Treta da semana (atrasada): viva os ricos.
Helena Matos pergunta o que os pobres ganhariam se os oito mais ricos do mundo não fossem tão ricos. A resposta é taxativa: «não só os pobres não ganhariam nada com isso como seríamos todos mais pobres»(1). Justifica a conclusão por este homens terem inventado negócios, dado trabalho a muita gente e financiado projectos de investigação e solidariedade. Mas não esclarece com que cenário alternativo compara esta acumulação de riqueza.
Tomemos como exemplo Bill Gates e a Microsoft. Se tudo o que Gates organizou desaparecesse, haveria dezenas de milhares de desempregados e milhões de computadores, tablets e telemóveis sem sistema operativo. Mal por mal, antes um Bil Gates com 80 mil milhões de dólares. Mas esta comparação é pouco realista. Compare-se o mercado do computador pessoal com o mercado de servidores na Internet, onde domina o software aberto, como o Apache e o Nginx (2), o que dá negócio a muitas empresas pequenas em serviços de instalação, formação e alojamento. Se isto tivesse substituído a gigantesca Microsoft, o Bill Gates estaria menos rico mas todos estaríamos melhor servidos. Haveria mais concorrência, menos fuga aos impostos, uma distribuição melhor das decisões e nunca teria existido o Windows Vista. A alternativa realista a estas super-empresas multinacionais não é um buraco negro. É um ecossistema económico saudável, e foi precisamente isso que levou o Supremo Tribunal dos EUA a fragmentar a Standard Oil em 1911 (3).
Mas o problema da concentração excessiva de riqueza não é meramente económico. É também um problema de concentração de poder. Há uns anos, a Gawker publicou um artigo revelando que Peter Thiel, um bilionário de Silicon Valley, é homossexual. Thiel dedicou-se a financiar secretamente processos em tribunal contra essa empresa até que, no ano passado, a Gawker acabou por falir. Mesmo que o modelo de negócio da Gawker seja questionável – uma espécie de Correio da Manhã – isto revela o enorme poder de quem tem muito dinheiro disponível para fazer o que quiser (4). Para dar uma ideia da escala, em 2017 Portugal precisa de vender cerca de quinze mil milhões de euros de dívida pública para manter os seus compromissos com os credores. Isso é um quinto da fortuna que Bill Gates tem à sua disposição. Teoricamente, se Bill Gates quisesse, com uma fracção do seu dinheiro podia manipular o mercado de dívida pública portuguesa e pôr-nos novamente a depender do FMI. Além das questões económicas de empregos e impostos, temos também de questionar se é sensato dar tanto poder a indivíduos.
Uma resposta imediata é que não importa porque os 80 mil milhões de dólares são dele e temos de respeitar os seus direitos de propriedade. Mas isto ignora uma diferença fundamental entre os remediados e os muito ricos. A maioria dos que têm alguma coisa tem pouco mais que bens pessoais. A casa, a roupa, o carro e assim. Para estes, o direito de propriedade é pouco mais que o direito de ser deixado em paz. Para eu usufruir do que é meu basta que não me chateiem. Mas para “ter” aqueles 80 mil milhões de dólares, Gates precisa do poder para fazer cumprir uma enorme rede de contratos, coagindo os empregados e advogados da Fundação Gates a zelar pelos interesses do patrão e uma data de empresas a entregar-lhe dividendos e reconhecer os seus títulos de propriedade. Mesmo numa ilha deserta, Gates seria dono e senhor da sua roupa, da sua casa e do seu carro. Mas sem esse poder que o Estado lhe concede não conseguiria controlar uma fundação nem deter 2.14% da Companhia Nacional Ferroviária Canadense. Esta forma de propriedade é muito diferente daquela a que estamos habituados. Não deriva de direitos pessoais do proprietário e depende totalmente do poder para obrigar outros cumprir contratos, um poder que o Estado disponibiliza na forma de leis, tribunais, polícias e prisões.
Esta diferença é importante para responder à pergunta de Matos. Porque, enquanto que o Estado tem um dever moral de garantir os direitos à propriedade pessoal, coagindo as pessoas a não roubarem, ocuparem ou destruírem é de outrem, não existe um dever moral de coagir as pessoas a cumprir contratos. Essa coação só é justificada pelo benefício que nos traz a todos ao permitir o comércio de bens e serviços. Assim, o Estado só deve coagir o cumprimento de contratos quando fazê-lo beneficia a sociedade e não para favorecer uns em detrimento dos outros. É por isso que o Estado não reconhece contratos de compra e venda de rins, limita penhoras e regula contratos de trabalho, entre outras coisas. Não vale tudo. Ao contrário da protecção da propriedade pessoal, que zela por direitos do indivíduo, a coação do cumprimento de contratos só deve servir o interesse colectivo.
A questão pertinente não é o que ganhariam os pobres se Gates fosse menos rico. É o que ganharíamos todos se o Estado fosse mais criterioso naquilo que obriga uns a fazer no interesse de outros. Sendo óbvia a necessidade de limitar o uso privado do poder coercivo do Estado, a questão importante é que limites mais nos beneficiam a todos. Mesmo não conseguindo dar uma resposta exacta, parece-me claramente excessivo dar a um indivíduo o poder para controlar 80 mil milhões de dólares, o equivalente a um terço da dívida pública portuguesa. Seria melhor que o Estado não disponibilizasse a ninguém o poder coercivo necessário para chegar a tal extremo.
Editado no dia 29 de Janeiro para corrigir o nome da Helena Matos, a quem peço desculpa por ter chamado Helena Santos. Obrigado por me terem apontado o erro.
1- Helena Matos, E se os oito mais ricos deixassem de ser tão ricos o que ganhavam os pobres com isso?
2- Netcraft, February 2016 Web Server Survey
3- Wikipedia, Standard Oil
4- This Silicon Valley Billionaire Has Been Secretly Funding Hulk Hogan's Lawsuits Against Gawker