terça-feira, março 19, 2024

Viragem à direita.

O PS teve nestas eleições menos quinhentos mil votos do que em 2022. Não espanta, com os escândalos recentes e tantos anos de governação. Novidade foi a AD ganhar apenas metade disso e o CHEGA triplicar o resultado de 2022 com mais setecentos mil votos. Em parte porque os partidos da AD estão a perder para o CHEGA eleitores que gostam de autoridade, castigos, e respeitinho. É pena haver pessoas assim mas antes declarados do que à socapa em partidos supostamente sociais e democratas. Mais relevante deve ter sido o tal "voto de protesto", que me parece ser movido pelo mesmo impulso que leva o adepto de um clube a torcer por quem joga contra o clube rival. É para ver o outro perder. O PS e o PSD puseram-se a jeito disto escolhendo líderes pelos amigos que têm dentro dos partidos em vez da capacidade de mobilizar eleitores. André Ventura foi mais eficaz, em parte por ser mais fácil apontar defeitos do que propor soluções viáveis mas em parte também por ser melhor a usar os meios modernos de comunicação. Como as campanhas eleitorais fazem das eleições um circo em vez de uma colaboração para eleger representantes de todos os eleitores, agrava-se a vontade de votar como quem atira uma tarte à cara do palhaço. Mas sempre reduziu a abstenção em seiscentos mil votos. Isso é bom porque quem se abstém facilmente se ilude julgando que não tem culpa de nada. Quem votou no CHEGA vai perceber que tipo de gente ajudou a eleger. No entanto, mesmo considerando todos estes factores, o que mais me preocupa é o politicamente correcto. Mas para explicar porquê tenho de esclarecer primeiro o que quero dizer com isto.

No dia 22 de Janeiro de 1934 estreou em Moscovo a opera Lady Macbeth de Mtsensk, de Shostakovich (1). A história de Katerina envenenar o sogro, estrangular o marido com a ajuda do amante e acabar num campo penal na Sibéria foi um estrondoso sucesso. Até 1936, quando Estaline foi ver a peça que tanta gente elogiava e decidiu que atentava contra os ideais socialistas. Ficou proibida na URSS até 1961. O que eu quero dizer por politicamente correcto é o uso de poder político para interferir na expressão, pensamento e partilha de ideias. O termo "politicamente correcto" surgiu precisamente na década de 1930 para designar este tipo de coisas (2). Por cá também estamos a sofrer disto. Há leis a proibir opiniões ou informação que possa ofender certas etnias ou nacionalidades (3) e recomendações do governo para a comunicação social omitir informação sobre «nacionalidade, etnia, religião ou situação documental» de quem comete ilícitos (4). E o poder político mais fundamental em democracia é o que exercemos directamente pelo nosso direito de associação e manifestação, e também este está a ser abusado quando se organiza protestos para intimidar e "cancelar" a troca de ideias entre terceiros (5). Em democracia tem de ser permitido defender qualquer ideia. Mesmo acerca de direitos fundamentais. Por exemplo, quem defende o direito ao aborto defende que certos seres humanos não têm direito à vida. Mas leis que proibissem questionar o direito à vida, indicações do governo para a comunicação social não mencionar o aborto ou protestos organizados para impedir palestras sobre o aborto seriam abusos inaceitáveis em democracia. Porque numa democracia o poder político tem de estar subordinado às opiniões e valores de todos, o que exige liberdade para pensar e partilhar ideias. O politicamente correcto inverte isto, usando o poder político para condicionar o que as pessoas podem saber, dizer ou pensar, como se faz em ditadura.

