domingo, novembro 17, 2024

Ciência, ética e filosofia.

A nossa capacidade de formar crenças acerca da realidade levanta a questão de como o devemos fazer. Há muitas possibilidades, como acreditar no que nos apetecer, seguir um livro sagrado ou tradições, confiar nas redes sociais ou nos nossos amigos ou atirar a moeda ao ar. Mas todas estas têm o problema de levar pessoas diferentes a conclusões diferentes. Muita gente vive bem com isto mas, para alguns, incomoda não haver convergência na compreensão da realidade. A ciência surge de se desejar um processo racional que permita essa convergência. Idealmente, que resista a preconceitos e acidentes e nos mostre o caminho para crenças que qualquer ser inteligente e informado reconheceria como factuais. É para isto que serve testar hipóteses, usar instrumentos, submeter resultados a revisão pelos pares e afins. É trabalho em curso e nada garante que funcione. Mas os resultados são encorajadores. Ao contrário das crenças obtidas por tradições, religiões ou outros métodos, as que são obtidas pela ciência tendem a gerar consenso.

A ética é semelhante mas o problema é diferente. Em vez de motivada pela capacidade de formar crenças, é a nossa capacidade de agir que suscita a questão de como o fazer. Também neste caso a resposta pode ser religiões, caprichos, tradições, ambição ou o que calhar, todas sofrendo do problema de dar resultados diferentes para pessoas diferentes. Há quem se contente em seguir os seus preceitos religiosos ou culturais mesmo sabendo que seguiria quaisquer outros que lhe tivessem calhado. Mas quem não aceita fazer isto à sorte procura uma abordagem racional que leve à convergência acerca de coisas como o bem, a justiça, virtudes ou deveres. É isto que a ética almeja. Como é mais difícil testar hipóteses acerca de valores do que acerca de factos, a ética parece avançar menos que a ciência mas, ainda assim, tem dado bons resultados. Houve muito progresso em questões acerca de escravatura, igualdade de direitos, legitimidade dos governos, processos judiciais e outros. É uma abordagem claramente melhor do que autos de fé, ditaduras caprichosas ou tapar a cara às mulheres só porque é costume.

A filosofia, proponho, é o que ética e ciência têm em comum e que pode ser generalizado para qualquer problema intelectual: abordá-lo de forma racional procurando respostas que qualquer ser inteligente, informado e imparcial concordaria serem as correctas. Tanto faz o tema ou a questão. Seja órbitas, estética, deuses, virtude, deveres, linguagem, consciência ou o que for, pode ser abordado de forma racional em vez de com mitos, teorias da conspiração, racionalizações ou histórias da carochinha. Por "racional" não refiro uma virtude abstracta mas a atitude concreta de apresentar razões, exigir razões, e levá-las a sério. Não são razões como meras desculpas ou racionalização mas como condições para que a conclusão seja aceite e eficazes a mudar a conclusão se forem adequadamente postas em causa.

Reconheço que esta forma de conceber filosofia não é consensual. Muita gente que se identifica como filósofo prefere impor mais restrições para encolher a filosofia e aconchegá-la à sua área de interesse. E muita gente que se identifica como cientista terá horror à ideia da ciência ser apenas um ramo da filosofia. Mas os gregos que começaram esta coisa não eram niquentos. Tanto lhes fazia se era biologia, física, política ou o que fosse, atacavam tudo da mesma maneira. O que lhes importava era dar razões e criticar as dos outros. E é por isso que, até 1833, em vez de ciência havia filosofia natural. Mas o progresso tecnológico estava a criar novas práticas. Navios e navegação permitiam viajar para ver culturas, organismos e paisagens muito diferentes. Instrumentos revelavam como os nossos sentidos são inadequados. A quantidade crescente de informação exigia cada vez mais matemática e as ideias tornavam-se obsoletas cada vez mais depressa. Para quem gostava de ler livros, coleccionar ideias antigas e reflectir à lareira isto foi um choque porque a vantagem na compreensão da realidade estava cada vez mais em quem andava a polir lentes, afinar relógios e correr tudo a experiências, observações e cálculos.

Isto não seria uma coisa má se não fosse Whewell, em 1834, inventar o termo "cientista". Sem isso, talvez tivéssemos hoje uma distribuição saudável e contínua dos mais recatados leitores aos mais enérgicos experimentalistas. Mas a ideia infeliz de Whewell cortou a distribuição a meio e separou os lados. A marca "filosofia" tornou-se propriedade das humanidades, a quem desagrada a experimentação, a matemática, a estatística e a análise de dados. Com isto ficou mais permeável a tretas como religião, floreados, demagogias pós-modernas e afins. E a ciência, para a maioria dos seus praticantes, relegou para segundo plano a compreensão da realidade e tornou-se numa linha de montagem onde cada um só conhece a sua tarefa, maximiza a "produtividade" e é avaliado por coisas como indicadores bibliométricos de desempenho.

Entender a filosofia como a procura racional por respostas, e a ética e a ciência como filosofia aplicada a questões acerca de como saber e agir, não só dá uma ideia mais completa do que é procurar a sabedoria como ajuda a resistir a muitos disparates. Entre outros, a tese de que a ciência pode substituir a ética; que afirmações acerca da realidade ficam imunes à crítica científica se as rotularmos de filosóficas, metafísicas ou teológicas; que há diferentes níveis de realidade estudados pela fé, ciências ocultas, medicinas alternativas e outras confusões. Não é defesa garantida porque temos sempre de decidir sob incerteza. Mas, perante qualquer alegação acerca do que é ou deve ser, podemos sempre questionar se foi obtida por essa via racional. Podemos avaliar se é parte de um processo convergente, usando a razão para superar enviesamentos e procurar conclusões que não dependem de peculiaridades subjectivas. Se sim, é filosofia. Se não, é treta.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Segurança.

