Mostrar mensagens com a etiqueta argolada. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta argolada. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, julho 25, 2017

Treta da semana (atrasada): o protesto.

Paco Bandeira destruiu cinquenta mil CD num protesto contra os downloads, a rádio e as finanças (1). O protesto foi filmado em 2010 pela Saloia TV, foi noticiado pela comunicação social em 2015 (2) e agora foi notícia novamente. É o que dá só contratarem estagiários; ficam sem gente nas redacções quem se lembre de mais do que um ou dois anos do passado. À conta disto, Vasco Granja tem morrido bastante mais vezes do que seria de esperar, mesmo para quem deixa tanta saudade.

Um protesto demonstra o empenho na luta contra uma injustiça ou indignidade. Como a imolação dos monges vietnamitas em 1963, ou do tunisino Mohamed Bouazizi em 2011, ou a greve de fome dos membros do IRA em 1981, por exemplo. Bandeira destruiu discos que não conseguia vender e que optou por nem dar por causa dos impostos. Na escala de empenho do protesto, foi como fazer greve de fome entre o almoço e o jantar com um breve intervalo para o lanche.

Quanto ao alvo do protesto, a explicação prometida no vídeo ainda está para chegar mas, numa entrevista recente, Bandeira esclarece que o material destruído foi «um trabalho único, inédito, feito por Joaquim Pessoa (todos os textos) e as canções por Carlos Mendes, Fernando Tordo, Joaquim Pessoa, Jorge Palma, José Mário Branco. Produzi e paguei aos autores todos e paguei tudo na Sociedade Portuguesa de Autores»(3). Era uma «retrospectiva dos Descobrimentos», a propósito da Expo 98, que Bandeira aparentemente contava vender à Caixa Geral de Depósitos. Além de protestar contra a cobrança de impostos por doações, estava a protestar porque «agora toda a gente tira da Internet, toda a gente faz cópias piratas» e porque as estações de rádio também estão a «passar a música a cilindro». Segundo o narrador, Guilherme Leite, foi «um protesto contra aqueles que roubam os autores portugueses ao fazerem download da Internet em vez de comprarem o trabalho de quem trabalha».

Neste contexto, o protesto é estranho. Este álbum não parece ter sido partilhado na Internet ou sequer ter estado à venda. Também não parece ter interesse para estações de rádio. Além disso, Bandeira diz que pagou a todos os autores, pelo que não lhes podem ter roubado o trabalho. Foi um negócio que correu mal e foi só por isso que Bandeira destruiu tudo. O que diz muito acerca da mentalidade de quem quer vender música às rodelas.

A remuneração pelo trabalho segue um processo comum e familiar. As partes interessadas celebram um contrato e aquela que vende o seu trabalho recebe dinheiro da outra que o compra. É assim que quase todos os profissionais trabalham, incluindo muitos artistas que são contratados para dançar, tocar, cantar ou compor. Pelo que Bandeira relata, foi assim que pagou aos artistas que criaram as músicas daqueles CD. Não é esta relação laboral que suscita protestos. O que está a falhar é um tipo diferente de relação laboral que se estabeleceu, em alguns sectores, graças ao monopólio sobre a distribuição, inicialmente por limitações tecnológicas e hoje mantido apenas pela lei. O controlo da distribuição dá uma alternativa aos investidores que compram trabalho artístico. Em vez de pagar o trabalho e arcar com o risco do investimento, como é normal noutras actividades, passam o risco para os trabalhadores pagando-lhes apenas conforme o sucesso comercial da empreitada. Ironicamente, chamam “direitos de autor” a este direito de trabalhar primeiro e só receber mais tarde se o negócio correr bem ao patrão.

Já em 1998 era de prever que este modelo fosse deixar de funcionar. Talvez por isso os colegas de Bandeira, experientes, tivessem preferido receber dinheiro em vez de promessas de lucro futuro. E foi por isso que Bandeira ficou a arder com “vinte mil contos”, mais o aluguer do cilindro. Os hábitos dos ouvintes não mudaram muito. Ouviam rádio à borla; agora é pelo YouTube no telemóvel. Gravavam discos e programas da rádio para cassetes; agora fazem download. Compravam discos; agora subscrevem o Spotify. Para os artistas o fundamental também não mudou. Os que são mesmo bons arranjam quem lhes pague o trabalho. Os outros não, mas nem toda a gente pode ser artista de profissão. O que mudou muito foi o negócio da distribuição. Foi isso que tramou Bandeira. Ele estava a contar com a rádio e as lojas para ir ganhando renda durante anos a vender aqueles CD mas a distribuição tornou-se demasiado rápida e descontrolada para esse negócio funcionar.