Além da ameaça à democracia, o politicamente correcto alimenta demagogos. Há partidos que são explicitamente contra este abuso. É um dos poucos méritos do Iniciativa Liberal, por exemplo. O CHEGA não é um destes partidos e André Ventura até já defendeu precisamente este tipo de medidas (6). Mas esta pressão para reprimir certas opiniões amplia o efeito do "ele diz as verdades" e a multa de 438 euros e 81 cêntimos que André Ventura pagou pelo que publicou sobre ciganos foi o melhor investimento que fez em campanha eleitoral (7). Isto fez muita gente cuja opinião tentam reprimir identificar-se logo com Ventura mesmo discordado dele em muitas coisas. O politicamente correcto também mina a confiança nas instituições. Por exemplo, o sistema judicial tem certamente registada a nacionalidade de arguidos e condenados mas a lei proíbe divulgar informação que possa ofender alguém pela sua nacionalidade. Assim, qualquer correlação entre uma nacionalidade e algum tipo de crime tem de ficar oculta ou ser diluída em categorias genéricas como "estrangeiros" e sempre que há coisas que não nos dizem levanta-se a suspeita de que nos estão a esconder más notícias por serem politicamente incorrectas.

É tentador culpar "fachos" e racistas por esta viragem à direita. E concluir daí ser preciso reprimir ainda mais para ganhar "a luta". Mas a democracia não é um combate. É um trabalho de equipa. É o processo pelo qual encontramos consenso precisamente para evitar repressão e violência. Mas muita gente que assiste a pancadaria nos centros de saúde, é vítima de furtos ou roubos, tem problemas com certos vizinhos e muitas outras queixas, que sempre houve e sempre haverá, agora é acusada de racismo ou xenofobia se tenta trazer o seu caso a público. Negar às pessoas o direito de dizer claramente o que as preocupa aumenta o poder da insinuação e da demagogia. E cria ressentimentos que se reflectem no voto, onde ainda não as podem silenciar. Vê-se isto nos EUA, no Reino Unido e por toda a Europa. É preciso rever esta hipótese atraente de que o problema está só nos outros, ou porque dizem o que não devem ou porque dão ouvidos a quem não merece. Deixar as pessoas falarem não resolve tudo mas incentiva todos a proteger a democracia. Abusar do poder político para impor opiniões tira esse incentivo a muita gente e empurra votos para quem souber aproveitar-se do descontentamento.

1- Wikipedia, Lady Macbeth of Mtsensk (opera)
2- Wikipedia,
Political correctness
3- PGD Lisboa, Lei n.º 93/2017, de 23 de Agosto
4- CICDR, Posição sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social.
5- DN, Palestra de Jaime Nogueira Pinto cancelada devido a ameaças
6- DN, Ventura imita Trump e também quer censurar Twitter
7- Público, André Ventura multado em mais de 400 euros por discriminar ciganos

sexta-feira, março 08, 2024

O CHEGA.

Durante uma campanha eleitoral abundam os truques de propaganda e demagogia, dos quais todos os partidos, infelizmente, são culpados. Mas o CHEGA destaca-se pela vantagem que tem em dois dos mais importantes: a repetição de mensagens simples, emocionalmente carregadas, e a defesa de posições ambíguas com que o maior número de eleitores julgue concordar.

A razão para isto é que a generalidade dos partidos congrega pessoas com uma visão mais ou menos alinhada de como a sociedade deve ser. Seja comunismo, socialismo, liberalismo, democracia social ou o que for, a missão de um partido normal é convencer os eleitores a apoiar essa visão. E isto obriga a explicar alguma coisa acerca do que querem fazer. O CHEGA é diferente. Como sugere o seu nome e origem, o CHEGA é um partido de protesto que se caracteriza por ser contra. Contra ciganos, corrupção, imigrantes, modernices, o que for, desde que seja contra. Isto reflecte-se no ambiente interno conturbado, com entradas e saídas frequentes por falta de qualquer cola além do discurso revoltado do líder. E nota-se explicitamente nos princípios do partido (1), que se diz contra «todas as formas de totalitarismo», «a criminalidade hedionda e violenta», «todas as formas de racismo, xenofobia e de qualquer forma de discriminação» e o «actual sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado», entre outras coisas das quais ninguém é a favor, que são difíceis de resolver mas que é muito fácil ser contra. E o que diz defender, como a liberdade e a «dignidade da pessoa humana», é suficientemente banal e vago para se poder dedicar ao protesto e a dizer que é tudo uma vergonha sem ter de explicar a utilidade das suas propostas em concreto.