Nos últimos 8 anos a policia matou 13 pessoas e foram abertos 26 processos contra agentes da PSP por uso indevido de armas de fogo (1). Nos últimos 10 anos morreram 11 agentes e foram hospitalizados cerca de mil (2). Todas as mortes são trágicas mas nenhuma destas resultou em tumultos. Os criminosos são violentos, os polícias cometem erros, e o que houver aqui que possa ser melhorado certamente não o será queimando autocarros ou caixotes do lixo. A morte de Odair Moniz foi diferente. Logo pelo aproveitamento político da tragédia, à direita querendo condecorar e à esquerda acusando de "impunidade" um agente que é arguido por homicídio e, talvez mais importante, porque Odair Moniz tinha um passado de criminalidade violenta (3) e relações próximas com membros activos neste tipo de empreitada (4). Daí os tumultos.

Quando a polícia o mandou parar por uma infracção no trânsito, Moniz tentou fugir e só parou na Cova da Moura quando embateu nuns carros estacionados. Saindo do carro, continuou a ignorar as ordens da polícia, os tiros de aviso e as tentativas de o deter dizendo «‘não me toquem’, ‘tira a mão’». Segundo as testemunhas no local, onde Moniz era conhecido e respeitado, «“Ele só não queria que lhe colocassem algemas”»(5). Mas as imagens da ocorrência «mostram que houve de facto um confronto físico, com o suspeito a resistir à detenção»(6). A lei obriga a obedecer à autoridade da polícia e proíbe a polícia de disparar sobre pessoas desarmadas. Moniz possivelmente calculou que podia ignorar a primeira parte e contar que os agentes obedecessem à segunda. No seu bairro, rodeado dos seus e contra apenas dois polícias, a expectativa era favorável. Grande Moniz, com ele até a bófia baixa a bolinha. Infelizmente para todos descurou a incerteza nas acções de quem se vê aflito e tem uma arma na mão.

Tem-se apontado o racismo como factor relevante. Concordo que é plausível. Não o racismo deliberado e performativo das redes sociais mas um racismo visceral que me parece inevitável nestas condições. Uma pessoa sujeita a violência recorrente desenvolve enviesamentos contra o que o seu cérebro identifica como fonte dessa violência. Por exemplo, uma mulher vítima de violência doméstica pode ter dificuldade em confiar em homens mesmo que reconheça que, na nossa cultura, não é normal homens espancarem mulheres. Os polícias também são humanos. Se forem repetidamente expostos a ameaças, violência e confrontos físicos envolvendo pessoas de uma etnia facilmente identificável isso terá consequências quando tiverem de tomar decisões rápidas sob pressão, como disparar ou não contra um agressor.

Isto não isenta o agente de culpa. A defesa só é legítima se for proporcional, não se pode matar a tiro uma pessoa desarmada e de um agente da autoridade deve exigir-se um comportamento irrepreensível. Mas esta tragédia revela um problema de inadequação da nossa polícia. O agente de camisa e pistola ao cinto é suficiente quando a população respeita a sua autoridade e só usa a arma para defender a sua vida ou de terceiros. Mas perante pessoas desarmadas que não respeitam a sua autoridade pouco pode fazer. Praticar luta livre na Cova da Moura é arriscado e não deve usar a arma de fogo só para se impor quando não é legítimo disparar. Se Odair Moniz tivesse resistido a meia dúzia de agentes com equipamento anti-motim teria ficado com mazelas e haveria acusações de brutalidade policial mas ainda estaria vivo. Este parece ser o procedimento adoptado em zonas como a Cova da Moura mas não há recursos para que seja assim sempre que é necessário a polícia intervir, o que pode ter consequências trágicas.

O Chega propõe resolver o problema deixando a polícia a disparar à vontade mas a contenção no uso da força é fundamental para distinguir polícias de bandidos. A esquerda quer «acabar com as Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS) que colocam os bairros sob intervenção militarizada»(7) mas o problema é precisamente que, nessas zonas, a actuação policial tem de ser diferente. A incidência de criminalidade violenta não é a mesma em todas as regiões e comunidades. Por exemplo, há 34 mil cidadãos de Cabo Verde legalmente residentes em Portugal (8), perfazendo 0.32% da população mas, nas prisões, são 3.6% (9) dos reclusos. É verdade que há imigrantes ilegais, pobreza e racismo mas isso não explica esta discrepância que, em imigrantes de Angola ou São Tomé e Príncipe, é apenas de 3 para 1 em vez de 10 para 1 (9, 10 e 11). Comunidades nas quais o desrespeito pela polícia é socialmente aceite e culturalmente encorajado exigem intervenção mais musculada. A polícia precisa de poder intervir com força suficiente para o fazer com o mínimo de força indispensável. Não pode ter só as opções de dar ordens ou disparar.

