DN, Falemos então da burqa.

sábado, outubro 04, 2025

Transformações e licenças.

Ed Newton-Rex afirma ser injusto usar obras criativas para treinar redes neuronais geradoras sem pagar licença aos autores. O seu manifesto já tem mais de 50 mil signatários (1). Argumenta que as empresas que treinam estas redes gastam muito dinheiro em pessoal e computadores e, por isso, deviam também pagar pelos dados que usam, que vêm do trabalho criativo dos artistas (2). Isto presume que beneficiar de algo obriga a remunerar o autor, presunção consequente de se subsidiar certas profissões concedendo monopólios sobre a cópia. Mas isto é uma excepção. Felizmente para todos, incluindo os artistas, o normal é pagar a quantia combinada quando o trabalho é feito, e pronto. Não se paga licenças aos professores pelo uso do que se aprendeu, aos médicos por cada dia de saúde ou ao electricista cada vez que se liga um interruptor.

Quando se passou da tecnologia de Gutenberg para o domínio digital exigiram outra excepção. Não se concede monopólios sobre números e álgebra. Por exemplo, em 1976, Diffie e Hellman inventaram um método algébrico para trocar chaves criptográficas (3) do qual depende todo o comércio online. Saía caro se déssemos por isto os mesmos privilégios legais que se dá por bonecos ou cantigas. Também os parâmetros das redes neuronais não dão direito a monopólios. Por muito tempo e dinheiro que custe criar e treinar os modelos, o resultado não é propriedade de ninguém porque são números. Mas quem carrega no botão da máquina fotográfica, grava uma música ou faz um desenho no computador fica com um monopólio comercial sobre os números que o aparelho guardou. E como não se pode especificar que números pertencem a quem, esta excepção obriga a censurar os outros conforme o significado dado aos números, bloqueando sites, proibindo a partilha de ficheiros ou até declarando ilegal ver provas desportivas sem licença (4). Agora exigem ainda mais uma excepção: querem cobrar pela autorização de treinar modelos alegando que aprendem a imitá-los à custa do seu trabalho. Mas nunca se pagou licença para aprender e nem é verdade que estes modelos aprendam a fazer o que os autores fazem. Não aprendem a escrever, nem a compor música nem a desenhar. Aprendem apenas a converter formatos digitais. É como gravar um documento do Word em PDF.

Se representarmos a posição de Lisboa e de Coimbra no espaço é difícil planear uma viagem porque a Terra roda sobre si própria, orbita o Sol e o Sol anda disparado pela galáxia. A posição de cada cidade muda ao longo do tempo em espirais aninhadas e isto complica muito o traçado e a escolha do caminho a seguir. Mas uma transformação algébrica adequada permite projectar estas coordenadas em duas dimensões num mapa estático onde é fácil escolher o percurso. Ou seleccionar outros destinos, porque qualquer ponto do mapa corresponde a um ponto na superfície da Terra. Escolher coordenadas ao acaso na outra representação, de espaço e tempo, calha quase de certeza algures no vácuo onde a estadia seria desconfortável e curta.

O grande poder das redes neuronais, a tal "IA generativa", é encontrar transformações convenientes para o que quisermos fazer. Por exemplo, normalmente representamos texto no computador atribuindo um número a cada letra, o que torna difícil prever a palavra seguinte. Os modelos de linguagem são operações algébricas que transformam esse formato noutro que dá imediatamente a distribuição de probabilidades da próxima palavra. E é só isso. Depois gera-se texto aplicando estas transformações para ir escolhendo palavras novas mas a rede neuronal é apenas uma sequência de operações que converte umas coordenadas noutras. É o mesmo com a geração de imagens a partir de texto. A rede transforma a sequência de números representando letras numa representação intermédia que se pode ajustar aleatoriamente e depois transformar nas matrizes de números como normalmente representamos imagens. É só isto que uma rede neuronal consegue fazer. Não tem desenhos, nem texto, nem canções. É só contas. Isto fica disfarçado por metáforas como a de "alimentar" a rede com as obras dos autores mas apenas se dá as coordenadas dos pontos que nos interessam para calcular a projecção adequada. Como a que permite calcular onde Lisboa e Coimbra ficam no mapa.