É isto que explica o desfasamento entre a visão apocalíptica dos Bandeiras e a explosão de criatividade artística na Internet. A revolução digital foi boa para os profissionais que se adaptaram, foi boa para os amadores e foi excelente para o público em geral. Quem estava a contar com o dinheiro das portagens é que fica a ver o pessoal a passar ao lado da cancela.

1- Observador, Paco Bandeira destrói 50 mil CDs seus em protesto e grava momento em vídeo
2- YouTube, Saloia TV, PACO BANDEIRA DESTROI 50 MIL DISCOS... há 6 anos.
3- Move, Paco Bandeira sobre a destruição de discos: “É um jet lag com sete anos de atraso”

sexta-feira, março 10, 2017

Treta da semana (atrasada): a palestra.

Alguns alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) tinham pedido uma sala para uma palestra. Seguindo o que parece ser o procedimento normal, dirigiram-se à associação de estudantes (AEFCSH), que encaminhou o pedido ao conselho pedagógico e este reservou a sala. Dias antes do evento, a AEFCSH decidiu retirar o pedido por razões como a de que «estas pessoas não deveriam ser toleradas porque não respeitam os mais básicos princípios de respeito e democraticidade, já que os seus ideais políticos são orientados em torno de princípios fascistas»(1). O director da FCSH acabou por cancelar ou adiar a palestra por estar «em causa a segurança do acontecimento». Isto por alegadas ameaças cujo teor não consegui apurar, mas «O diretor da faculdade acredita que o alvo das ameaças não era Jaime Nogueira Pinto»(2). De seguida, o PNR manifestou-se e alguns simpatizantes alegadamente ameaçaram membros da AEFCSH (3). Naturalmente, nenhuma destas organizações assume responsabilidade por actos individuais e facilmente sacodem a água do capote. Entretanto, o PNR e a Nova Portugalidade, o grupo que promovia a palestra, aproveitam a publicidade (4).

Há duas lições importantes a retirar daqui. A primeira é a de que não se deve combater ideais fascistas com métodos fascistas. Se alguém quer defender imbecilidades, o melhor é deixá-lo falar. Veja-se, por exemplo, o efeito salutar dos tweets do presidente Trump ou dos comentários criacionistas aqui neste blog. A coisa mais inteligente que os anti-fascistas podiam ter feito seria ir à palestra, anotar cuidadosamente as opiniões de Nogueira Pinto e mostrar a toda a gente o que os fascistas defendem. Nestas coisas não há melhor antídoto do que luz e ar fresco. Em vez disso, caíram que nem patos na jogada dos fascistas. Deram mais visibilidade ao movimento, mais legitimidade à luta dos “patriotas portugueses” e uma valiosa oportunidade de gerarem simpatia pela sua ideologia sem terem sequer de dizer que ideologia é essa. Como a intolerância dos senhores da AEFCSH a “estas pessoas” não tem eficácia nas urnas, impedir as pessoas de saber, pela boca dos próprios, o que estes movimentos defendem arrisca a criar surpresas desagradáveis nas eleições. É muito mais fácil simpatizar com um Nogueira Pinto que foi impedido de falar do que com um Nogueira Pinto que se ouviu falar.

A outra lição é mais fundamental. É a da necessidade de ter ideias claras acerca das liberdades das pessoas e da legitimidade de entidades como a FCSH e a AEFCSH policiarem opiniões. Este problema está minado de chavões como o do “discurso de ódio”, e pregões como o de que a liberdade de opinião não é a liberdade de fazer tudo, que só servem para criar confusão e justificar decisões arbitrárias. É preciso desarmar estas armadilhas. Quando defendemos a liberdade de crença religiosa não estamos a dizer que o crente pode fazer tudo. Não pode fazer sacrifícios de pessoas ou animais nem procissões com música às duas da madrugada. O que estamos a defender é simplesmente que instituições que lidam com o público, seja uma universidade, seja uma repartição de finanças ou uma pastelaria, não podem discriminar pessoas em função da sua crença religiosa. As pessoas podem fazê-lo. Qualquer um de nós é livre de não casar com ateus, bloquear cientólogos no Facebook ou recusar-se a abrir a porta a testemunhas de Jeová. Mas uma associação de estudantes não pode tratar pessoas de forma diferente em função da sua crença religiosa, qualquer que seja a crença religiosa. Isto não quer dizer que não possa discriminar em função de outras coisas. Se a crença religiosa proíbe o crente de tomar banho, a associação de estudantes pode invocar a saúde pública e o mau cheiro como justificação para não autorizar reuniões dessa seita. Mas não pode fazê-lo pela crença em si.