Este não é um problema de todos os imigrantes nem exclusivo dos imigrantes. Devemos acolher quem queira contribuir para a nossa sociedade e mesmo entre os grupos mais problemáticos há gente disposta a respeitar as nossas regras. É disparate odiar quem não é "português de sangue". Mas é desonesto disfarçar estes problemas fingindo que alterações burocráticas na concessão de autorizações de residência "provam" que imigrantes não aumentam a criminalidade (12), ou com estudos demonstrando que não há perigo que nepaleses apanhem morangos no Alentejo (13). O problema é haver comunidades em Portugal que não respeitam regras básicas da nossa sociedade. Isto causa sentimentos de injustiça e insegurança facilmente aproveitados por alguns políticos. Não se deve resolver este problema com deportações, despejos e medidas que castigam toda a família do criminoso, que não queremos ser aqui a Coreia do Norte. E também não adianta culpar tudo no racismo. É preciso incentivos positivos para se respeitar as regras, com medidas de apoio social, e incentivos negativos contra a criminalidade pelo policiamento em condições adequadas. Infelizmente, isso exige recursos e, pelo que se tem visto ultimamente, o medo, a repulsa e a inveja são politicamente mais fortes do que a vontade de investir para resolver problemas.

1- Público, Em oito anos morreram pelo menos 13 pessoas às mãos das forças de segurança
2- Executive Digest, Quantos PSP e GNR morreram em serviço nos últimos anos? E quantas pessoas perderam a vida em ações das Forças de Segurança? Os números oficiais
3- CNN,
Polícias reconhecem que não foram ameaçados de faca em punho por Odair. Vítima tinha cadastro por crimes violentos
4- Expresso, "Eles não vão parar agora"
5- Esquerda.net, Testemunhas confirmam: Odair não foi violento com a polícia
6- CNN, Agente que atingiu Odair Moniz deu versões contraditórias à PSP e à PJ
7- SIC Notícias, Movimento Vida Justa convoca manifestação em Lisboa para exigir justiça pela morte de Odair
8- GEE, População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - Cabo Verde Popular
9- Migrant Integration, EU, Indicadores de Integração de Imigrantes RELATÓRIO ESTATÍSTICO ANUAL 2023
10- GEE, pdf População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - São Tomé e Príncipe
11- GEE, População Estrangeira com estatuto legal de residente em Portugal - Angola
12- +Liberdade, Aumento da imigração vs. Aumento da criminalidade
13- Publico, Municípios com maior peso de imigrantes têm menos criminalidade

terça-feira, outubro 08, 2024

Competições.

Imane Khelif e Lin Yu-ting venceram as provas olímpicas de pugilismo feminino nas categorias de 66Kg e 57Kg. Foi polémico porque ambas têm um cromossoma Y (1) e já tinham sido excluídas de provas destas por falharem "testes de género". Um corpo masculinizado dá tal vantagem no pugilismo que, apesar de este problema genético afectar apenas uma mulher em cada dez mil, duas ganharam medalha de ouro. Alegar que são homens (2) é erro. Nasceram com vulva, nunca lhes cresceu um pénis e sempre viveram como mulheres. São mulheres. E, por isso, é algo injusto, e irónico, exclui-las do pugilismo feminino só porque batem com muita força. As outras também treinam para isso e ninguém veda a participação de homens fortes no pugilismo masculino. No entanto, concordo que atletas como estas sejam excluídas de competições femininas. Parece-me um mal menor porque enquanto a competição masculina é sobretudo uma competição o propósito da competição feminina é ser feminina.

Antecipando a acusação de querer sexualizar as mulheres, esclareço que a sexualização principal aqui é a dos homens. Não é óbvio à partida porque pensamos sempre na sexualização de uma perspectiva masculina, focando atributos femininos que atraem os homens. Mas as mulheres também sentem atracção sexual, não é igual à dos homens e, nesta, a comparação de cada homem com os outros pesa muito. Homens no topo de hierarquias são sexualmente mais atraentes. É por isso que os homens dedicam tanta energia a mostrar quem é o maior, seja competindo por vantagens práticas como poder ou recursos materiais seja em conflitos ritualizados como o desporto. O pugilismo é um exemplo claro. Esmurrar a cara um do outro até alguém ficar inconsciente é o tipo de disparates que homens inventam para impressionar mulheres. E funciona. Por exemplo, Mike Tyson não é especialmente charmoso e cumpriu três anos de prisão por violar uma rapariga de 18 anos mas, ainda assim, já teve nove filhos com quatro mulheres (3). Ser campeão sexualiza os homens. Mas só os homens. Isto não se deve a estereótipos ou ao patriarcado. Deve-se à gravidez. Uma mulher não tem mais filhos só por ter mais homens e, por isso, ganha mais se investir no melhor candidato em vez de dispersar o seu capital reprodutivo por parceiros inferiores. Milhões de anos disto levaram as mulheres a preferir homens que sobem em hierarquias competitivas. Aos homens não compensa rejeitar parceiras só por estarem mais baixo numa hierarquia e, por isso, dão mais valor a outras características.

É verdade que o sexo não é a única motivação para competir. Seres humanos são complexos, têm sempre muitas razões para o que fazem e algumas até são verdadeiras. Mas mesmo no meio de patriotismos, desportivismo, superação e essas coisas, o apelo sexual não é insignificante. Para quem compete e para quem assiste, e ambos importam num espectáculo como os Jogos Olímpicos. Antes de estudos de género e interseccionalidades obrigarem as pessoas a ignorar a realidade, várias provas femininas foram concebidas para dar também às mulheres alguma oportunidade de sexualização. Apesar disto já não ser politicamente correcto, estas provas, como ginástica, patinagem artística ou natação sincronizada, continuam a ser populares precisamente pela ênfase em características femininas. Têm também a vantagem, acidental, de dificultar o domínio por atletas masculinizadas. Mas já não é assim em competições, como o pugilismo, que simplesmente transpõem para o feminino o que homens inventaram para se exibir. Nestas há um conflito entre desejar que mulheres participem e premiar quem for mais como os homens.

