domingo, abril 29, 2012

Treta da semana: a Igreja social.

Nos comentários da treta da semana passada, o meu primo Luís Miguel Sequeira afirmou que «Se a ICAR fosse abolida em Portugal, o orçamento da Segurança Social teria de duplicar.»(1) Isto veio a propósito da possibilidade de Portugal denunciar a Concordata, o que não implicaria abolir religião nenhuma. Apenas deixaria a Igreja Católica ao nível de qualquer outra religião reconhecida pela Lei da Liberdade Religiosa. Mas a questão é interessante, e já ouvi muitas pessoas a dizer isto. No entanto, nunca com dados concretos que confirmassem tal estimativa. Por isso, pedi ao Miguel que apresentasse alguns números que fundamentassem. Segundo o Miguel, «O orçamento da ICAR tinha, em 2009, na parte das receitas cerca de 90 milhões de Euros; como todas as entidades sem fins lucrativos, isto significa que as despesas são sensivelmente as mesmas», e «59% [vem do Orçamento do Estado] (tal como acontece na maior parte das IPSS), o que significa que na realidade parte do orçamento da ICAR para acção social já vem do OE. Mas há 41% que não vêm.» O Miguel acrescenta que os custos da Igreja Católica são mais baixos do que os da Segurança Social porque «tem voluntários e membros que não são pagos de todo; e porque tem uma estrutura menos burocrática para administrar tudo», mas nota que há muitas instituições de solidariedade social que seguem o mesmo modelo.

Se estes valores estiverem correctos, o dinheiro envolvido na acção social da Igreja Católica equivale a menos de três milésimas dos 35 mil milhões de euros orçamentados para prestações sociais em 2012 (2). Mesmo assumindo que a Igreja Católica aplica o dinheiro de forma mais eficiente do que o Estado, dificilmente estas três milésimas irão equivaler a todo o resto, de tal forma que se tivesse de duplicar o orçamento da Segurança Social, de cerca de 21 mil milhões de euros, se a Igreja Católica fechasse as portas.

No entanto, é possível que estas contas subestimem os valores envolvidos. Em 2012, o Estado irá transferir 1.200 milhões de euros para as Instituições Privadas de Solidariedade Social, e é provável que uma fatia substancial desta verba vá parar a IPSS associadas à Igreja Católica. Ainda assim, o valor será uma pequena fracção das prestações sociais orçamentadas pelo Estado e, além disso, é dinheiro que o Estado dá à Igreja Católica, e não o contrário.

Outro problema é a questão da eficiência. Admito que, recorrendo a voluntários, se pode distribuir mais sopa aos pobres por menos dinheiro do que se tivermos de contratar profissionais para o fazer. No entanto, esse tipo de acção social é uma fatia muito pequena do bolo. Muito mais importante do que isto são as transferências directas para os beneficiários na forma de pensões, subsídios, abonos e outros apoios monetários. Para isto o voluntariado é irrelevante. Tal como é para outros serviços que o Estado garante e que são fundamentais para a sociedade. O voluntariado não serve para organizar a educação pública, serviços de saúde, justiça e infraestruturas de transportes, comunicações, energia e saneamento básico à escala nacional, e o impacto destes serviços é muito maior do que o da caridade. Caridade, aliás, que não é monopólio da Igreja Católica. É provável que, mesmo sem a Igreja Católica, houvesse outros dispostos a usar o dinheiro do Estado para financiar obras de caridade. Nem é claro que a Igreja Católica seja a melhor escolha, a julgar pela opinião de Jardim Moreira, padre e presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal (3).

Portanto, pela diferença de duas ou três ordens de grandeza entre o investimento público e a caridade co-financiada pelo Estado, parece-me obviamente falsa a alegação do Miguel. A Igreja Católica tem um peso insignificante na acção social em Portugal e está longe de ser insubstituível.

Além disso, há um problema ético de fundo nesta transferência de dinheiro público para as instituições de caridade, por muito pouco peso que tenha no orçamento do Estado. Quando o Estado paga o nosso tratamento hospitalar, a nossa educação, a nossa pensão de reforma ou invalidez, o subsídio de desemprego ou o abono de família, está a dar-nos o que é nosso de direito. Quando contribuímos com os nossos impostos para redistribuir a riqueza que a sociedade produz em conjunto, estamos a cumprir o nosso dever. Isto é justiça. Mas quando o Estado dá dinheiro dos contribuintes a instituições de caridade transforma a justiça em esmola. Isto é injusto para o beneficiário, que recebe o que é seu de direito, ou até menos do que isso, mas como se lhe fizessem um favor. E é injusto para o contribuinte, que deu esse dinheiro por dever para agora ser distribuído como caridade em nome de um deus, dos santos ou do padre que os representa.

1- Comentário em Treta da semana: a Concordata.
2- Relatório do Orçamento do Estado para 2012 (pdf).
3- Visão, "A igreja não é uma sucursal do Estado".

sábado, abril 28, 2012

Equívocos, parte 15. Fundamental e dramático.

O Alfredo Dinis explicou porque julga ser «Equívoco fundamental» do ateísmo «estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião»(1). Alegando que os ateus escrevem com «uma extrema agressividade», publicam muitos livros, dizem que a religião faz mal e acham que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e] a inteligência está toda do lado dos ateus», o Alfredo conclui que «A missão dos não crentes é só uma: anunciar a boa notícia de que Deus não existe» com o objectivo de «erradicar a religião». Como, segundo o Alfredo, as críticas dos ateus ou são irrelevantes ou são positivas para “a religião”, é um equívoco dos ateus criticar publicamente a religião «porque pensando que estão a destruir a religião com as suas críticas, a sua acção acaba por ter um efeito positivo ou neutro». Isto, acrescenta o Alfredo, é «objectivamente dramático»(2).