Esta tecnologia pode substituir muito trabalho humano, não só de artistas mas de toda a gente. Isso vai impor muitas mudanças mas não justifica licenças para aprender nem muito menos monopólios sobre a álgebra. Infelizmente, há grupos poderosos que querem expandir estes monopólios. Os "direitos de autor" são maioritariamente detidos por grandes empresas em benefício dos seus accionistas e, do outro lado, as grandes empresas que criam redes neuronais também querem acesso exclusivo aos dados para inibir potenciais concorrentes. Nós é que saímos prejudicados com a negociata, não só pelo efeito dos monopólios nos preços como também por concentrar ainda mais o controlo sobre o desenvolvimento e uso desta tecnologia.

O que nos deve preocupar não é actores fictícios (5) "roubarem" o trabalho dos actores humanos (6) ou minudências afins. O que temos de precaver são coisas como a violação de privacidade, burlas, e abusos de poder por parte do Estado. O reconhecimento de matrículas, a utilização massiva de informação que queremos privada e a vigilância descontrolada por parte das autoridades são exemplos do que nos deve preocupar. Estes monopólios que os artistas exigem, além de absurdos, limitam a concorrência, a transparência e a possibilidade de desenvolvimento e avaliação independente dos modelos. Para regular estas coisas é crucial que fique tudo à vista, modelos e dados, em vez de oculto atrás de acordos de exclusividade entre a Disney e a Google ou entre a Sony e a Meta. E é preciso que a tecnologia esteja acessível a todos em vez de apenas a quem pode contratar equipas de advogados e pagar licenças para fazer contas.

1- Statement on AI training
2- Guardian, Thom Yorke and Julianne Moore join thousands of creatives in AI warning
3- Wikipedia, Diffie–Hellman key exchange
4- A PJ lançou uma “campanha se sensibilização” contra ver futebol pirateado: Acredita, acaba com o teu jogo!. É certamente um dos crimes que mais preocupam os portugueses.
5- Particle 6, AI Commissioner
6- CNN, Hollywood is fuming over a new ‘AI actress’

quarta-feira, agosto 06, 2025

O pré-acordo.

O acordo anunciado por Trump e Von der Leyen foi duramente criticado como capitulação da UE, um mau acordo, um acto de submissão e afins. À primeira vista parece terrível. Os EUA cobram 15% de taxas de importação aos produtos europeus e a UE compromete-se a comprar armamento aos EUA e, nos próximos 3 anos, comprar 750 mil milhões de dólares de gás natural liquefeito (GNL) e investir 600 mil milhões de dólares nos EUA. Mas antes de concluir que isto foi uma asneira da UE vale a pena considerar os detalhes e as circunstâncias.

Primeiro, os números não são tão maus quanto parecem (1). Como os EUA pagam as importações em dólares – uma vantagem enorme que Trump não sabe apreciar – todas as empresas europeias que exportarem para os EUA vão receber dólares que acabarão investidos em acções ou obrigações nos EUA. Os 600 mil milhões de dólares de investimento são apenas a contabilização de parte do dinheiro que empresas europeias põem a render em Wall Street. Também a compra de 250 mil milhões de dólares de GNL por ano é fictícia porque é um volume cinco vezes maior que a capacidade de exportação dos EUA. Estes números são só para Trump se pavonear e não têm implicações concretas. Na prática, não mudam nada.

A compra de armas aos EUA tem a desvantagem de competir com o investimento na indústria europeia de defesa. Seria desejável que a Europa fosse mais autónoma nisto, além dos benefícios económicos de usar a prata da casa. Mas dissuadir Putin de fazer novas asneiras exige aumentar rapidamente a capacidade europeia de projecção militar, o que é difícil se tivermos de esperar pela expansão da indústria militar europeia. Além disso, Trump mudou muito a atitude dos EUA. Desde a primeira guerra mundial que os EUA têm contribuído para a segurança europeia por afinidade ideológica pelas democracias de cá. Mas para Trump tudo é negócio e este compromisso cria um incentivo económico forte para os EUA continuarem a defender a Europa. Quanto mais importante for a Europa para a indústria americana de armamento mais alinhados ficarão os EUA com nossos interesses de segurança.