É por isso que eu defendo excluir atletas masculinizadas. Não é por só querer mulheres bonitas no desporto, como alguns acusam. Há uma correlação, porque características masculinas não são bonitas nas mulheres. E há uma preferência clara por mulheres bonitas que, por isso, têm vantagens em contratos publicitários, patrocínios e afins. Mas não há necessidade de exigir mínimos de beleza feminina nas competições desportivas. O problema está especificamente nas características masculinas que dão a algumas atletas vantagem sobre todas as outras. Se bem que as provas masculinas também sejam dominadas por certas combinações de genes, como os de Tyson, Ronaldo ou Bolt, isto aumenta o valor de toda a hierarquia e beneficia outros homens perto do topo. Com as mulheres não é assim e não ganham nada em levar socos de alguém mais forte. As vitórias de atletas como Khelif e Yu-ting podem parecer exemplos de inclusão e progressismo mas desencorajam a participação das outras 9999 em cada dez mil que não têm cromossoma Y.

Atrair atletas para estes eventos exige incentivos. O incentivo principal para os homens é sexualizar-se pela competição e quanto mais renhida melhor. Às mulheres isto não serve. Algumas provas femininas salientam atributos que sexualizam as mulheres mas a maioria é mera cópia de provas masculinas e o melhor que se pode fazer é tornar a competição justa e equilibrada para o maior número de mulheres. É isto que se tem feito com testes aos cromossomas, hormonas e diversas regras conforme a modalidade. A febre das identidades está a baralhar tudo mas uma federação desportiva não tem competência para decidir se alguém é homem ou mulher. Nem precisa. Basta identificar, em cada modalidade, que características excluir para não fazer a maioria das atletas sentir-se injustiçada. Por exemplo, não permitir atletas com cromossoma Y, sejam de que sexo ou género forem. Assim, deve haver dois tipos de competição. Um sem restrições porque isso é o que os homens preferem, e o outro excluindo vantagens que a maioria das mulheres considere injustas. E isto já se faz. Por exemplo, na Federação Catalã de Futebol só a liga feminina é que tem restrições. Na liga masculina não há quaisquer requisitos de sexo, hormonas ou cromossomas (4). Parece-me uma forma sensata de atrair o maior número de pessoas à competição desportiva sem cair em polémicas acerca do que é ser homem ou mulher.

1- BBC, What does science tell us about boxing’s gender row?
2- Maria João Marques, Público, O ano em que o desporto feminino de alta competição se tornou paródia
3- Marca, Boxing,
How many children does Mike Tyson have and from how many different women?
4- Público, A primeira equipa trans de futebol de Espanha estreia-se na liga masculina

sábado, setembro 28, 2024

Contra a liberdade de expressão.

Defendi várias vezes que a liberdade de expressão é um direito fundamental. Foi um erro. Há muitas formas de expressão que violam direitos dos outros, como a ameaça, a burla, ou o falso testemunho. Se há formas legítimas e ilegítimas de expressão então devemos poder identificar um direito mais fundamental de onde essa diferença se possa inferir. E se não o fizermos facilitamos a falácia de justificar qualquer censura com o "tem de haver limites", por muito imbecil que seja o limite proposto. Por exemplo, não ofender. Por isso, em vez da liberdade de expressão proponho que o fundamental é a liberdade de consciência no sentido lato de tudo o que pensamos ou sentimos. Em concreto, defendo que o colectivo não deve coagir a pessoa em função do que esta pensa ou sente. Julgo que isto é consensual porque mesmo quem quer controlar o que os outros pensam, e infelizmente há cada vez mais gente assim, ainda tem relutância em admiti-lo explicitamente.

Uma implicação deste direito é não ser legítimo proibir a expressão de algum tipo de pensamento ou sentimento. Não precisamos invocar a liberdade de expressão para isto. Basta o princípio de que os direitos de cada um não dependem do que lhe diz a sua consciência. Por exemplo, até 2011 as forças armadas dos EUA proibiam militares homossexuais de revelar a sua orientação sexual ou falar acerca das suas relações. Negar aos homossexuais um direito que os heterossexuais têm viola o dever colectivo de respeitar a liberdade de consciência. Também se proibíssemos os religiosos de falar sobre as suas crenças ou os comunistas de dizer o que pensam do capitalismo estaríamos a violar essa liberdade. Este é um problema das leis contra o “discurso de ódio” ou "ofensas". Não sendo legítimo coagir as pessoas pelo que pensam também não podemos negar o direito de alguém dizer o que pensa ou sente só porque não gostamos do que se passa na sua mente.

Outra implicação da liberdade de consciência é o direito de acesso a informação e opiniões porque, sem isso, a liberdade de pensar fica muito reduzida. Por exemplo, se eliminarmos todas as referências ao cristianismo ninguém poderá escolher ser cristão a menos que invente o cristianismo de raiz, o que é improvável. Como quase todas as nossas opiniões são seleccionadas e adaptadas daquilo que encontramos nos outros, a censura de ideias que não se quer ver adoptadas é muito apelativa. É favorita de qualquer regime autoritário. O seu propósito nem é tanto limitar a expressão em si mas, sobretudo, dificultar o pensamento. Ou, falhando isso, impedir que a pessoa descubra que há outros a pensar o mesmo. Por exemplo, a Rússia proíbe a divulgação de informação ou opiniões que promovam a homossexualidade. Isto não impede que haja homossexuais mas tenta isolá-los. Por cá faz-se o mesmo com o racismo. Tudo isto viola a liberdade de consciência porque tenta impor restrições ao pensamento das pessoas.

