quinta-feira, novembro 07, 2024

Segurança.

Nos últimos 8 anos a policia matou 13 pessoas e foram abertos 26 processos contra agentes da PSP por uso indevido de armas de fogo (1). Nos últimos 10 anos morreram 11 agentes e foram hospitalizados cerca de mil (2). Todas as mortes são trágicas mas nenhuma destas resultou em tumultos. Os criminosos são violentos, os polícias cometem erros, e o que houver aqui que possa ser melhorado certamente não o será queimando autocarros ou caixotes do lixo. A morte de Odair Moniz foi diferente. Logo pelo aproveitamento político da tragédia, à direita querendo condecorar e à esquerda acusando de "impunidade" um agente que é arguido por homicídio e, talvez mais importante, porque Odair Moniz tinha um passado de criminalidade violenta (3) e relações próximas com membros activos neste tipo de empreitada (4). Daí os tumultos.

Quando a polícia o mandou parar por uma infracção no trânsito, Moniz tentou fugir e só parou na Cova da Moura quando embateu nuns carros estacionados. Saindo do carro, continuou a ignorar as ordens da polícia, os tiros de aviso e as tentativas de o deter dizendo «‘não me toquem’, ‘tira a mão’». Segundo as testemunhas no local, onde Moniz era conhecido e respeitado, «“Ele só não queria que lhe colocassem algemas”»(5). Mas as imagens da ocorrência «mostram que houve de facto um confronto físico, com o suspeito a resistir à detenção»(6). A lei obriga a obedecer à autoridade da polícia e proíbe a polícia de disparar sobre pessoas desarmadas. Moniz possivelmente calculou que podia ignorar a primeira parte e contar que os agentes obedecessem à segunda. No seu bairro, rodeado dos seus e contra apenas dois polícias, a expectativa era favorável. Grande Moniz, com ele até a bófia baixa a bolinha. Infelizmente para todos descurou a incerteza nas acções de quem se vê aflito e tem uma arma na mão.

Tem-se apontado o racismo como factor relevante. Concordo que é plausível. Não o racismo deliberado e performativo das redes sociais mas um racismo visceral que me parece inevitável nestas condições. Uma pessoa sujeita a violência recorrente desenvolve enviesamentos contra o que o seu cérebro identifica como fonte dessa violência. Por exemplo, uma mulher vítima de violência doméstica pode ter dificuldade em confiar em homens mesmo que reconheça que, na nossa cultura, não é normal homens espancarem mulheres. Os polícias também são humanos. Se forem repetidamente expostos a ameaças, violência e confrontos físicos envolvendo pessoas de uma etnia facilmente identificável isso terá consequências quando tiverem de tomar decisões rápidas sob pressão, como disparar ou não contra um agressor.

Isto não isenta o agente de culpa. A defesa só é legítima se for proporcional, não se pode matar a tiro uma pessoa desarmada e de um agente da autoridade deve exigir-se um comportamento irrepreensível. Mas esta tragédia revela um problema de inadequação da nossa polícia. O agente de camisa e pistola ao cinto é suficiente quando a população respeita a sua autoridade e só usa a arma para defender a sua vida ou de terceiros. Mas perante pessoas desarmadas que não respeitam a sua autoridade pouco pode fazer. Praticar luta livre na Cova da Moura é arriscado e não deve usar a arma de fogo só para se impor quando não é legítimo disparar. Se Odair Moniz tivesse resistido a meia dúzia de agentes com equipamento anti-motim teria ficado com mazelas e haveria acusações de brutalidade policial mas ainda estaria vivo. Este parece ser o procedimento adoptado em zonas como a Cova da Moura mas não há recursos para que seja assim sempre que é necessário a polícia intervir, o que pode ter consequências trágicas.

O Chega propõe resolver o problema deixando a polícia a disparar à vontade mas a contenção no uso da força é fundamental para distinguir polícias de bandidos. A esquerda quer «acabar com as Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) que colocam os bairros sob intervenção militarizada»(7) mas o problema é precisamente que, nessas zonas, a actuação policial tem de ser diferente. A incidência de criminalidade violenta não é a mesma em todas as regiões e comunidades. Por exemplo, há 34 mil cidadãos de Cabo Verde legalmente residentes em Portugal (8), perfazendo 0.32% da população mas, nas prisões, são 3.6% (9) dos reclusos. É verdade que há imigrantes ilegais, pobreza e racismo mas isso não explica esta discrepância que, em imigrantes de Angola ou São Tomé e Príncipe, é apenas de 3 para 1 em vez de 10 para 1 (9, 10 e 11). Comunidades nas quais o desrespeito pela polícia é socialmente aceite e culturalmente encorajado exigem intervenção mais musculada. A polícia precisa de poder intervir com força suficiente para o fazer com o mínimo de força indispensável. Não pode ter só as opções de dar ordens ou disparar.

Este não é um problema de todos os imigrantes nem exclusivo dos imigrantes. Devemos acolher quem queira contribuir para a nossa sociedade e mesmo entre os grupos mais problemáticos há gente disposta a respeitar as nossas regras. É disparate odiar quem não é "português de sangue". Mas é desonesto disfarçar estes problemas fingindo que alterações burocráticas na concessão de autorizações de residência "provam" que imigrantes não aumentam a criminalidade (12), ou com estudos demonstrando que não há perigo que nepaleses apanhem morangos no Alentejo (13). O problema é haver comunidades em Portugal que não respeitam regras básicas da nossa sociedade. Isto causa sentimentos de injustiça e insegurança facilmente aproveitados por alguns políticos. Não se deve resolver este problema com deportações, despejos e medidas que castigam toda a família do criminoso, que não queremos ser aqui a Coreia do Norte. E também não adianta culpar tudo no racismo. É preciso incentivos positivos para se respeitar as regras, com medidas de apoio social, e incentivos negativos contra a criminalidade pelo policiamento em condições adequadas. Infelizmente, isso exige recursos e, pelo que se tem visto ultimamente, o medo, a repulsa e a inveja são politicamente mais fortes do que a vontade de investir para resolver problemas.

1- Público, Em oito anos morreram pelo menos 13 pessoas às mãos das forças de segurança
2- Executive Digest, Quantos PSP e GNR morreram em serviço nos últimos anos? E quantas pessoas perderam a vida em ações das Forças de Segurança? Os números oficiais
3- CNN,
Polícias reconhecem que não foram ameaçados de faca em punho por Odair. Vítima tinha cadastro por crimes violentos
4- Expresso, "Eles não vão parar agora"
5- Esquerda.net, Testemunhas confirmam: Odair não foi violento com a polícia
6- CNN, Agente que atingiu Odair Moniz deu versões contraditórias à PSP e à PJ
7- SIC Notícias, Movimento Vida Justa convoca manifestação em Lisboa para exigir justiça pela morte de Odair
8- GEE, População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - Cabo Verde Popular
9- Migrant Integration, EU, Indicadores de Integração de Imigrantes RELATÓRIO ESTATÍSTICO ANUAL 2023
10- GEE, pdf População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - São Tomé e Príncipe
11- GEE, População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - Angola
12- +Liberdade, Aumento da imigração vs. Aumento da criminalidade
13- Publico, Municípios com maior peso de imigrantes têm menos criminalidade