Antes de passar às premissas, começo pela confusão principal. “Ateu” designa quem rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões, para o distinguir do crente, que rejeita as alegações sobrenaturais de todas as religiões menos uma. Isto não tem nada que ver com escrever livros, blogs, ou dizer que a religião faz mal. Se eu deixasse de escrever ou falar sobre religião continuava a ser ateu. Seria um ateu calado, mais ao gosto do Alfredo, mas um ateu à mesma. Portanto, a alegada incapacidade desta contestação “beliscar a religião” não poderia ser um equívoco fundamental do ateísmo. No máximo, seria uma falha de comunicação.

No entanto, a premissa de que os argumentos dos ateus nunca “beliscam” a religião é difícil de aceitar. Desde os posts do Alfredo a alegar que não há nada aqui para ver às homilias do José Policarpo apontando o ateísmo como «o maior drama da humanidade»(3), há muitos indícios de beliscadela. Além disso, “religião” é um termo demasiado vago. Julgo que o Alfredo concorda que muitos argumentos científicos, que não invocam qualquer deus, beliscam dolorosamente as teses religiosas dos criacionistas. Ou as teses de que Atena nasceu da cabeça de Zeus, o deus escaravelho Khepra rebola o Sol pelo céu e Thor causa trovoadas com o Mjolnir. Basta um pingo de cepticismo para pôr também em causa muitas teses centrais da religião do Alfredo, desde a ressurreição de Jesus à assunção de Maria, infalibilidade papal ou a convicção de que só homens, e nunca mulheres, podem deter o poder mágico de benzer, transubstanciar e celebrar missas. A insistência numa vaga “religião”, sem nunca defender dogmas católicos em detalhe, faz-me suspeitar que o próprio Alfredo teme um beliscão.

Segundo o Alfredo, os ateus julgam que «os crentes são todos uns grandes ignorantes [e que] a inteligência está toda do lado dos ateus». Mais do que falso, isto é absurdo. Se fosse essa a minha opinião de todos os crentes não discutiria com nenhum deles. Não valeria a pena. Faria apenas o que faço com alguns criacionistas, que é criticar os seus disparates sem encetar grandes diálogos com eles, visto ser claro que não querem considerar os factos nem ter conversas inteligentes. Com o Alfredo passa-se o contrário; só esta conversa sobre os equívocos já vai no décimo quinto post. Há pessoas com quem é possível ter conversas inteligentes, outras com quem não se consegue, e isso não é função de ser crente ou descrente. É até muito mais uma questão de atitude do que de formação académica ou inteligência.

O Alfredo também está enganado acerca dos objectivos de discutir religião e ateísmo. O que me motiva, principalmente, é gostar de escrever o que penso, seja sobre copyright, astrologia, criacionismo ou catolicismo. O facto de os meus posts, por si só, não levarem a Maya a abandonar o negócio, o Mats a rejeitar o criacionismo ou a RIAA a aceitar a partilha de ficheiros não torna a minha liberdade de expressão num equívoco. Também não fico desmotivado por o Alfredo continuar padre depois de ler isto.

Em geral, os ateus não visam demover os crentes mais ferrenhos ou que tenham muito investido na defesa de alguma crença. É uma tarefa inglória e pouco motivadora. A motivação principal é que a escrita e o diálogo valem por si. Somos uma espécie exímia a comunicar e tiramos grande prazer disso, mesmo quando não traga consequências práticas. Quanto ao esforço de persuasão, esse é dirigido aos outros. Para qualquer crença, além dos defensores acérrimos e dos opositores declarados há uma maioria silenciosa que faz toda a diferença. Escrevo o que escrevo pelo prazer do diálogo, pelo alívio do desabafo e, também, para mostrar aos indiferentes que uma crença falsa não merece respeito só por fé ou insistência. É isto que o Alfredo confunde. Acabar com a fé religiosa não é um objectivo viável, mas é viável diminuir a reverência que a maioria concede a certos disparates só por virem de religiões, tradições ou fanáticos. E isso, parece-me, os ateus têm conseguido. Por exemplo, de Pio XII a Bento XVI, em seis décadas, nota-se uma grande diferença na arrogância com que os dirigentes católicos podem alegar representar o criador do universo e conhecer os seus milagres e mistérios.

A ideia destes textos não é converter o Alfredo. Tampouco me importa o que o Alfredo acredita. O que pretendo com isto, além do gozo que me dá a escrever, é contribuir, por pouco que seja, para que as alegações de bruxos, padres, videntes e afins sejam avaliadas apenas pelo mérito que tiverem em vez de aceites como autoritárias simplesmente por virem de quem vêm. Isto não me parece um equívoco. Parece-me um objectivo meritório, mesmo que não seja possível atingi-lo, porque sem um esforço constante neste sentido só vamos escorregar no sentido oposto. O importante não é que a sociedade acabe com as religiões e demais superstições. O que importa é que a superstição não nos impeça de ter uma sociedade livre, justa e esclarecida.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Alfredo Dinis, um dramático equívoco
3- DN, Cardeal diz que maior drama é a negação de Deus

quarta-feira, abril 25, 2012

25 de Abril traído.

A Associação 25 de Abril não participou na celebração desta data porque «a linha política seguida pelo actual poder político deixou de reflectir o regime democrático herdeiro do 25 de Abril»(1). Mário Soares e Manuel Alegre também decidiram não comparecer (2). No Blasfémias, o Gabriel Silva comentou esta decisão concluindo, basicamente, que isto quer dizer que o regime democrático do 25 de Abril não tolera decisões democráticas contrárias à ideologia de quem despoletou a revolução em 1974 (3), enquanto o José Manuel Fernandes criticou Mário Soares alegando que «A democracia defende-se quando se está no governo e, sobretudo, quando se está na oposição. E a democracia necessita de ser sempre defendida, sobretudo em tempos difíceis como os que vivemos. É isso que Soares não está a fazer – pelo contrário, está a alinhar com os que pensam que a democracia só lhes serve quando cumpre os seus programas políticos»(4). Parece-me que nenhum dos lados está a acertar bem no problema.