Quanto à treta das “tarifas”, há pouco a fazer. Trump quer tirar dinheiro dos contribuintes americanos mais pobres para dar aos ricos, quer que as grandes empresas lhe paguem para ter isenções e gosta de exercer poder arbitrário. Seja o julgamento do Bolsonaro, o apoio do Canadá à independência da Palestina, ou para aparecer no boneco com uma cartolina cheia de números, tudo serve para disparar “tarifas”. E não faz sentido a UE retaliar porque taxas aduaneiras do nosso lado apenas seriam impostos cobrados aos contribuintes europeus. Mais vale deixar a asneira só do lado dos americanos até os trumpistas descobrirem que são eles que a pagam.

Este é um aspecto importante das circunstâncias deste pré-acordo. Uma taxa de 15% dificulta a exportação europeia mas pior ainda é a incerteza acerca das quantias porque impede o investimento e o planeamento destes negócios. Com Trump a alterar as taxas de forma imprevisível o prejuízo seria maior. Assim, pelo menos há uma expectativa da taxa estabilizar enquanto se negocia os detalhes.

E este é outro aspecto importante. Há muita negociação ainda a fazer antes deste pré-acordo se tornar um acordo, não só pela complexidade de um acordo comercial desta magnitude mas também porque será negociado entre os vários Estados membros da UE até ser ratificado. Se for. Até lá muita coisa pode mudar nos EUA. No próximo ano vai haver eleições legislativas e o poder de estabelecer estas taxas pertence ao Congresso e não ao Presidente. A situação presente do Congresso americano estar dominado por uma massa acéfala de republicanos que só faz o que Trump manda não deve resistir à revolta dos eleitores contra as medidas tomadas até agora. O que Trump está a fazer aos preços e à economia americana é politicamente insustentável e não dá para disfarçar despedindo os responsáveis pelas estatísticas.

Por estas razões, acho que Von der Leyen e a sua equipa fizeram um bom trabalho. O resultado é desagradável, admito, mas é o que se consegue dadas as circunstâncias. Aparenta ser uma grande vitória de Trump mas o efeito prático é apenas mitigar o caos nas taxas aduaneiras. E se bem que Trump não mereça as honras e obséquios que lhe têm conferido, o país mais poderoso do mundo ser governado por uma criança mimada de 79 anos levanta problemas que não têm uma solução elegante. É preciso esperar que os eleitores americanos sintam na carteira o que a Fox News não deixou chegar-lhes ao cérebro.

1- Mais detalhes neste post de Warwick Powell, The Great Entanglement

quarta-feira, julho 16, 2025

Desalinhamento.

Segundo um estudo do Observatório de Segurança e Defesa da SEDES, há «um preocupante desalinhamento entre a realidade objectiva da criminalidade em Portugal e a percepção subjectiva da insegurança». Não encontrei o estudo mas nas notícias as evidências apresentadas são que, enquanto a criminalidade participada diminuiu 1.3% entre 2000 e 2024, as referências a crimes na primeira página dos jornais Correio da Manhã, PÚBLICO, Diário de Notícias, Expresso e Sol aumentaram 130% (1). E nos comentários que os algoritmos me têm apresentado o consenso parece ser que as pessoas se sentem inseguras porque são facilmente manipuladas por políticos e pela comunicação social. Discordo desta conclusão.

É enganador dizer que a criminalidade diminuiu de 2000 para 2024 quando a diferença é de apenas 1.3%. É menor que a variação entre anos consecutivos e não é estatisticamente significativa. Será mais correcto dizer que hoje temos o mesmo nível de criminalidade que há 25 anos. O que é preocupante. No mesmo período, a população envelheceu de 24 para 38 idosos por cada 100 pessoas em idade activa e a percentagem de pessoas em idade activa com o ensino secundário ou superior aumentou de 21% para 61% (2). Esta evolução demográfica devia resultar numa redução significativa da criminalidade e fica por explicar porque isso não aconteceu.