É este o princípio fundamental da liberdade de expressão. Seria legítimo da AEFCSH negar sala para uma actividade que tivesse fins comerciais, que pusesse em perigo a segurança dos alunos, que perturbasse as aulas, que constituísse um crime e imensas outras coisas que poderiam justificar essa recusa. Mas a AEFCSH não tem legitimidade para negar sala a alguém só porque «os seus ideais políticos são orientados em torno de princípios fascistas», exactamente como não teria legitimidade para negar sala a alguém por ser judeu, ou do Benfica, ou homossexual. Antecipando o espantalho, não estou a afirmar que isto seja tudo a mesma coisa. O que estou a afirmar é muito mais restrito do que isso. É simplesmente que o colectivo de associados de uma associação de estudantes, enquanto tal, não tem legitimidade para discriminar pessoas em função de atributos pessoais como as suas convicções políticas ou religiosas.

Eu não sei que ameaças levaram o director da FCSH a cancelar ou adiar a palestra. Parece-me injusto que a resposta a ameaças seja prejudicar os ameaçados, mas desconhecendo os detalhes abstenho-me de opinar acerca disso. Mas sei que, na reunião da AEFCSH, esta associação tomou colectivamente a decisão de discriminar contra certos alunos simplesmente por causa das suas convicções políticas. Isto não só é uma patetice enorme, se queremos impedir o avanço de ideologias extremistas, como viola o dever que esta entidade tinha de respeitar a liberdade de opinião, de convicção política e de partilha de ideias de todas as pessoas que foram afectadas.

Nota: parece que a maneira como escrevi isto sugere que a Nova Portugalidade ou o JNP são fascistas. Não faço ideia se são ou não. Até me parece que “fascista” é mais um termo depreciativo que se atira aos outros mas que ninguém admite ser. A minha intenção era defender algo que me parece válido mesmo que a acusação seja verdadeira. A verdade da acusação em si não é relevante para este propósito.

1- Acta da RGA, cujo link agora não encontro mas acho que foi pelo Facebook: AEFCSH – UNL 5 Março, 18:48
2- TSF, Universidade Nova de Lisboa cancela conferência de Jaime Nogueira Pinto
3- Notícias ao Minuto, Associação de Estudantes da FCSH denuncia ameaças da extrema-direita
4- Ver, por exemplo, os screenshots aqui: Maria Vieira e a NP

domingo, janeiro 11, 2015

Treta da semana (atrasada): Impossível.

Demonstrando mais uma vez a extensão do seu conhecimento científico, Orlando Braga argumenta que «A evolução darwinista é impossível quando é concebida como “evolução aleatória e não guiada”, porque se não existe informação prévia (se não existir uma condução do processo que pressupõe a existência de informação), as hipóteses de algo acontecer sem essa informação tornam a evolução darwinista impossível.»(1). Há aqui alguns detalhes que não estão inteiramente correctos.

Em primeiro lugar, a evolução não é concebida como “evolução aleatória e não guiada”. Em biologia, o termo refere-se à variação da distribuição de características hereditárias numa população conforme novas gerações substituem as anteriores. O que se propõe ser mais ou menos aleatório são os mecanismos que influenciam a evolução de uma população. No caso da selecção artificial, a evolução é guiada pela acção propositada dos criadores de animais ou plantas. No caso da selecção natural, a evolução é guiada pelo efeito das características herdadas na probabilidade de reprodução de cada organismo. Noutros casos, o acaso pode ser muito importante. Quando um pequeno grupo de escaravelhos chega a uma ilha num tronco à deriva, muitas características da nova espécie de escaravelho que existirá nessa ilha uns milhões de anos mais tarde serão determinadas por acontecimentos fortuitos como cruzarem-se aqueles escaravelhos em vez dos outros que deambularam pelo areal sem encontrar parceiro. Com populações pequenas ou características sob fraca pressão selectiva o acaso é importante, mas com populações grandes e forte pressão selectiva este tende a diluir-se e é a tendência média que domina.