É verdade que muito do que o governo está agora a fazer vai contra as ideias de Estado social que foram inscritas na Constituição de 1976. Mas não é verdade que os capitães de Abril se tenham revoltado por esses ideais. O antigo regime foi derrubado por um conjunto de militares sem ideias políticas claras, o Estado que herdámos dessa revolução não foi concebido em Abril de 1974 mas sim nos 24 meses que se seguiram e, felizmente, foi pensado por outras pessoas que não os militares da revolução. Acho que militares como Otelo Saraiva de Carvalho nos fizeram um grande favor, mas também tivemos muita sorte em não serem eles a idealizar o nosso Estado. Por isso, não é muito correcto dizer que estas medidas de venda a retalho de bens públicos e destruição do Estado social sejam contrárias aos ideias da revolução militar de Abril de 1974. No máximo, serão contrárias ao consenso político de Abril de 1976.

Mas há um aspecto importante, mais fundamental ainda, no qual o governo de agora está mesmo a trair um ideal da revolução. Mesmo sem ideias políticas concretas, em 25 de Abril de 1974 havia um ponto no qual a população estava quase toda de acordo. Portugal devia deixar de ser governado por uns poucos que impunham a sua vontade aos restantes e passar a ser governado por representantes da maioria e ao serviço da vontade do povo. Ou seja, passaria a ser uma democracia.

Hoje, é muito pouco disso. As decisões que mais nos afectam são tomadas em nome de interesses económicos de pessoas bem colocadas com a desculpa transparente de que “tem mesmo de ser assim”. Os políticos vão para o governo mentindo descaradamente e enganando os eleitores. Por exemplo:


Via este post do João Vasco.

O pior é que eleitorado nada faz para punir esta aldrabice. O 25 de Abril de 1974 não foi propriamente uma luta corajosa por um ideal democrático e social, como muitos o pintam. Havia esses ideais, e acabaram por vir à superfície e dominar o curso da política nacional, mas isso só aconteceu depois. Depois da revolução e depois da confusão que se seguiu. No entanto, naquele dia, o que aconteceu foi que a ditadura ruiu porque quem tinha força para mudar as coisas decidiu zelar pelos seus interesses em vez de obedecer aos de quem estava no poder. Esse zelo foi fundamental, e é essencial para a democracia que a maioria esteja disposta a zelar pelos seus interesses. Só assim pode controlar e pedir contas a quem põe no poder. Infelizmente, a maioria de agora parece que não quer saber disso para nada. Essa indiferença e apatia, parece-me, é que é a pior traição ao 25 de Abril.

1- Público, Associação 25 de Abril sai pela primeira vez das comemorações da revolução, via Esquerda Republicana, 25 de Abril sempre?
2- Público, Soares acusa Governo de estar contra princípios de Abril e Manuel Alegre ausente da sessão solene do 25 de Abril na Assembleia da República, via Esquerda Republicana, Soares e Alegre têm razão
3- Blasfémias, A democracia tem limites, pá!
4- Blasfémias, Brincar com coisas sérias é imperdoável

domingo, abril 22, 2012

Treta da semana: a Concordata.

É preciso austeridade. Troika, crise, essas coisas. Por isso, entre outras medidas, é preciso acabar urgentemente com quatro feriados. O governo escolheu dois a que chama religiosos, equivocando “religião” com “catolicismo”, e dois dos outros. «O ministro da Economia afirmou que o governo decidiu propor a eliminação de igual número de feriados civis e religiosos porque "aceitou a condição da Igreja", para quem era "muito importante haver simetria"»(1). Assim, em nome da simetria e das ordens da Igreja, para compensar o fim de feriados celebrando acontecimentos históricos como a restauração da independência ou a implantação da República, a Igreja Católica abdicaria dos feriados concedidos para celebrar o corpo do seu deus e os santos da sua religião. Ficam garantidos outros tão importantes como o 15 de Agosto, que celebra o facto de Pio XII ter dito que Maria ascendeu corporalmente ao céu, ou o 8 de Dezembro, que celebra a crença de que os pais de Maria terão, de alguma forma ainda por determinar, concebido a filha sem a mácula do pecado original, já nessa altura pouco original.

Isto em teoria. Na prática, apesar dos feriados celebrando acontecimentos históricos serem já eliminados este ano, os feriados celebrando fezadas dos católicos só podem ser eliminados com autorização do Vaticano. Como «as negociações entre o Estado português e um representante do vaticano não têm data para terminar»(2) e decorrem «sem caráter de "urgência"»(3), se for é lá para 2013. Tudo graças à Concordata, um tratado assinado entre o Estado português e o Vaticano pelo qual Portugal concede uma data de privilégios aos profissionais do catolicismo sem qualquer contrapartida. Por exemplo: «A República Portuguesa reconhece à Igreja Católica […] jurisdição em matéria eclesiástica»; «Os eclesiásticos não podem ser perguntados pelos magistrados ou outras autoridades sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério»; «Os eclesiásticos não têm a obrigação de assumir os cargos de jurados, membros de tribunais e outros da mesma natureza, considerados pelo direito canónico como incompatíveis com o estado eclesiástico»; « A República Portuguesa garante o livre exercício da liberdade religiosa através da assistência religiosa católica aos membros das forças armadas e de segurança que a solicitarem, e bem assim através da prática dos respectivos actos de culto»; «Os eclesiásticos podem cumprir as suas obrigações militares sob a forma de assistência religiosa católica às forças armadas e de segurança»; «A República Portuguesa [...] garante as condições necessárias para assegurar [...] o ensino da religião e moral católicas nos estabelecimentos de ensino público».