A liberdade de consciência não implica que se possa dizer tudo. Afirmar uma mera opinião como facto, por exemplo, é aldrabice. Se uma pessoa acredita num deus, na astrologia ou na vida depois da morte deve ter a liberdade de o afirmar enquanto crença mas só será legítimo dizer que é mesmo verdade se tiver evidências disso. À falta destas, obter vantagens enganando os outros até deve ser considerado burla. Também não é legítimo gritar na rua de madrugada, devassar a privacidade de terceiros, ameaçar alguém, incitar crimes, espalhar mentiras e assim por diante. É por isso que invocar uma liberdade de expressão cria problemas. Há muitos critérios legítimos para a limitar. O que não é legítimo é limitar a expressão de um pensamento pelo teor do pensamento em si. Discriminar contra quem odeia em vez de amar ou contra quem tem uma opinião negativa em vez de positiva são violações da liberdade de consciência. Não gostarmos daquilo que alguém pensa não é justificação para lhe negar direitos que teria se pensasse como nós.

Uma objecção que encontrei é a de que devemos regular que pensamentos as pessoas exprimem porque somos todos influenciáveis e, por isso, ninguém é totalmente livre de escolher as suas opiniões. Mas o facto de formarmos as nossas opiniões com base no que encontramos à nossa volta não dá legitimidade a ninguém de decidir por nós que opiniões podemos encontrar. Relacionada com isto está a objecção de que temos de censurar para proteger a democracia. O perigo, alegam, é que se espalhem ideias anti-democráticas. Mas o problema é o mesmo. O fundamental da democracia é que o poder do colectivo seja exercido em função do consenso dos indivíduos. Só é democracia se o poder assentar nas escolhas de cada um de nós, todos por igual. Se alguém tiver o poder de censurar ideias e com isso condicionar as escolhas dos ourtos deixa de haver democracia. Isso é precisamente o fundamento de qualquer regime autoritário.

Nem tudo o que pensamos ou sentimos é bom e ideias más devem ser combatidas. Mas de igual para igual. Sem censura. Sem excluir quem pensa diferente. É verdade que para permitir o diálogo não podemos aceitar ameaças e devemos responsabilizar quem mente. Mas não deve haver pensamentos proibidos. Compreendo que isto preocupe muita gente porque há ideias assustadoras defendidas por pessoas irracionais, com quem adianta de pouco argumentar. Mas há outras ferramentas. Podemos ridicularizar, blasfemar, ofender ou insultar. Podemos ir comentando os seus posts até nos bloquearem. O que não é legítimo é coagir alguém a calar o que pensa. Não por um direito fundamental de se exprimir mas pelo direito de pensar.

segunda-feira, julho 22, 2024

Igualdade salarial.

Em Março o Presidente afirmou não haver democracia enquanto, entre outras coisas, não houver igualdade salarial entre homens e mulheres (1). Miguel Esteves Cardoso propôs então cobrar aos homens a diferença para equilibrar as contas (2). E eu, feito tanso, quando vi o texto no Facebook fui comentar como se fosse a sério. Gentilmente me explicaram que era sátira, apontando que devia ter reparado no autor e no absurdo que seria tirar dinheiro aos homens para dar às mulheres. Concedo o primeiro ponto mas, infelizmente, neste tópico o absurdo não é indício de sátira. Por exemplo, Kristoffer Berg, investigador na Universidade de Oxford, defende o mérito de cobrar um imposto extra aos homens para subsidiar salários das mulheres apontando apenas como eventual defeito ser uma medida discriminatória (3). Mas quotas também o são e muitos as aceitam como se fosse uma medida legítima. O problema é que a moda das igualdade estatísticas, como o salário, descura ética, factos e até a razão.

A igualdade de direitos é uma noção clara e intuitiva: o Estado tem o dever de tratar todos os cidadãos por igual e todos podem reivindicar do Estado os mesmos direitos. A "igualdade" salarial é estranha porque pessoas diferentes merecem salários diferentes. Até quando fazem o mesmo trabalho. Guarda-redes, professores, empregados de balcão ou seja o que for não são todos iguais. É justo que pessoas diferentes façam coisas diferentes de formas diferentes por salários diferentes. E homens e mulheres são, em média, muito diferentes. É estranho, por isso, haver mais preocupação com 12.7% de diferença salarial (4) do que com as centenas de milhões de mulheres que ainda não têm direitos iguais aos dos homens.

Suspeito que uma razão é os países onde mulheres mais sofrem de mutilação genital, homicídios "de honra", subordinação legal aos homens e outros atentados aos seus direitos não estarem sob o patriarcado do homem branco. Sendo agora tabu criticar quem não é homem branco ocidental, olha-se só para as diferenças estatísticas que surgem em sociedades que dão a todas as pessoas o direito de serem diferentes. Outra razão é que focar estatísticas em vez de direitos poupa o trabalho crítico de pensar em valores éticos. Assim, qualquer contabilista com uma folha de cálculo pode ser activista. Basta encontrar uma diferença de tantos por cento.

Um problema desta abordagem é presumir o que devia testar, assumindo que uma diferença salarial não explicada é uma injustiça. O raciocínio parece ser que se não é explicado então é discriminação e isso viola um suposto "direito a salário igual". Nada disto faz sentido. Primeiro, há muitas diferenças que não se costuma medir nestes estudos. Se compararmos o grupo das pessoas altas, musculadas e que não sofrem de dores ou hemorragias com o grupo das pessoas baixas, mais leves e que têm regularmente dores e hemorragias não será estranho que os salários médios sejam diferentes. Mas se bem que se invoque estas diferenças sexuais em testes físicos da admissão (5) ou licenças por menstruação (6), na análise das diferenças salariais vai tudo para a categoria de "discriminação por falta de outra explicação".