Um exemplo disto é a solução do CHEGA para a corrupção: aumentar as penas, dar mais poderes à investigação e proibir políticos corruptos de se recandidatarem. São propostas simples, fáceis de entender e que ficam bem em qualquer debate. Mas não resolvem os problemas principais. Por um lado, a aceitação cultural da corrupção, como a prática da cunha, do amiguismo e do jeitinho, e até uma certa admiração por corruptos. Ele rouba mas faz. Proibir corruptos de se candidatarem não resolve o problema fundamental de haver tanta gente a votar neles. E, por outro lado, a lei só afecta corruptos incompetentes porque a principal corrupção é legal. Por exemplo, deputados trabalharem para entidades privadas. É corrupção descarada, mas legal, que legisladores sejam pagos por interesses privados enquanto, supostamente, representam os eleitores no Parlamento. Os partidos da esquerda tendem a exigir exclusividade dos seus deputados mas a lei não o obriga e, à direita, é comum deputados trabalharem para empresas. Incluindo no CHEGA. O próprio André Ventura o fez durante vários meses apesar de ter prometido que não o faria (2). Sem motivação para resolver problemas, o CHEGA pode escolher propostas unicamente para propaganda.

Outra vantagem de não ter uma ideologia coerente é que o CHEGA pode ser ambíguo, ou até contraditório, no que defende. A interpretação fica ao gosto de cada potencial eleitor. Por exemplo, nos seus princípios o CHEGA defende a liberdade, um Estado mínimo que deve ser «neutro nas questões religiosas» e repudia explicitamente «todas as formas de racismo, xenofobia e [...] qualquer forma de discriminação». Mas afirma também que o Estado deve reconhecer e respeitar «o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica na estruturação da civilização europeia», que deve exigir de qualquer imigrante «a adopção plena da cultura portuguesa» e que é «indispensável a clara opção por populações com raizes em culturas semelhantes à nossa pelos recém-chegados». Cada um pode concluir daqui o que quiser. Partidos normais, comprometidos com ideologias explicitas e já conhecidas, têm menos liberdade para fazer isto e muitos estão a perder votos para o CHEGA precisamente porque não podem apresentar os seus princípios como um buffet onde cada um petisca o que lhe apetece.

Obviamente, isto só serve para caçar votos. Depois não há um plano concretizável ou sequer uma ideologia consistente que oriente o partido. Como se viu com o Brexit, com Trump ou Bolsonaro, são votos perdidos em pessoas que só querem maximizar o seu proveito pessoal. E, a prazo, isto reforça a ideia de que os políticos não prestam e são todos a mesma coisa. É uma profecia que se faz cumprir a si mesma porque quanto mais eleitores pensam assim menos se preocupam em distinguir entre propostas políticas viáveis e banha da cobra, beneficiando a propaganda demagógica e agravando o problema.

Este problema não pode ser resolvido pelo sistema. É fundamental em democracia que cada um vote como quer. Portanto, tem de ser resolvido individualmente, por cada eleitor. Por isso proponho o seguinte exercício a quem pondera votar no CHEGA por achar que, sendo os políticos todos a mesma treta, ao menos estes dizem algo diferente. Se assumimos serem todos a mesma treta não podemos julgar que André Ventura, depois de 17 anos no PSD, ou os seus companheiros vindos do PNR, PPV/CDC e outros movimentos de extrema direita são mais virtuosos e honestos do que os políticos dos outros partidos. Sob esta premissa, o que sobra para distinguir entre partidos será apenas a ideologia que move os políticos de cada um. O exercício é descartar a demagogia das teses contraditórias ou vagas que o CHEGA deixa à interpretação do eleitor e tentar identificar o cerne ideológico do partido. A mim parece-me que, filtrado o ruído, apenas sobra um nacionalismo visceral e um racismo mal disfarçado como linhas orientadoras deste partido. E isso, espero eu, representa muito menos eleitores do que aqueles que temo irão votar CHEGA no próximo Domingo.

1- Partido CHEGA, Declaração de Princípios e Fins
2- Wikipedia, André Ventura