O problema do défice torna este ponto particularmente relevante: «A Santa Sé, a Conferência Episcopal Portuguesa, as dioceses e demais jurisdições eclesiásticas, bem como outras pessoas jurídicas canónicas constituídas pelas competentes autoridades eclesiásticas para a prossecução de fins religiosos» estão isentas de qualquer imposto ou contribuição sobre «As prestações dos crentes para o exercício do culto e ritos; Os donativos para a realização dos seus fins religiosos; O resultado das colectas públicas com fins religiosos; A distribuição gratuita de publicações com declarações, avisos ou instruções religiosas e sua afixação nos lugares de culto; Os lugares de culto ou outros prédios ou parte deles directamente destinados à realização de fins religiosos; As instalações de apoio directo e exclusivo às actividades com fins religiosos; Os seminários ou quaisquer estabelecimentos destinados à formação eclesiástica ou ao ensino da religião católica; As dependências ou anexos dos prédios [destinados] a uso de instituições particulares de solidariedade social; Os jardins e logradouros [desses prédios]; Os bens móveis de carácter religioso […]; Aquisições onerosas de bens imóveis para fins religiosos; Quaisquer aquisições a título gratuito de bens para fins religiosos; Actos de instituição de fundações»(4)

A Concordata inclui até uma admoestação aos cidadãos portugueses para que se abstenham de exercer direitos que a República Portuguesa lhes concede, coisa que raramente deve ser subscrita por um Estado num tratado internacional: «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matrimónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio.» (4)

Tudo isto em troca da nada. Nada. Até os feriados “religiosos” (i.e. católicos) são ditados pelo tratado e requerem autorização do Vaticano para se alterar. É absurdo. Como país, o Vaticano não presta. Não tem democracia, não reconhece direitos fundamentais, discrimina as mulheres e não admite liberdade religiosa aos seus cidadãos. Não se justifica conceder privilégios a um país assim nem faz sentido regular a prática religiosa dos portugueses em tratados com outras nações. E a justificação de que o Vaticano, mais do que um país, é a sede de uma religião, em vez de justificar este tratado só agrava o problema. Se o Estado nem sequer tem legitimidade para se intrometer na religião de cada português, também não terá legitimidade para comprometer toda a nação em tratados com religiões.

Podiam, finalmente, usar a desculpa da austeridade para alguma coisa útil e acabar a Concordata. Portugal não tem nada a perder se denunciar este tratado, e muito a ganhar em impostos que não está a cobrar, dinheiro gasto no ensino público da religião e coisas como a liberdade de decidir sobre os feriados nacionais sem pedir licença ao senhor Ratzinger.

1- I Online, Governo vai eliminar os feriados do 5 de Outubro e o 1º de Dezembro.
2- Agência Financeira, Fim dos feriados religiosos empurrado para 2013
3- Agência Ecclesia, Igreja/Estado: Conferência Episcopal Portuguesa pede que «Corpo de Deus» continue como feriado em 2012
4- Agência Ecclesia, A Concordata de 2004

Editado a 23 de Abril para tornar mais claro o penúltimo parágrafo. Obrigado ao João Vasco por apontar o problema.

Equívocos, parte 14. Filosoficamente nada.

O Alfredo Dinis continua a insistir que o «Equívoco fundamental» do ateísmo é o «maior drama [de] estar estruturalmente impedido de […] erradicar a religião»(1). Isto não só confunde equívoco com drama e impedimento como demonstra que o Alfredo ainda não percebeu aquilo que tenta criticar. O Alfredo tem a sua crença de cristão no centro da sua vida e na origem dos seus valores. Não admira que julgue dramático que outros rejeitem as hipóteses de haver vida eterna, criação inteligente ou um ser omnipotente que nos ama a todos. Mas o meu ateísmo não tem nada de fundamental. É apenas um efeito colateral de dois factores: a minha opção de formar opiniões que se conformem às evidências e a preponderância de evidências mostrando que não há um propósito inteligente para o universo nem vida depois da morte. Eu rejeito estas crenças do Alfredo tal como rejeito a crença em Osiris, no professor Karamba ou na astrologia. Sem drama, impedimento ou sequer grande preocupação com o que os outros acreditam. O que oponho nestas coisas das religiões, astrologias, homeopatias e tretas afins é apenas o seu impacto social negativo. Esse gostaria de ver desaparecer, admito, mas a minha incapacidade de atingir esse objectivo não constitui, por si, qualquer equívoco.

Neste episódio da sua série de equívocos, o Alfredo foca a resposta de Lawrence Krauss à questão «Porque existe algo em vez de nada?». Segundo o Alfredo, Krauss equivoca-se por querer substituir a definição filosófica de “nada” como “não-ser” por uma definição científica. Infelizmente, o Alfredo não explica porque é que isto é um equívoco, invocando apenas que «Os neopositivistas do Círculo de Viena já tinham transformado a filosofia numa ‘serva da ciência’», um salto particularmente confuso. Mas, para explicar a confusão, vou começar com exemplo mais fácil. O tempo.

Antes de Einstein a filosofia já tinha tentado definir este termo, dividindo-se em vários campos mas concordando que o tempo, fosse ideia ou real, fosse relacional ou absoluto, definia uma ordem única para os acontecimentos. Se A ocorresse antes de B, julgavam os filósofos, A ocorria antes de B em qualquer referencial e para qualquer observador. Mas Einstein notou que este conceito de tempo não correspondia à realidade e substituiu a definição filosófica por uma definição operacional. O tempo é aquilo que for medido por processos regulares que possam servir de relógio. Pela teoria da relatividade, é possível que A ocorra antes de B num referencial, B ocorra antes de A noutro referencial e ocorram em simultâneo noutro ainda. Hoje sabemos que até a ordem pela qual acontecimentos ocorrem depende do referencial.

Isto não é neopositivismo nem faz da filosofia uma serva da ciência. Ao contrário do que julgavam os positivistas, não se pode separar completamente os dados das teorias. Só se pode obter dados tendo teorias com que os interpretar, e é preciso filosofia para criar teorias antes de ter dados. Só que, sem dados, não se consegue convergir para as teorias certas. Isso faz-se com ciência, usando dados para testar especulações, rever conceitos e adaptar teorias às evidências. Ou seja, a filosofia e a ciência são apenas fases do mesmo processo contínuo de compreensão da realidade. É preciso que a filosofia especule, pois sem especular não se consegue sequer começar, mas é igualmente necessário que a ciência vá corrigindo e afinando essas especulações, pois sem isso não se sai da confusão inicial.