Também a criminalidade geral não é o melhor indicador. Crimes contra as pessoas contribuem mais para o sentimento de insegurança do que a fuga ao fisco, por exemplo. E esses crimes aumentaram, especialmente em certas regiões como o Algarve. A figura abaixo representa a criminalidade em relação ao ano de 2009, o primeiro ano com dados desagregados por região (2), e mostra como faz diferença olhar para diferentes tipos de crime e regiões.



Outro aspecto importante é que, independentemente da diferença entre 2024 e 2000, o crime aumentou nos últimos anos. Ignorando os anos da pandemia, isto estava bem encaminhado até 2018 mas depois a tendência inverteu-se. E é razoável dar mais importância aos últimos anos do que ao que se passou há um quarto de século. Em suma, não se justifica concluir que o sentimento de insegurança é irracional só porque a criminalidade geral em 2024 foi ligeiramente menor que em 2000. Há razões objectivas para preocupação quando se considera diferentes tipos de crime, períodos mais recentes, e o que se passa em diferentes regiões. Além disso, há comportamentos anti-sociais que não constituem crime mas ainda assim contribuem para um justificado sentimento de insegurança.

Outra alegação é a de que «a amplificação mediática dos fenómenos criminais» é uma das causas desse sentimento de insegurança. Também esta alegação me parece questionável. Primeiro, o aumento de 130% da cobertura mediática dos crimes ocorreu nos cinco jornais seleccionados: Correio da Manhã, PÚBLICO, Diário de Notícias, Expresso, e Sol. Isto não contabiliza coisas como o fecho do jornal O Crime em 2014, ou outras publicações do género. Além disso, haver mais relatos de crimes nestes jornais pode dever-se à mudança nos hábitos dos leitores. Hoje menos gente vai comprar o seu jornal preferido. Em vez disso vai a vários sites e vê publicidade, o que força os jornais atrair o maior número de pessoas em vez de se focarem naquelas dispostas a pagar. Mais importante ainda, esta correlação entre sentimento de insegurança e cobertura mediática não nos permite concluir que é a cobertura mediática que faz aumentar o sentimento de insegurança. Pode bem ser o contrário, com um maior sentimento de insegurança a aumentar o interesse neste tipo de notícias e os jornais adaptarem-se a isso pela necessidade de vender publicidade.

Nada disto prova que todo o sentimento de insegurança é racional e objectivamente justificado. Há muita subjectividade e até irracionalidade nestas coisas. Mas não se justifica concluir que é tudo manipulação e que estas preocupações são fabricadas pela comunicação social ou pelo discurso dos políticos de direita. Eu suspeito até que o principal trunfo da direita é esta premissa de muita gente na esquerda, que as preocupações dos eleitores de partidos como o Chega são apenas burrice de quem se deixa manipular. Não me parece sequer que políticos como Ventura sejam bons a convencer as pessoas. O que me parece é que se aproveitam daquilo que as pessoas sentem na pele e que outros descartam como disparate invocando estatísticas manhosas. Depois ficam espantados como tanta gente no Algarve votou no Chega quando a criminalidade desceu 1.3% entre 2000 e 2024.

1- Público, Nos últimos 25 anos, a criminalidade desceu. Mas crimes nas capas de jornais duplicaram
2- Os dados foram obtidos da Pordata.
3- Jornal de Negócios, Fevereiro de 2014,
"O Crime" deixa de ir para as bancas

sexta-feira, maio 16, 2025

Lições e eleições.

A eleição de Trump, e a trapalhada subsequente, deu-me boas lições acerca dos critérios que devo usar quando voto. A primeira é que integridade e competência não são variáveis binárias. Estão num contínuo cujo extremo negativo pode ser mesmo muito mau. Nos EUA, os democratas também fizeram asneiras e a campanha de Harris recebeu dinheiro de pessoas ricas, com os seus interesses próprios. Mas o grau de incompetência e corrupção na administração de Trump torna evidente que a alternativa teria sido melhor. Além disso, as escolhas dos eleitores vão influenciando para onde neste eixo contínuo os políticos se vão deslocando. Isto dá duas boas razões para que integridade e competência pesem na nossa decisão de voto. Primeiro, o argumento de que não há santos é irrelevante porque o que importa é o grau e há sempre uns piores que outros. E, segundo, o nosso voto não escolhe apenas o próximo mandato. Também transmite aos políticos o que queremos deles e, por isso, tolerar desonestidade e incompetência tende a agravar o problema de não haver políticos de jeito. Com estas considerações consigo descartar da minha lista partidos como o Chega, Erge-te e ADN. Nem sequer preciso de ver o que propõem porque não me dão razões para crer que iriam servir bem o país como legisladores ou membros de um governo.