Em segundo lugar, o que Braga diz ser impossível seria meramente improvável se fosse um acontecimento único. E nem isso é, devido ao número de repetições. Braga dá «como exemplo a procura do tesouro na ilha: ou temos informação prévia da área onde pode estar o tesouro, ou prosseguimos escavando a terra de forma aleatória (sem informação). No segundo caso, a probabilidade de encontrarmos o tesouro é muito baixa se a ilha for grande.» Isto depende de quantos formos. A probabilidade de uma dada formiga, algures em Portugal, encontrar o açucareiro que deixei aberto na tenda é muito baixa. Mas como há muitas formigas, a probabilidade de alguma o encontrar é muito alta. Passa-se o mesmo com as mutações benéficas. Individualmente, têm uma probabilidade baixa, mas a evolução é um processo que ocorre em populações e ao longo de muitas gerações.

Finalmente, Braga alega que a evolução é impossível porque «não existe informação prévia» para se encontrar o tal tesouro. Mas a evolução não procura um tesouro ou qualquer alvo predeterminado. Em retrospectiva, sabemos que estes quatro mil milhões de anos de evolução fizeram uma de muitos milhões de linhagens desembocar no Homo sapiens. Mas é presunção crer que era esse o plano inicial e que a evolução andava à procura deste tesourinho deprimente. Para mais, a pesquisa não precisa guiar-se apenas por informação “prévia”, como um mapa do tesouro. Pode ser guiada por qualquer coisa que, a cada passo, indique se está “mais quente” ou “mais frio”. É o que faz a selecção natural. Se uma mutação for desfavorável tende a ser eliminada. Se for favorável tende a propagar-se pela população. É isto que, ou vai moldando a população num aperfeiçoamento contínuo de características que, a cada momento, conferem vantagens competitivas, ou então leva à sua extinção. Este último é, de longe, o desfecho mais comum. Mas isto nem tem uma direcção fixa nem tem um tesouro em mente e muito menos precisa de um mapa. Vai-se espalhando por todas as soluções de sucesso, dos vírus à baleia azul e a caldeirada toda que há pelo meio.

Braga alega que também o teorema de Gödel demonstra que a “evolução darwinista” é impossível. Infelizmente, a sua explicação não esclarece nada: « um computador suficientemente complexo para simular o trabalho cerebral [...] não permite calcular, em um tempo t, o que ele (computador) será num tempo t+1». O teorema de Gödel mostra que qualquer sistema formal suficientemente expressivo admite proposições verdadeiras que não podem ser demonstradas a partir dos axiomas desse sistema formal. Isto é importante para alguns problemas lógicos, matemáticos ou de computação mas não tem nada que ver com a teoria da evolução. Nem é relevante para a formalização matemática da teoria nem é preciso os escaravelhos saberem que o teorema de Goodstein sobre sequências de números naturais não pode ser demonstrado na álgebra de Peano para que os mais camuflados se escapem melhor dos predadores.

Braga conclui alegando que «Não se quer dizer que a teoria de Darwin seja falsa; o que se quer dizer é que é impossível.» A teoria de Darwin está, em alguns aspectos, ultrapassada. Talvez a teoria da evolução que temos hoje, que uniu a biologia molecular à genética de populações, um dia venha a ser substituída também. Até agora demonstrou ser, de longe, a melhor explicação para a origem das espécies mas nunca se sabe o que o futuro reserva. No entanto, não recomendo ao Orlando Braga que conte para já com o dinheiro do prémio Nobel.

1- O. Braga, A evolução darwinista é impossível


PS: Desta vez não posso por o link no Facebook. Por alguma razão, o Facebook decidiu que o meu nome não é verdadeiro e suspendeu a minha conta. Talvez a coisa se resolva em breve. Ou talvez não...

PPS: O problema com o Facebook já está resolvido.

domingo, setembro 07, 2014

Treta da semana: Gonçalismo.