É isto que estão a fazer com a noção de “nada”. As definições filosóficas deram sentido ao termo recorrendo apenas a outros termos e conceitos. Por exemplo, o nada como não-ser. É o melhor que se consegue sem dados concretos que se possa usar. Mas, agora, a física pode dar uma definição operacional de “nada” que encaixa melhor com os dados que temos. É essa a definição que Krauss defende, e que parece ter escapado ao Alfredo: «o nada que normalmente chamamos espaço vazio. Ou seja, se tomar uma região de espaço e me livrar de tudo o que lá estiver – poeira, gás, pessoas e até radiação que passe por lá, absolutamente tudo de dentro dessa região...»(2). E o que sabemos agora mostra que desse nada pode, espontaneamente, surgir um universo. Já não precisamos de explicar porque há algo em vez de nada como faz a teologia, definindo “nada” como um não-ser vazio de tudo excepto um deus omnipotente desejoso de criar um universo. O mecanismo é bem mais simples. Basta o nada. Não o nada teológico ou filosófico, mas o nada real da física.

Queixa-se também o Alfredo de que Krauss «decidiu transformar as questões que começam por ‘Porquê?’ por questões que começam sempre por ‘Como?’ [...] Como se um sociólogo pudesse proceder ao estudo sociológico do suicídio estudando simplesmente os diversos modos como as pessoas se suicidam.» Esta analogia é errada porque, por definição, o suicídio é um acto intencional. Obviamente, nesse caso não podemos excluir a motivação que levou o falecido a terminar a sua vida deliberadamente. Mas seria um erro do sociólogo estudar todas as mortes assumindo sempre haver motivação e intenção inteligente. Acidentes, doenças, velhice, tudo isso pode levar à morte por um “como” sem qualquer “porquê”, neste sentido de intenção e propósito. Enquanto que “Como?” é sempre uma pergunta válida, cuja resposta atenta e fundamentada pode, se for caso disso, suscitar um “Porquê?”, é um erro começar pelo “Porquê?” antes de perguntar “Como?”, porque essa pergunta assume logo à partida haver propósito e inteligência. No caso da origem do universo, essa premissa é mera especulação sem fundamento e é um equívoco começar por aí quando a melhor resposta ao “Como?” não indica qualquer “Porquê”.

1- Alfredo Dinis, Grandes equívocos do ateísmo contemporâneo
2- Lawrence Krauss, A Universe from Nothing.

sexta-feira, abril 20, 2012

A propósito

de homeopatia, amanhã haverá uma iniciativa da Comunidade Céptica Portuguesa (COMCEPT) para mostrar como a homeopatia é só treta diluída. Será às 10 horas, no Jardim do Príncipe Real em Lisboa, como parte da Campanha 10:23.

Infelizmente, só vou poder lá estar em concentrações homeopáticas, mas quem estiver pelas redondezas tem aqui mais informação: Press release – Campanha 10:23. Boa campanha, e esperemos que não sejam processados.

domingo, abril 15, 2012

Treta da semana: processado.

Em 2007, o Luís Grave Rodrigues escreveu sobre a Farmácia Homeopática de Sta. Justa e a venda de produtos homeopáticos em farmácias, apontando que a homeopatia não funciona e defendendo que devia haver mais fiscalização de farmácias que vendem coisas que não tratam nada (1). Na próxima terça-feira o Luís irá comparecer a tribunal como arguido por difamação, acusado pela dita farmácia de violar o artigo 180º do Código Penal (2). Eu também lá estarei, como testemunha, para tentar explicar porque é que, à luz da bioquímica moderna, a homeopatia é obviamente treta.

A homeopatia foi inventada em 1796, mais de meio século antes de Pasteur e Koch revelarem a importância dos microorganismos, quase um século antes da descoberta dos antibióticos e mais de um século antes de Einstein estabelecer definitivamente a teoria atómica da matéria. Por isso, não é de estranhar que seja o disparate que é.

O primeiro princípio da homeopatia é a “lei dos semelhantes”. Basicamente, diz que uma doença se cura com algo que cause os mesmos sintomas. Por exemplo, se alguém tem uma infecção bacteriana nos pulmões e, por isso, tem tosse e febre, a homeopatia recomenda que em vez de matar as bactérias se agrave a tosse e a febre. Como se os bicharocos se ralassem. Quando esta treta foi inventada não se sabia que microorganismos causavam doenças, mas hoje em dia não há desculpa para aceitar isto como verdade. Não faz sentido nenhum.

O segundo princípio é que só se teste os “medicamentos” em pessoas saudáveis. A ideia, dizem, é perceber os “efeitos puros” da substância. Mas o resultado é que nunca testam o que importa, que é se aquilo cura mesmo. Dão o preparado a um voluntário sem doenças, anotam o que parecem ser os sintomas que o remédio causa e simplesmente assumem, pelo primeiro princípio, que serve para tratar o que provoque sintomas semelhantes.

Finalmente, o terceiro princípio, de que quanto mais se dilui a substância com “sucussão” (abanando) mais “potenciada” ela fica. É importante salientar que esta ideia surgiu antes do trabalho de Dalton sobre a teoria atómica da matéria, e muito antes desta teoria ser consensualmente aceite pela comunidade científica. Quando a homeopatia surgiu, julgava-se ser possível diluir substâncias infinitamente, e a natureza da matéria era um grande mistério. Hoje têm de inventar tretas acerca da memória da água para escapar ao facto inconveniente que, com as diluições que os homeopatas usam, já nada sobra da substância activa.

O consenso da ciência moderna é que a homeopatia não só não funciona como nem tem como funcionar. É o que diz a teoria, é o que se confirma na prática, e é o que exige o Infarmed para o registo de produtos farmacêuticos homeopáticos: «ausência de indicações terapêuticas especiais no rótulo ou em qualquer informação relativa ao produto.»(3)

Sem querer ofender a honra de quem monta uma farmácia para vender coisas que não tratam, baseando-se em ideias disparatadas de 1798, devo dizer que o negócio me parece imoral. Em geral, só vai à farmácia quem quer remédios que curem e não para comprar produtos sem indicações terapêuticas. O boa tarde, senhor farmacêutico, pode-me recomendar alguma coisa que não trate nada, por favor, deve ser muito raro. Por isso, parece-me inevitável que uma farmácia homeopática obtenha boa parte do seu rendimento a vender frasquinhos de muito pouco a quem desconhece que não servem para nada.