Chamo a atenção para isto a quem decida não votar por achar que é tudo o mesmo. Não é tudo o mesmo. Há maus mas há piores. Se nenhum partido merece o vosso apoio votem contra os que mais merecem o vosso repúdio. Para mim, basta imaginar o André Ventura como primeiro ministro, a Joana Amaral Dias como ministra da Saúde, ou o Rui Fonseca e Castro na justiça para ir votar. Mesmo que eu não soubesse em quem votar escolhia um outro qualquer só para votar contra estes.

Este mandato de Trump mostra também o erro de procurar empresários para a política. Apesar dos conflitos de interesse e de gerir o que é seu para obter lucro ser diferente de gerir o que é público para benefício de todos, até recentemente também eu pensava que uma carreira exclusivamente política, de activismo, juventudes partidárias, sindicatos e autarquias, deixava um candidato menos preparado do que alguém com experiência de liderança no "mundo real". Mas vendo o que Trump e Musk fazem noto que a política em democracia exige uma capacidade de considerar diferentes valores e procurar consensos que é difícil de adquirir por quem se habitua a mandar. Seja empresário ou almirante. Ter políticos com experiência política já não me parece mau.

Finalmente, as políticas de Trump também me ajudaram a estabelecer prioridades pela gravidade das suas asneiras. As três prioridades para mim são a economia, o clima e a segurança internacional. Trump tem tentado criar folgas no orçamento para beneficiar os ricos. Eu acho que se tem de fazer o contrário. O progresso tecnológico está a tornar cada vez mais difícil obter capital vendendo trabalho e cada vez mais fácil investir capital sem comprar trabalho. Isto está a desequilibrar a economia e a dificultar a redistribuição pelo trabalho. Nestas condições é preciso reforçar o papel do Estado na redistribuição. A administração de Trump está mais interessada em voltar a uma economia de fábricas, petróleo e poluição sem regras do que em progredir para soluções sustentáveis. Isto é asneira. Mesmo quem julga que se vai dar bem com um aumento da temperatura global deve notar que há muitos milhões de pessoas vulneráveis às alterações climáticas em países que têm armas nucleares. A possibilidade da China, Índia e Paquistão se encherem de refugiados desesperados deve preocupar até quem não se rale com o sofrimento dos outros. Finalmente, Trump tem contribuído para enfraquecer mecanismos internacionais de estabilidade, desde ajuda humanitária à dissuasão militar. Isto não é só culpa de Trump, mas é mais uma coisa em que ele dá um exemplo extremo de irresponsabilidade, incompetência e egoísmo. É importante travar as ambições imperialistas de regimes como o da Rússia e da China e isso exige um esforço coordenado a nível diplomático e militar. Sem podermos contar com os EUA, pelo menos enquanto não se curarem do cancro político de que padecem, terá de ser a Europa a liderar.

Das opções que tenho, parece-me que o Livre é o que melhor corresponde às minhas preocupações. O BE também tem propostas alinhadas comigo na economia e no clima mas desculparem a invasão russa com a "expansão" da NATO obriga-me a penalizá-los, ou por incompetência intelectual ou por desonestidade. E agora que é o Rui Tavares a encabeçar a lista do Livre pelo meu distrito, em vez de uma Joacine, sinto-me confortável em votar neste partido.

Se não concordam com a minha escolha, votem noutro para diluir o meu voto. Mas votem. Vejam o exemplo dos EUA. Por muito mal que as coisas estejam, podem sempre ficar pior se não fizermos nada para o impedir.