Treta da semana (atrasada): a derrota.
Apesar da influência da Igreja Católica, a Irlanda aprovou por referendo o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, considerou o resultado «uma derrota para a humanidade»(1). Infelizmente, não explicou porquê. É consensual que a relação entre duas pessoas que constroem uma vida em conjunto deve ter reconhecimento legal. É também consensual que não se deve discriminar contra alguém em virtude de atributos físicos como a cor da pele* ou o sexo. Por isso, a tese de que duas pessoas devem ser proibidas de casar em virtude do seu sexo teria de ser muito bem justificada. Ratzinger tentou fazê-lo apelando à Bíblia e à doutrina católica e concluindo que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque representa a «aprovação de comportamento depravado» e «obscurece valores básicos que pertencem à herança comum da humanidade»(2). No entanto, fundamentar esta tese em crenças religiosas torna-a irrelevante para legislar numa sociedade laica. Além disso, um dos valores básicos mais importantes na nossa sociedade é o de que a lei seja igual para todos, independentemente da raça, credo ou sexo. É legítimo que a Igreja Católica não queira celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo tal como não celebra casamentos entre muçulmanos ou budistas. Mas, tal como isto não diz nada acerca da legislação do casamento entre pessoas de outras religiões, também é irrelevante para a legalização do casamento homossexual.
No Senza Pagare, o João Silveira tenta uma abordagem diferente, menos assente em premissas religiosas. Segundo Silveira, o «debate deste tema na opinião pública está completamente viciado»(3) porque se propagou a ideia de que «A atracção por pessoas do mesmo sexo é genética […] É uma coisa natural e boa em si mesma [ e ] Essa pessoa só será feliz com uma pessoa do mesmo sexo.» Tenta então refutar estas ideias como se a sua refutação bastasse para justificar uma lei que impeça pessoas de se casarem em virtude do seu sexo. Começa por afirmar que «Tanto quanto sabemos a atracção por pessoas do mesmo sexo não é genética.» Além disto carecer de um fundamento empírico e de ser pouco plausível – não deve ser mera coincidência que a maioria das mulheres se sinta atraída por homens e a maioria dos homens sinta atracção por mulheres, sugerindo que os genes têm alguma influência nisto – este ponto é, acima de tudo, irrelevante. O que é relevante é que a orientação sexual não resulta de uma decisão livre. Tanto faz se é por causa dos genes se por cantar músicas do Frozen (4).
Silveira explica que «A atracção por pessoas do mesmo sexo não é natural», apesar da homossexualidade ser comum em muitos animais, «porque nós somos racionais» e porque «o homem foi feito para a mulher a mulher para o homem, isto é visível em primeiro lugar nos nossos corpos». No entanto, a complementaridade geométrica dos órgãos sexuais é visível também nos outros animais e a orientação sexual não tem nada que ver com racionalidade porque não resulta de uma decisão racional. Finalmente, Silveira alega que «Quem procura a felicidade numa relação com uma pessoa do mesmo sexo está à procura da coisa certa no lugar errado.» É legítimo que Silveira tenha essa opinião mas é apenas a sua opinião. Não justifica que a lei discrimine os nubentes quanto ao seu sexo. Silveira escreve também que «afirmar que quem é contra o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é como se fosse racista é um disparate de todo o tamanho» porque «uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo nasce sempre da vontade dos envolvidos» enquanto que «uma característica física, como por exemplo a cor da pele, não envolve a vontade do visado». Precisamente. O sexo com o qual nascemos também não resulta da nossa vontade, pelo que proibir pessoas de casar por causa do seu sexo é como proibi-las de casar por causa da sua raça. Eticamente, o problema é análogo.
Finalmente, Silveira argumenta que não se deve permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo porque «um casamento só pode acontecer entre um homem e uma mulher» e «o Estado apenas tem autoridade para legislar o casamento entre duas pessoas de sexo diferente». Mas isto é precisamente o que está em causa. Aparentemente, quando se vê forçado a fundamentar a sua posição, quem defende que se impeça o casamento entre pessoas do mesmo sexo não consegue dizer melhor do que sim porque sim.
Ao contrário de católicos como Silveira, Parolin e Ratzinger, muitos católicos irlandeses perceberam que, no que toca a leis, não importa o que está na Bíblia ou se é pecado um homem ter relações sexuais com outro homem**. O que importa é que a relação entre duas pessoas que vivem em conjunto não se reduz à mera complementaridade genital ou à reprodução. O que a lei deve reconhecer é o afecto, a confiança mútua, a cumplicidade, a partilha e os projectos em comum. No cômputo geral, o que fazem na cama e o que enfiam onde é irrelevante. Além disso, os valores básicos da nossa sociedade são incompatíveis com leis que discriminem as pessoas pelo seu sexo para negar a uns aquilo a que outros têm direito. Silveira alega que «A família sempre foi o último reduto de defesa da liberdade pessoal». É falso. A pessoa é que é o último reduto da liberdade pessoal e o que está aqui em causa é a liberdade de cada pessoa constituir a sua família como bem entender. Mesmo que os silveiras discordem.
* Em alguns estados dos EUA, o casamento interracial foi ilegal até 1967 (Wikipedia).
** A Bíblia é omissa quanto às mulheres.
1 – Guardian, Vatican says Ireland gay marriage vote is 'defeat for humanity'
2 – Staycatholic.com, Truth and Love: The Vatican Document on Same Sex Marriage
3 – Senza Pagare, A batalha contra o "casamento gay" está perdida?
4 – Time, Pastor Claims Frozen Will Turn Your Children Gay.