1- Random Precision, Sem indicações terapêuticas comprovadas
2- Random Precision, A Garantia da Inocuidade do Produto.
3- Infarmed, Circular Informativa N.º 039 /CA Data: 24/03/2006
Ver também Vemo-nos em tribunal, pelo Marco Filipe, Más amenazas legales de la homeopatía, por Daneel Olivaw, e Democracia, conhecimento e homeopatia, por Nuno Lemos, num blog sobre acupunctura.

Como se sabe.

O post sobre o consolo deu azo a uma desconsoladora confusão entre crer e saber. O Carlos Soares afirmou que «sabemos o que Jesus Cristo disse e quem Jesus Cristo é», o António Parente que «Nenhum de nós tem um CERN pessoal para testar a existência do bosão de Higgs. Temos de acreditar no testemunho de outros. Em ciência o conhecimento transmite-se também pelo testemunho» e o Jónatas Machado que o fundamento objectivo para afirmar que a mente continua depois do cérebro desaparecer é «a Palavra do Criador da mente, atestada pela ressurreição de Cristo, o evento mais marcante da história da humanidade»(1).

Podemos formar crenças pelas razões que quisermos, mas conhecimento é apenas aquele conjunto de crenças que se justifica concluir corresponderem à realidade, e isso exige critérios mais rigorosos do que simplesmente acreditar. Como os aspectos da realidade que nos interessam tendem a ser independentes dos nossos desejos, uma crença só é conhecimento se for justificável sem recurso a opções pessoais, preferências, tradições e afins. Para ilustrar, vou aproveitar o exemplo do JC:

«Se a batalha de Waterloo nunca aconteceu, então estaríamos perante uma enorme conspiração perpetrada não só pelos ingleses, como também pelos inimigos franceses. É ainda menos plausível do que as teorias da conspiração sobre o 9/11. Também existem museus, como de Wellington, com artefatos da batalha, tais como troféus, armas, partes de esqueletos humanos, documentos, etc.»(1)

Com os dados que temos, qualquer pessoa disposta a ajustar as suas crenças às evidências irá concluir que a batalha de Waterloo foi um acontecimento real. Mesmo que, por gosto, hábito ou tradição, partisse convencida do contrário. Porque é claramente a hipótese mais plausível. É este o fundamento do conhecimento. Idealmente, o conhecimento seria uma crença justificada e verdadeira. Na prática, como estamos sempre sujeitos a cometer erros, nunca podemos garantir que seja mesmo verdadeira. Mas nem por isso podemos ser negligentes na justificação. É graças a essa exigência que a ciência consegue convergir para certas hipóteses independentemente de etnias ou tradições. Ao contrário das teologias, astrologias e semelhantes, não há diferença entre a física nuclear hindu ou muçulmana, nem entre a química cristã e ateísta. Para escapar às conclusões da ciência, como fazem os criacionistas, é preciso fechar os olhos às evidências.

Ao contrário do que alega o António Parente, e muitos outros a quem dá jeito que se julgue o mesmo, o que importa para transmitir conhecimento não é o testemunho. É a receita. O processo. A descrição do raciocínio. Se alguém acredita que a Terra é redonda só porque lhe disseram que é então não tem conhecimento da forma da Terra. Para já, porque acertou por acaso. Se lhe tivessem dito que era quadrada ou plana, tinha acreditado nisso em vez de naquilo. Mas, principalmente, porque continua sem saber como se chega a essa conclusão. A forma como os barcos desaparecem no horizonte, a sombra da Terra na Lua durante um eclipse lunar, fotografias por satélite, é esse tipo de coisas que tem de encaixar para saber a forma da Terra.

Nós não temos de acreditar no testemunho dos cientistas precisamente porque os cientistas nos dão os caminhos para as conclusões. Fizemos isto, deu este resultado e não nos ocorre explicação melhor senão esta. Todo o processo está à vista, sujeito à dúvida e exposto à confirmação ou refutação de quem quiser examiná-lo. É precisamente o contrário do que se passa com superstições, sobrenaturalices e tretologias.

A Maya inventou o seu método de Tarot, «que utiliza todos os arcanos Maiores mas nem todos os arcanos menores , sendo que estes últimos são de uma baralho normal»(2). Pronto. Não diz nada sobre o processo para determinar que era esse o método certo, que resultados teve, que alternativas considerou, como as comparou nem nada disso. Para aceitar o método Maya é preciso aceitar o testemunho da Maya. Isto não é conhecimento. Mesmo que assim se acerte num método de divinar o futuro – o que, ao que tudo indica, é extremamente improvável – não se estará melhor do que o tipo que acredita que a Terra é redonda só porque ouviu dizer.

O mesmo se passa com as crenças de que Jesus ressuscitou, a Terra foi criada há dez mil anos atrás ou há vida depois da morte. O Jónatas Machado acha que «a Palavra do Criador da mente, atestada pela ressurreição de Cristo» é evidência de que a pessoa continua a existir, e a sentir que existe, mesmo depois do corpo morrer e o cérebro apodrecer. Os comentadores católicos tendem a ser menos explícitos que os evangélicos, mas não andam longe disto. Basicamente, consideram as suas crenças como evidência de que é mesmo verdade aquilo que gostariam que fosse verdade. Isso não é conhecimento. É treta.

PS: A pedido de vários comentadores, actualizei o script para filtrar comentários. Agora já funciona com o novo formato do Blogger. Obrigado ao JC pelo código, que adaptei para manter o funcionamento original (substituir os comentários indesejados por um texto à escolha) mas penso que também vou incluir a implementação do JC como opcional, que apaga o comentário por completo, e nem se nota que o comentador filtrado lá esteve.

1- Comentários em Consolo.
2- Sapo AstralDissecação do Tarot

sábado, abril 14, 2012

Treta da semana (passada): justificações.