Gonçalo Portocarrero de Almada propôs que «Apesar de, na aparência, a nossa sociedade ser machista, na realidade são elas que mandam!» (1). Passou depois a apresentar exemplos que sugerem precisamente o contrário. Começou por contar que, «no relato bíblico, foi a mulher que obrigou o homem a comer o fruto proibido». Se reconhecermos que este relato não é uma descrição correcta dos factos mas sim um mito inventado por homens, é evidente o machismo na atribuição da culpa à mulher. E a interpretação de Portocarrero é ainda mais machista porque a expressão original é simplesmente «tomou do seu fruto, e comeu, e deu também a seu marido, e ele comeu com ela» (Gen. 3:6). Interpretar isto como obrigar Adão a comer o fruto não está longe de interpretar uma mini-saia como “estar a pedi-las”.

Mais à frente, Portocarrero aponta que «Muitos privilégios da condição feminina não são extensivos aos homens: a consorte do rei é rainha, como as plebeias Letícia de Espanha, Sílvia da Suécia e Sónia da Noruega. Mas o marido da rainha só é príncipe, como Filipe de Edimburgo, Bernardo da Holanda ou Frederico da Dinamarca». A mulher que se case com um rei será rainha porque se presume que, havendo um rei, a rainha não manda nada e é simplesmente a esposa do rei. Para que a rainha seja a regente não pode estar casada com um rei e é por isso que o marido da rainha reinante tem de ser menos que rei. Senão seria ele a mandar. Isto só pode parecer discriminação em favor da mulher a quem também acreditar que três é um e que a bolacha é Deus. Para qualquer pessoa com discernimento é mais um exemplo de machismo e não de “privilégios da condição feminina”.

Portocarrero também critica a assimetria entre machismo e feminismo. «Um homem que considera as mulheres menos aptas para o exercício de um cargo ou profissão é, obviamente, machista. Mas, se uma senhora tecer a mesma opinião em relação aos cavalheiros, ninguém a acusará de feminista […] Em tese, também poderia haver um machismo bom e um feminismo mau.» Um machismo bom, duvido. Mas um feminismo mau, sim. O feminismo bom será o que defende a igualdade de direitos e rejeita a discriminação em função do sexo ou do género. O feminismo mau é também discriminatório, como o machismo. Por exemplo, é um feminismo bom defender que mulheres e homens devem poder fazer parte de corporações de bombeiros, ou de forças de segurança, sem discriminação. Mas será um feminismo mau o que defender que os testes físicos das mulheres devem ser mais fáceis do que os dos homens. Além de discriminatório, isto ignora o facto incontornável de que as exigências físicas das tarefas a executar não diminuem magicamente quando as tarefas são executadas por uma mulher.

No entanto, há uma grande diferença entre o machismo e o feminismo mau porque o machismo tem muitos séculos de tradição e uma aceitação social muito mais enraizada que qualquer feminismo, bom ou mau. Até os exemplos que Portocarrero escolheu demonstram isso claramente. Portanto, é como na canoagem. Quem remar olhando para o umbigo espera haver uma simetria entre a canoa apontar para aquele lado ou para o outro. Mas quem estiver atento à margem verá que é mais fácil empurrar a canoa a favor da corrente do que para o outro lado. Em águas paradas poderia ser como Portocarrero reclama mas, infelizmente, estamos muito longe disso. Tão longe que é preciso remar contra a corrente só para ficar parado e chamar feminismo à ideia tão simples de que devemos ter todos os mesmos direitos.

No entanto, concordo com Portocarrero quando afirma que «Impor restrições, por razão do sexo, no acesso aos cargos políticos, ou outros, é perverter a ordem da justiça». Mas lamento que seja inconsistente na aplicação desse princípio. Sendo padre, dá «graças a Deus por me ter chamado para a única profissão que elas nunca poderão exercer!» Não poderão porque, por razão do seu sexo, lhes impõem restrições no acesso a esse cargo. Mas, se não fosse essa perversão da ordem da justiça, poderiam perfeitamente fazer o que o senhor padre faz. Podem não ser muitas as mulheres com essa vocação, mas há com certeza algumas capazes de proferir disparates da mesma magnitude.

1- I Online, Eles e Elas.

domingo, outubro 13, 2013

A ciência à luz da fé, episódio já nem sei quantos.

