Treta da semana (atrasada): criptomoeda, parte 1.
A popularidade de “criptomoedas” como a Bitcoin tem estimulado muita crítica, proselitismo e opinião. E, como é inevitável, muita treta. Dá para dois posts, pelo menos, começando logo pelo nome.
Uma moeda é um meio de troca com suporte legal. O Euro é moeda porque a lei favorece o seu uso no comércio e no sistema bancário e o Estado aceita, e usa, euros para saldar dívidas. Neste sentido, uma “criptomoeda” não é moeda. Nem sequer é especialmente “cripto”, porque usar criptografia para autenticar agentes e garantir a integridade de registos não é novidade nenhuma. O que distingue as “criptomoedas” é a listagem de transacções ser pública e permitir que qualquer participante acrescente registos. Esta listagem pública – a blockchain – elimina a necessidade de confiar numa autoridade central que decida quem tem o quê. Muitos criticam a Bitcoin pela electricidade gasta a proteger as transacções, mas parece-me ser um preço aceitável para não pôr tudo nas mãos de um Ricardo Salgado ou uma Lehman Brothers.
A crítica mais comum às “criptomoedas” é a de que o seu valor é especulativo, alegadamente ao contrário de uma moeda fiduciária como o Euro. Esta crítica é parcialmente correcta. Se dou 20€ por um bilhete para ver o espectáculo, estou decidir que, para mim, ver o espectáculo vale mais que 20€. Isto não é especulativo porque eu sei o que prefiro. Mas se dou 20€ pelo bilhete contando vendê-lo por 30€ à porta do pavilhão, o valor que dou ao bilhete será parcialmente especulativo porque depende de especular acerca do valor que outros lhe darão. Pode até ser totalmente especulativo se eu não tiver interesse nenhum no espectáculo. Neste sentido, é verdade que o valor das “criptomoedas” é principalmente especulativo.
Onde esta crítica falha é em julgar que o Euro é diferente. Não é. É verdade que, por ser moeda, o Estado garante que o aceita para saldar dívidas, como impostos e taxas. Mas pagar impostos não tem um valor positivo e se fosse essa a única utilidade do Euro ninguém iria querer euros. Apesar de, colectivamente, todos beneficiarmos por todos pagarem impostos, individualmente é sempre preferível deixar os outros pagar. Por isso, só damos valor aos euros porque especulamos que outros irão dar valor a esses euros, no futuro, quando os quisermos trocar por outra coisa. É essa confiança especulativa num valor futuro, e não a mera garantia do Estado, que nos faz dar valor a moedas como o Euro. E a “criptomoedas” como a Bitcoin.
Isto é contra-intuitivo porque a utilização ubíqua de moeda no mercado faz parecer que o valor da moeda está objectivamente ligado aos bens e serviços transaccionados no país. Normalmente, é a proporção entre a quantidade de dinheiro em circulação e o tamanho da economia que determina a inflação. Mas isto só acontece enquanto a maioria especular que os outros continuarão interessados nessa moeda. Quando falha a confiança, o valor da moeda desliga-se do resto da economia. Por exemplo, a Venezuela produz petróleo. Se o preço do Bolívar estivesse preso aos bens que a Venezuela produz, qualquer país aceitaria bolívares porque poderia trocá-los por petróleo na Venezuela. Mas não é isso que acontece. Ninguém quer vender coisas à Venezuela em bolívares porque o valor presente do Bolívar não é função daquilo que a Venezuela tem agora para vender. É função da expectativa – especulativa – de quanto se poderá comprar no futuro com esses bolívares. Neste momento, ninguém especula que seja grande coisa.
É verdade que o Estado tem algum poder para manter os cidadãos presos à sua moeda. Se eu recebo em euros e o supermercado vende em euros, é mais difícil eu desistir do Euro do que da Bitcoin. Mas se bem que isto sirva para pressionar a maioria das pessoas a usar a moeda oficial do país, a maior parte do capital está concentrada numa minoria que facilmente escapa a esta pressão. Um dos primeiros sintomas do desmoronamento de uma moeda é a fuga de capital quando os ricos se descartam dela antecipando – e contribuindo para – o seu colapso. Este é um problema que afecta qualquer “criptomoeda” mas que afecta também qualquer moeda. Há diferenças de grau, tal como há diferenças entre entre o Euro e o Bolívar, mas o valor de uma moeda fiduciária é, fundamentalmente, tão especulativo quanto o de uma “criptomoeda”.
Ou até mais. Para mim, a “criptomoeda” – ou, melhor dizendo, a participação num sistema aberto e descentralizado de registo de transacções – tem algum valor próprio, além do especulativo. Acho interessante a ideia e a implementação. Foi esse interesse que me fez investir nisto há uns anos. Não foi para especular e vender. Era o meu bilhete para o espectáculo. É verdade que, neste momento, esse valor é residual comparado ao seu valor especulativo, ordens de grandeza maior. Mas isso apenas aproxima as “criptomoedas” de moedas como o Euro e o Bolívar, que nem aquele valor próprio residual têm. Além disso, o nosso controlo sobre os euros no banco é bastante menor do que o controlo sobre bitcoins, como ficou demonstrado no Chipre em 2013 e como, suspeito, será ainda mais evidente em breve (1).
No entanto, apesar de achar que muitas das críticas que fazem a este sistema serem treta e de ver algumas vantagens em ter sistemas distribuídos de registo de transacções, não recomendo a ninguém que arrisque nisto dinheiro que lhe vá fazer falta. Porque, do outro lado, também há tretas que merecem consideração. Mas isso fica para a segunda parte.
1- Reuters, 2017-07-28, EU explores account freezes to prevent runs at failing banks