A semana passada foi suspenso, de surpresa, o regime de reforma antecipada. Segundo o Primeiro Ministro, «A decisão que o Governo tomou teve apenas a preocupação de garantir que o efeito que o recurso a pensões antecipadas estavam a ter sobre o orçamento da Segurança Social não pusesse em risco a execução do nosso orçamento para este ano»(1). A menos que o mundo acabe mesmo em 2012, julgo que o Governo não se devia preocupar apenas com o orçamento deste ano. Em média, uma pessoa que tenha sessenta anos hoje viverá até aos 83 (2). Se se reformasse agora, cinco anos antes do tempo e com uma penalização de 30% na pensão de reforma, pouparia à Segurança Social o equivalente a dois anos da reforma original. A longo prazo, as reformas antecipadas poupam dinheiro ao Estado.

A justificação do ministro da Segurança Social é de que, sem esta medida, o Estado teria de pagar mais 450 milhões de euros nos próximos dois anos(3). Parece muito mas, por ano, isso dá duas milésimas do orçamento do Estado. É meio submarino ou um terço do que ganham alguns ex-políticos só por terem passado por lugares no poder (4). E, ao contrário dos outros exemplos, este seria um bom investimento para o Estado.

Pelas consequências económicas e sociais desta medida, seria de esperar que fosse discutida no Parlamento. Em vez disso, o Governo decidiu fazer tudo às escondidas e apanhar o pessoal de surpresa. Para evitar actos como este, Portugal tem um Presidente com a responsabilidade de remeter ao Parlamento qualquer medida que suscite dúvidas. Infelizmente, Portugal tem o Presidente que tem, e que só me abstenho de adjectivar por causa do artigo 328º do Código Penal. A justificação deste é que se devia fazer isto às escondidas por «interesse nacional» mas que «o acto de promulgação não significa o acordo do Presidente em relação a todas as normas de um diploma»(5). O que quer dizer que o Presidente não concorda com o interesse nacional, ou, mais provavelmente, é apenas demagogia sem sentido.

Um grande problema económico da política de austeridade, mesmo descontando os efeitos sociais e pessoais, é a incerteza. Medidas como as de facilitar os despedimentos, cortar apoios sociais e alterar unilateralmente os ordenados e horas de trabalho desencorajam o consumo, mesmo a quem ainda tiver algum dinheiro, porque não sabe o que o futuro lhe reserva. Por sua vez, isto deprime a economia, leva a mais cortes e despedimentos, e serve para justificar mais austeridade e incerteza. Quem está próximo da idade da reforma e vê o seu emprego em perigo tinha na reforma antecipada uma boa solução. Recebia menos, beneficiando a Segurança Social a longo prazo, mas sempre ficava com um rendimento mais certo. Teria menos incerteza e mais confiança. Com esta medida, o Governo não só negou esta possibilidade a algumas pessoas como também aumentou a incerteza a todos os outros que, apesar de não serem directamente afectados por esta medida, agora sabem que as leis podem ser alteradas instantaneamente, sem discussão pública nem aviso prévio. Agora todos temos mais incertezas e menos confiança.

Isto, é claro, se for para tramar quem vive do seu trabalho. Hoje, Passos Coelho justifica acabar com as reformas antecipadas de surpresa para não permitir uma “corrida” às reformas. Mas em 2010 votou contra a cobrança imediata de impostos sobre dividendos, apesar de assim permitir que empresas como a PT (6) e a Portucel (7) evitassem milhões de euros de impostos antecipando a distribuição dos seus lucros. Nessa altura, Passos Coelho considerou que aplicar a lei de imediato seria «cobrir um erro com outro erro»(8). O que até pode ser. Seria um erro, da parte dele, prejudicar potenciais empregadores. Afinal, ele não vai ser Primeiro Ministro para sempre e, com as reformas como estão, se não arranja uns lugares de administração em meia dúzia de empresas ainda se vai ver aflito para pagar as contas ao fim do mês. Como o nosso Presidente, coitado.

O problema fundamental da nossa política é que os governantes não são minimamente representativos da grande maioria dos governados. São pessoas para quem “austeridade” é apenas uma palavra. De apoios sociais, só precisam dos seus salários, pensões e benefícios, e esses estão garantidos. Por eles. Se alguém que lhes seja próximo precisar de subsídio de desemprego ou outro apoio, em vez disso podem arranjar-lhe um tacho, que é melhor e mais prático. Somos governados por pessoas que, quando não têm pão, comem brioches. Não têm contacto directo com os estragos que fazem nem qualquer incentivo para resolver os problemas. Precisam apenas de garantir o orçamento por mais um ano de cada vez enquanto fazem favores às pessoas certas. Ou, como eles lhe chamam, o “interesse nacional”.

1- DN, Passos quis evitar corridas às reformas antecipadas
2- Pontos e Vírgulas, Esperança de Vida (pdf).
3- TSF, Ministro justifica congelamento das reformas antecipadas
4- Expresso, Veja os rendimentos de 15 políticos portugueses antes e depois de passarem pelo Governo.
5- Económico, Belém justifica suspensão das pensões antecipadas com “interesse nacional”
6-Económico, Distribuição antecipada de dividendos na PT "é legal"
7- Público, Portucel paga dividendo antecipado a 27 de Dezembro
8- I online, PS e PSD vão chumbar proposta para taxar dividendos este ano

domingo, abril 08, 2012

Consolo.

O Alfredo Dinis colocou-me a «questão de saber se deverei aconselhar uma pessoa que perdeu um [ente] querido a procurar consolação na explicação científica sobre o processo da morte» porque ficou «com a ideia de que tanto Dennett como Dawkins consideram esta opção correcta por princípio. Isto está aliás de acordo com uma certa ideia de 'salvação pelo conhecimento' que corresponde a um 'novo iluminismo' muito divulgado sobretudo entre intelectuais ateus militantes.»(1) Parece-me que, novamente, a crítica do Alfredo se deve a assumir que conhecer a realidade exclui valores, emoções e afectos. Esta é uma caricatura que muitos crentes traçam do ateísmo e da ciência, não só os crentes religiosos mas, em geral, todos os que defendem como certezas hipóteses que não têm qualquer fundamento.