Além disso, a discriminação é normalmente legítima. Em média, futebolistas ganham mais do que jogadores de badminton. Não por chutar a bola ser intrinsecamente mais valioso que dar com a raquete numa coisa esquisita mas porque as pessoas gostam mais de futebol. Pura discriminação, tal como a que faz actores bonitos ganharem mais do que actores feios, a moda feminina ser mais lucrativa que a masculina, o pugilismo dar mas dinheiro aos homens e assim por diante. Vindo o salário de uma transacção voluntária entre quem presta um serviço e quem o compra, é óbvio que a discriminação vai ter um grande peso porque cada um vai gastar o seu dinheiro de acordo com as suas preferências subjectivas. Por isso, nem se pode assumir que há discriminação por omissão nem se pode concluir daí haver uma injustiça. Há certamente injustiças nos salários mas têm de ser devidamente identificadas e não apenas presumidas.

Como não encontram qualquer injustiça não conseguem propor uma solução que não seja reduzir a diferença das médias. Que nunca é o problema. Por exemplo, um dos indicadores com maior desigualdade de género em Portugal é o das mortes por acidente de trabalho: 120 homens e 5 mulheres por ano (7). Mas reduzir para 100 homens e 1 mulher por ano seria bom, salvando 24 vidas, mesmo aumentando cinco vezes a desigualdade. Duplicar o número de mulheres mortas reduziria a desigualdade para metade mas seria uma má solução. O foco na igualdade das médias advém de não saberem o que se passa. O resultado são medidas injustas. Em 2023 passou a ser obrigatório o pai usufruir de 28 dias da licença parental do casal (8). Isto aproxima as médias à custa da liberdade e qualidade de vida dos casais, assumindo o legislador o poder de decidir como usam a licença. Outro exemplo é a recomendação do Parlamento Europeu para os Estados membros acabarem com a declaração conjunta de rendimentos nos casais. O objectivo é reduzir a diferença de rendimento penalizando os casais nos quais o homem ganha mais, o que "incentiva" a mulher a ir trabalhar (9).

Das premissas às soluções, toda esta narrativa da igualdade salarial é uma treta que está a prejudicar muita gente. Há injustiças nos salários. Por exemplo, profissionais da recolha do lixo, supermercados, hospitais, transportes e outros serviços essenciais ganham muito abaixo do que seria justo dada a importância do trabalho que fazem. Mas as diferenças estatísticas entre grupos de pessoas, por si só, são irrelevantes. Fazem um brilharete na folha de cálculo mas combater isso não só não resolve problema algum como acaba por atrapalhar a vida das pessoas.

1- Público, 8 de Março de 2024, Marcelo sobre Dia da Mulher: “Sem verdadeira paridade de género não há democracia”
2- Texto disponível no blog Entre as Brumas da Memória: Uma solução masculina

3- Kristoffer Berg, Oxford University Centre for Business Taxation. Should women pay lower taxes?
4- Euronews, Quanto é que as mulheres ganham menos do que os homens?
5- Por exemplo, nos testes físicos de admissão para a PSP, os homens têm de saltar sem apoio um muro de 90cm e as mulheres um muro de 70cm. A premissa parece ser que, quando perseguirem criminosos, as mulheres vão encontrar muros tendencialmente mais baixos: Provas Físicas PSP: Preparação para o concurso para formação de Agentes da PSP
6- O ano passado o PAN propôs, «Na sequência de um pacote de reformas aprovado pelo governo espanhol [...] uma lei que concede a mulheres que sofrem de dores graves e incapacitantes durante a menstruação, o direito de solicitar uma licença médica de até três dias de ausência ao trabalho»: Criação de projeto-piloto para atribuição de licença menstrual. O que me parece fazer sentido. Um homem com dores e hemorragias também ia querer ficar em casa. É evidente que isto afecta o desempenho e a motivação para trabalhar.
7- Portal da ACT, Acidentes de trabalho mortais
8- DN, Licença parental do pai passa a ser de 28 dias seguidos ou interpolados.
9- Parlamento Europeu, Gender equality and taxation policies in the EU .

terça-feira, março 19, 2024

Viragem à direita.

O PS teve nestas eleições menos quinhentos mil votos do que em 2022. Não espanta, com os escândalos recentes e tantos anos de governação. Novidade foi a AD ganhar apenas metade disso e o CHEGA triplicar o resultado de 2022 com mais setecentos mil votos. Em parte porque os partidos da AD estão a perder para o CHEGA eleitores que gostam de autoridade, castigos, e respeitinho. É pena haver pessoas assim mas antes declarados do que à socapa em partidos supostamente sociais e democratas. Mais relevante deve ter sido o tal "voto de protesto", que me parece ser movido pelo mesmo impulso que leva o adepto de um clube a torcer por quem joga contra o clube rival. É para ver o outro perder. O PS e o PSD puseram-se a jeito disto escolhendo líderes pelos amigos que têm dentro dos partidos em vez da capacidade de mobilizar eleitores. André Ventura foi mais eficaz, em parte por ser mais fácil apontar defeitos do que propor soluções viáveis mas em parte também por ser melhor a usar os meios modernos de comunicação. Como as campanhas eleitorais fazem das eleições um circo em vez de uma colaboração para eleger representantes de todos os eleitores, agrava-se a vontade de votar como quem atira uma tarte à cara do palhaço. Mas sempre reduziu a abstenção em seiscentos mil votos. Isso é bom porque quem se abstém facilmente se ilude julgando que não tem culpa de nada. Quem votou no CHEGA vai perceber que tipo de gente ajudou a eleger. No entanto, mesmo considerando todos estes factores, o que mais me preocupa é o politicamente correcto. Mas para explicar porquê tenho de esclarecer primeiro o que quero dizer com isto.

