Treta da semana (atrasada): burkini.
A proibição do burkini em algumas praias francesas (1) suscitou uma onda de críticas por, alegadamente, atentar contra a liberdade das pessoas, ser racista e coisas assim. Se bem que me pareça uma medida pouco eficiente, exigindo demasiada fiscalização para tão pouco proveito, acho que as críticas falham o alvo por descurarem implicações importantes da vestimenta.
Por exemplo, Inês Ferreira Leite escreve que se «a proibição da burca ou burkini [fosse] questão de laicidade, então teríamos que proibir qualquer veste ostensivamente religiosa. Contudo, as freiras católicas não estão proibidas de usar o hábito [nem] os monges budistas [proibidos de usar] seus trajes laranjas»(2). Isto omite uma diferença importante. Mesmo entre os fiéis destas religiões, quem não quer ser freira nem monge veste-se como quiser. Mas se Leite for à Arábia Saudita, ao Irão ou ao Afeganistão, irá notar que no Islão as coisas são diferentes.
Leite propõe também que «não é proibindo manifestações religiosas que conseguimos domesticar uma religião organizada de modo a que esta possa conviver com a laicidade, o secularismo e a liberdade individual.» É verdade que proibir não serve para isto. Mas Leite está a assumir que o problema é com o Islão enquanto religião, no sentido moderno do termo. Hoje, pensamos na crença religiosa como algo pessoal, naturalmente separada do Estado e produto da liberdade de acreditar, ou não acreditar, no que cada um bem entender. Foi nisso que se transformou o cristianismo europeu, a muito custo e ao fim de séculos. Mas o Islão é uma religião à moda antiga. É uma mistura de crença religiosa e movimento político e a maioria dos muçulmanos não aceita a laicidade do Estado nem respeita a liberdade individual de crença. Uma católica vestida de freira mostra-me que devo ensinar a minha filha a pensar por si para não cair em contos do vigário. Mas uma muçulmana de niquab manifesta um ideal social e político que, se vingar, será imposto à minha filha e a todas as pessoas. É este o problema do burkini.
Também é popular alegar que proibições destas são islamofobia, discriminação e racismo. Racismo não é porque não depende da raça de ninguém. Mas é islamofobia e discriminação. No entanto, é justo discriminar contra quem quer coagir ou intimidar os outros. E se milhões de pessoas querem impor aos outros aquilo que julgam ser leis divinas, justifica-se ter medo. Eu tenho fobia do Islão como tenho fobia da dinastia Kim, da ditadura de Erdogan e do comunismo chinês. Não é por ser contra uma crença pessoal mas por ter medo que consigam impor essas coisas onde me faça diferença. Enquanto o Islão não se assumir consensualmente como opção pessoal permanecerá uma ideologia política perigosa, merecendo discriminação e fobia.
Finalmente, o argumento da liberdade. Leite aponta que é difícil dizer se as mulheres que andam de burka ou burkini o fazem por escolha livre, porque foram obrigadas ou porque foram condicionadas a vestir-se assim e traça um paralelo entre a burka e os saltos altos, operações plásticas e coisas que tais a que as mulheres se sujeitam por pressão social. Realmente, a “liberdade” de escolher tem que se lhe diga. Eu acho que uma saia deve ser mais confortável do que calças quando faz calor mas, sendo homem, sinto-me inibido de ir dar aulas de saia. Não sou muito livre nessa escolha. Mas entre a burka e os saltos altos há duas diferenças importantes. Primeiro, a mulher que usa saltos altos não o faz por convicção de ser um dever de todas as mulheres usar saltos altos. E, em segundo lugar, as mulheres que usam niquab, burkini e essas coisas fazem-no enganadas com a história de um deus que exige que se vistam assim. Há uma diferença fundamental entre escolher, mesmo que sob pressão, e ser vítima de fraude.
Eu não sei se é boa ideia proibir o burkini e até sou contra proibições que não sejam bem justificadas. Mas é errado apresentar este problema como uma ingerência na liberdade religiosa ou no direito de escolher o que se veste. O burkini foi claramente concebido para se distinguir dos fatos de mergulho que os surfistas usam e das toucas de borracha dos nadadores. Está feito para dizer “Islão!” a qualquer pessoa que olhe. E este Islão não é uma religião no sentido moderno de opção pessoal que cada um pode ter ou não ter conforme queira. É uma ideologia política medieval que executa apóstatas, prende ateus e castiga mulheres que não se vistam segundo as regras da religião. Por isso, proibir o burkini na praia é uma decisão que regula como se pode promover publicamente uma ideologia política. Para mais, contrária aos princípios que regem a nossa sociedade. É análogo a proibir que se ande na praia com suásticas na camisola ou com bandeiras a dizer que os homossexuais merecem o inferno. Se bem que proibir estas coisas seja ineficaz para combater tais ideologias, também não restringe nada que caiba inteiramente na esfera das liberdades pessoais e pode ser uma forma razoável de gerir um espaço público que a maioria das pessoas quer politicamente neutro. Não quer dizer que seja sensato proibir o burkini. Admito que até possa ser asneira. Mas é neste contexto da regulação do activismo político num espaço público que esta proibição deve ser criticada. Em vez de se fingir que, numa religião como o Islão, estes preceitos são vividos apenas como uma escolha pessoal.
1- The Guardian, Nice becomes latest French city to impose burkini ban
2- Capazes, Quão livre é ser livre?