Cada pessoa lida com a adversidade à sua maneira, pelo que a melhor forma de «aconselhar uma pessoa que perdeu um [ente] querido» dependerá da pessoa e da situação. Além disso, o consolo não vem só de conselhos mas, principalmente, de outras coisas, como relações com familiares e amigos, motivação, expectativas, valores, projectos e o que mais cada um considere importante. Seria obviamente inadequado tentar substituir tudo isto por um manual de fisico-química ou epidemiologia, e é precisamente por isso ser óbvio que a caricatura é tão fácil. No entanto, não é isso que se pretende substituir. Os nossos valores e afectos são perfeitamente compatíveis com a compreensão fundamentada da realidade. É possível apreciar a diversidade dos seres vivos sabendo que são produto de uma evolução sem propósito em vez fingir que um deus criou cada varejeira, lesma e cogumelo, ou admirar as estrelas como esferas de plasma a anos-luz de distância sem julgar que influenciam a nossa profissão ou com quem vamos casar. Aquilo que se pretende substituir com a ciência, por incompatibilidade inevitável, é a crença em hipóteses sem fundamento ou que até contradizem o que observamos. E isto é importante também para o consolo.

Consolar-se implica aceitar, pelo menos em parte, a realidade como ela é. Não é compatível com o engano ou a ilusão. Por exemplo, o aparente consolo dado por quem finge falar com os falecidos, dizendo a pessoas combalidas pela dor que os seus entes queridos estão felizes, gostam muito delas e banalidades afins, não é consolo genuíno porque é aldrabice. Ao contrário do que o Alfredo parece dizer, apontar este problema não implica abandonar os aspectos afectivos do consolo. As alegações destes espíritas não resistem a testes controlados (“científicos”), mas dizer a uma pessoa que isso de comunicar com os mortos é treta não nos restringe a consolá-la apenas com recurso a manuais de medicina, como sugere a caricatura do Alfredo. Ser honesto não impede ninguém de oferecer o ombro onde o outro chorar.

O Nuno Gaspar, como de costume, leva a confusão ainda mais longe: «seria útil que não andasse um grupo de pessoas, a que te juntas, mobilizadas para enxovalhar a maneira com uma série de outras lida com o seu fim e de quem lhe é querido.»(1) O que eu faço não é enxovalhar a maneira como cada pessoa lida com a morte. O que faço é criticar quem lhes impinge tretas, aproveitando até aquela dor que os torna ainda mais propensos a acreditar no que quer que lhes digam. Os padres, por exemplo, cujo papel nos funerais é fundamentalmente o mesmo que o papel da vidente da TVI. Em ambos os casos, vendem um sucedâneo de consolo dizendo às pessoas que o falecido, afinal, não morreu e vive feliz “do outro lado”. Mesmo que acreditem sinceramente no que dizem – e não é claro que seja sempre esse o caso – todas estas histórias da alma, da vida eterna, da salvação, deuses e afins, são mera ficção sem fundamento. Tanto quanto sabemos, se o corpo morre e apodrece a mente desaparece e a pessoa deixa de existir excepto nas memórias que deixa nos outros. Qualquer um que queira consolar ou ser consolado tem de começar por encarar essa realidade, caso contrário estará apenas a enganar-se ou, pior, a enganar os outros.

Útil seria que não andassem grupos de pessoas mobilizadas para enfiar barretes a quem tenta lidar com o seu fim e com o fim de quem lhe é querido.

1- Comentários em Perdido na tradução.

domingo, abril 01, 2012

Treta da semana: Team Anormal.

A «Team Anormal» é uma equipa de investigadores, uns do paranormal e outros paranormais (1), criada «com o objectivo de investigar o paranormal […] porque já todos nós vivemos algo que ultrapassava todas as questões científicas e médicas. Por isso decidimos criar a nossa equipa para poder provar ao mundo que existe algo superior.»(2) No site da equipa há uma página com vídeos documentando o seu modus operandi. Infelizmente, destes só tive tempo para ver o primeiro (o mais recente), sobre a investigação de uma casa em Rio Tinto (3). Ao fim de oito minutos de conversa pausada com o corrimão das escadas, os investigadores concentram-se na porta da casa, que, após cuidadosa análise, concluem estar aberta.

No site podemos também ver uma entrevista com a D. Guilhermina Oliveira que, segundo percebi, foi morar para uma casa de dois andares com o marido, a nora, o filho e um inquilino no rés-do-chão, pelo que os passos e barulhos que ouvia de noite só podiam dever-se ao espírito da anterior proprietária, que teria falecido naquela residência (4). Tal como na teologia, também na fantasmologia o testemunho é fundamental para nos revelar os mistérios do inexplicável e nos livrar do facilitismo das explicações mais simples.

Um dos frutos destas investigações e da recolha de testemunhos é o que agora compreendemos sobre os efeitos da morte na capacidade cognitiva dos finados. Como seria de esperar, a decomposição do cérebro afecta negativamente a inteligência. Por exemplo, um relato de “Experiências Pessoais” descreve como uma família perdeu a chave do carro enquanto apanhava cogumelos. Quando voltaram ao pinhal para a procurar, presumivelmente antes de consumir o que tinham colhido, o pai disse ouvir vozes a chamar o seu nome. Seguindo pinhal adentro, atrás dessas vozes que mais ninguém ouvia, acabaram por encontrar a chave (5). Se o espírito que os ajudou tivesse mantido as capacidades intelectuais que teria em vida, este dramático episódio ter-se-ia ficado por um singelo, mas eficiente, boa tarde, olhem que deixaram cair a chave do carro atrás daquele arbusto.

Resta-me deixar à equipa os votos de que, nas suas incursões nocturnas por propriedade alheia, encontrem apenas espíritos desencarnados e não um proprietário assustado de caçadeira em riste.

1- Team Anormal, Nossa Equipe.
2- Team Anormal, Sobre Nós.
3- Team Anormal, Videos. Eu não consegui que os plugins funcionassem em nenhum browser; tive de descarregar os ficheiros pelo endereço no source. Por exemplo, o da casa de Rio Tinto está aqui.
4-Numa página apropriadamente intitulada Relatos Incríveis
5- Team Anormal, Experiências Pessoais.