No dia 22 de Janeiro de 1934 estreou em Moscovo a opera Lady Macbeth de Mtsensk, de Shostakovich (1). A história de Katerina envenenar o sogro, estrangular o marido com a ajuda do amante e acabar num campo penal na Sibéria foi um estrondoso sucesso. Até 1936, quando Estaline foi ver a peça que tanta gente elogiava e decidiu que atentava contra os ideais socialistas. Ficou proibida na URSS até 1961. O que eu quero dizer por politicamente correcto é o uso de poder político para interferir na expressão, pensamento e partilha de ideias. O termo "politicamente correcto" surgiu precisamente na década de 1930 para designar este tipo de coisas (2). Por cá também estamos a sofrer disto. Há leis a proibir opiniões ou informação que possa ofender certas etnias ou nacionalidades (3) e recomendações do governo para a comunicação social omitir informação sobre «nacionalidade, etnia, religião ou situação documental» de quem comete ilícitos (4). E o poder político mais fundamental em democracia é o que exercemos directamente pelo nosso direito de associação e manifestação, e também este está a ser abusado quando se organiza protestos para intimidar e "cancelar" a troca de ideias entre terceiros (5). Em democracia tem de ser permitido defender qualquer ideia. Mesmo acerca de direitos fundamentais. Por exemplo, quem defende o direito ao aborto defende que certos seres humanos não têm direito à vida. Mas leis que proibissem questionar o direito à vida, indicações do governo para a comunicação social não mencionar o aborto ou protestos organizados para impedir palestras sobre o aborto seriam abusos inaceitáveis em democracia. Porque numa democracia o poder político tem de estar subordinado às opiniões e valores de todos, o que exige liberdade para pensar e partilhar ideias. O politicamente correcto inverte isto, usando o poder político para condicionar o que as pessoas podem saber, dizer ou pensar, como se faz em ditadura.

Além da ameaça à democracia, o politicamente correcto alimenta demagogos. Há partidos que são explicitamente contra este abuso. É um dos poucos méritos do Iniciativa Liberal, por exemplo. O CHEGA não é um destes partidos e André Ventura até já defendeu precisamente este tipo de medidas (6). Mas esta pressão para reprimir certas opiniões amplia o efeito do "ele diz as verdades" e a multa de 438 euros e 81 cêntimos que André Ventura pagou pelo que publicou sobre ciganos foi o melhor investimento que fez em campanha eleitoral (7). Isto fez muita gente cuja opinião tentam reprimir identificar-se logo com Ventura mesmo discordado dele em muitas coisas. O politicamente correcto também mina a confiança nas instituições. Por exemplo, o sistema judicial tem certamente registada a nacionalidade de arguidos e condenados mas a lei proíbe divulgar informação que possa ofender alguém pela sua nacionalidade. Assim, qualquer correlação entre uma nacionalidade e algum tipo de crime tem de ficar oculta ou ser diluída em categorias genéricas como "estrangeiros" e sempre que há coisas que não nos dizem levanta-se a suspeita de que nos estão a esconder más notícias por serem politicamente incorrectas.

É tentador culpar "fachos" e racistas por esta viragem à direita. E concluir daí ser preciso reprimir ainda mais para ganhar "a luta". Mas a democracia não é um combate. É um trabalho de equipa. É o processo pelo qual encontramos consenso precisamente para evitar repressão e violência. Mas muita gente que assiste a pancadaria nos centros de saúde, é vítima de furtos ou roubos, tem problemas com certos vizinhos e muitas outras queixas, que sempre houve e sempre haverá, agora é acusada de racismo ou xenofobia se tenta trazer o seu caso a público. Negar às pessoas o direito de dizer claramente o que as preocupa aumenta o poder da insinuação e da demagogia. E cria ressentimentos que se reflectem no voto, onde ainda não as podem silenciar. Vê-se isto nos EUA, no Reino Unido e por toda a Europa. É preciso rever esta hipótese atraente de que o problema está só nos outros, ou porque dizem o que não devem ou porque dão ouvidos a quem não merece. Deixar as pessoas falarem não resolve tudo mas incentiva todos a proteger a democracia. Abusar do poder político para impor opiniões tira esse incentivo a muita gente e empurra votos para quem souber aproveitar-se do descontentamento.

1- Wikipedia, Lady Macbeth of Mtsensk (opera)
2- Wikipedia,
Political correctness
3- PGD Lisboa, Lei n.º 93/2017, de 23 de Agosto
4- CICDR, Posição sobre referências a nacionalidade, etnia, religião ou situação documental em notícias a partir de fontes oficiais e em meios de comunicação social.
5- DN, Palestra de Jaime Nogueira Pinto cancelada devido a ameaças
6- DN, Ventura imita Trump e também quer censurar Twitter
7- Público, André Ventura multado em mais de 400 euros por discriminar ciganos

sexta-feira, março 08, 2024

O CHEGA.

Durante uma campanha eleitoral abundam os truques de propaganda e demagogia, dos quais todos os partidos, infelizmente, são culpados. Mas o CHEGA destaca-se pela vantagem que tem em dois dos mais importantes: a repetição de mensagens simples, emocionalmente carregadas, e a defesa de posições ambíguas com que o maior número de eleitores julgue concordar.

A razão para isto é que a generalidade dos partidos congrega pessoas com uma visão mais ou menos alinhada de como a sociedade deve ser. Seja comunismo, socialismo, liberalismo, democracia social ou o que for, a missão de um partido normal é convencer os eleitores a apoiar essa visão. E isto obriga a explicar alguma coisa acerca do que querem fazer. O CHEGA é diferente. Como sugere o seu nome e origem, o CHEGA é um partido de protesto que se caracteriza por ser contra. Contra ciganos, corrupção, imigrantes, modernices, o que for, desde que seja contra. Isto reflecte-se no ambiente interno conturbado, com entradas e saídas frequentes por falta de qualquer cola além do discurso revoltado do líder. E nota-se explicitamente nos princípios do partido (1), que se diz contra «todas as formas de totalitarismo», «a criminalidade hedionda e violenta», «todas as formas de racismo, xenofobia e de qualquer forma de discriminação» e o «actual sistema de extorsão fiscal transformado em terrorismo de Estado», entre outras coisas das quais ninguém é a favor, que são difíceis de resolver mas que é muito fácil ser contra. E o que diz defender, como a liberdade e a «dignidade da pessoa humana», é suficientemente banal e vago para se poder dedicar ao protesto e a dizer que é tudo uma vergonha sem ter de explicar a utilidade das suas propostas em concreto.

Um exemplo disto é a solução do CHEGA para a corrupção: aumentar as penas, dar mais poderes à investigação e proibir políticos corruptos de se recandidatarem. São propostas simples, fáceis de entender e que ficam bem em qualquer debate. Mas não resolvem os problemas principais. Por um lado, a aceitação cultural da corrupção, como a prática da cunha, do amiguismo e do jeitinho, e até uma certa admiração por corruptos. Ele rouba mas faz. Proibir corruptos de se candidatarem não resolve o problema fundamental de haver tanta gente a votar neles. E, por outro lado, a lei só afecta corruptos incompetentes porque a principal corrupção é legal. Por exemplo, deputados trabalharem para entidades privadas. É corrupção descarada, mas legal, que legisladores sejam pagos por interesses privados enquanto, supostamente, representam os eleitores no Parlamento. Os partidos da esquerda tendem a exigir exclusividade dos seus deputados mas a lei não o obriga e, à direita, é comum deputados trabalharem para empresas. Incluindo no CHEGA. O próprio André Ventura o fez durante vários meses apesar de ter prometido que não o faria (2). Sem motivação para resolver problemas, o CHEGA pode escolher propostas unicamente para propaganda.

Outra vantagem de não ter uma ideologia coerente é que o CHEGA pode ser ambíguo, ou até contraditório, no que defende. A interpretação fica ao gosto de cada potencial eleitor. Por exemplo, nos seus princípios o CHEGA defende a liberdade, um Estado mínimo que deve ser «neutro nas questões religiosas» e repudia explicitamente «todas as formas de racismo, xenofobia e [...] qualquer forma de discriminação». Mas afirma também que o Estado deve reconhecer e respeitar «o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica na estruturação da civilização europeia», que deve exigir de qualquer imigrante «a adopção plena da cultura portuguesa» e que é «indispensável a clara opção por populações com raizes em culturas semelhantes à nossa pelos recém-chegados». Cada um pode concluir daqui o que quiser. Partidos normais, comprometidos com ideologias explicitas e já conhecidas, têm menos liberdade para fazer isto e muitos estão a perder votos para o CHEGA precisamente porque não podem apresentar os seus princípios como um buffet onde cada um petisca o que lhe apetece.

Obviamente, isto só serve para caçar votos. Depois não há um plano concretizável ou sequer uma ideologia consistente que oriente o partido. Como se viu com o Brexit, com Trump ou Bolsonaro, são votos perdidos em pessoas que só querem maximizar o seu proveito pessoal. E, a prazo, isto reforça a ideia de que os políticos não prestam e são todos a mesma coisa. É uma profecia que se faz cumprir a si mesma porque quanto mais eleitores pensam assim menos se preocupam em distinguir entre propostas políticas viáveis e banha da cobra, beneficiando a propaganda demagógica e agravando o problema.

Este problema não pode ser resolvido pelo sistema. É fundamental em democracia que cada um vote como quer. Portanto, tem de ser resolvido individualmente, por cada eleitor. Por isso proponho o seguinte exercício a quem pondera votar no CHEGA por achar que, sendo os políticos todos a mesma treta, ao menos estes dizem algo diferente. Se assumimos serem todos a mesma treta não podemos julgar que André Ventura, depois de 17 anos no PSD, ou os seus companheiros vindos do PNR, PPV/CDC e outros movimentos de extrema direita são mais virtuosos e honestos do que os políticos dos outros partidos. Sob esta premissa, o que sobra para distinguir entre partidos será apenas a ideologia que move os políticos de cada um. O exercício é descartar a demagogia das teses contraditórias ou vagas que o CHEGA deixa à interpretação do eleitor e tentar identificar o cerne ideológico do partido. A mim parece-me que, filtrado o ruído, apenas sobra um nacionalismo visceral e um racismo mal disfarçado como linhas orientadoras deste partido. E isso, espero eu, representa muito menos eleitores do que aqueles que temo irão votar CHEGA no próximo Domingo.

1- Partido CHEGA, Declaração de Princípios e Fins
2- Wikipedia, André Ventura