O Mats escreveu há dias sobre a «forte relação entre o suicídio e o ateísmo» (1). Segundo o Mats, uma «Pesquisa científica […] apurou que [os ateus têm] mais parentes do primeiro-grau que haviam cometido suicídio, [...] mais tentativas de suicídio durante o curso das suas vidas […] declaravam ter menos [motivos] para viver, particularmente menos objecções morais contra o suicídio. Em termos de características clínicas, durante o curso das suas vidas as pessoas não-afiliadas religiosamente tinham mais impulsividade, agressividade e maiores transtornos devido ao uso passado de substâncias.»

Felizmente, o estudo que o Mats cita não justifica a desgraça que o Mats lhe atribui. Primeiro, o estudo não é sobre o suicídio entre ateus. A amostra estudada foi um conjunto de «Pacientes internados (N=371) que cumpriam os critérios DSM-III-R para um episódio depressivo grave»(2). Destes 371 pacientes, uma amostra não representativa da população em geral, 189 tinham um historial de tentativas de suicídio, 175 já tinham tido problemas com abuso de substâncias e apenas 66 tinham indicado não ter religião. Nem se pode extrapolar deste estudo para pessoas que não estejam internadas com episódios depressivos graves, nem a diferença nestes indicadores é assim tão grande como o Mats faz parecer. Os efeitos dos factores estudados rondam os 5%. Ou seja, quem estiver sujeito aos factores de risco tem uma probabilidade de suicídio 1.05 vezes (sim, um ponto zero cinco vezes) a que teria sem esses factores. Além disso, os autores descobriram que, descontando o efeito das objecções morais ao suicídio, a «associação entre afiliação religiosa e tentativas de suicídio não continuava significativa». Ou seja, o efeito, muito pequeno, em pacientes com casos graves de depressão deve-se apenas às opiniões que tenham acerca da moralidade do suicídio e não a serem religiosos ou ateus.

Não é claro onde o Mats queria chegar com isto. Mesmo que houvesse uma correlação entre suicídio e ateísmo, isso não contribuiria nada para justificar a conclusão de que o deus do Mats é menos fictício do que os restantes. Se descobrirem uma correlação entre as aftas e a rejeição da astrologia ou a unha encravada e o cepticismo acerca da mutilação de vacas por extraterrestres, também não é isso que me vai convencer. Mas o Mats deve precisar de pequenas “descobertas” como estas, ainda que ocorram mais na fantasia dele do que na realidade, para apoiar a sua crença no cristianismo evangélico. Com os disparates que isso acarreta, toda a ajuda é pouca. No entanto, se o Mats está mesmo preocupado com o suicídio, devia considerar alternativas mais eficazes. Por exemplo, tenho a certeza de que a taxa de suicídio entre as pessoas que acreditam no Pai Natal é muito menor do que a correspondente entre os que não acreditam. Seria uma mudança de crença simples e só com vantagens. A credibilidade era a mesma, poupava nos donativos, não perdia tempo em missas e em vez de rezar todos os dias bastava mandar uma carta para o Polo Norte uma vez por ano. Tudo isto somado a uma boa protecção contra o suicídio, porque meninos que se suicidam depois não levam prendinha.

1- Mats, A forte relação entre o suicídio e o ateísmo
2- Dervic et al, Religious Affiliation and Suicide Attempt , Am J Psychiatry 2004;161:2303-230

domingo, setembro 29, 2013

Treta da semana: Raposo contra Raposo.

O Henrique Raposo já protagonizou aqui alguns posts que, admito, não foram muito lisonjeiros. Por isso, desta vez começo por elogiar-lhe a capacidade de mudança. Não de melhoria, infelizmente, e temo que se esgote já aqui o elogio. Mas kudos por ter mudado, e foi azar que o Henrique Raposo tenha discordado tão completamente do Henrique Raposo sem que nenhum dos dois contribuisse com alguma coisa de jeito.

Na passada quinta-feira, no blog do Expresso, o Henrique Raposo descreveu a sua «utopia urbanística: cidades sem cães; cidades onde os passeios não são WC de bichos [...]; cidades onde os jardins não são latrinas para lulus e bóbis [...]; cidades onde um sujeito pode estar no parque sem ser interrompido por um cão a rosnar». E propôs que nos aproximássemos desta utopia por meio de «leis severas», como multas e proibições, porque «O civismo não nasce no coração dos homens e não está na genética de um povo. O civismo nasce na espada que protege a lei.»(1)

O Henrique Raposo de 2005 certamente discordaria. Escrevendo sobre o «Tabaco e Fascismo Hipocondríaco», o Henrique criticou o “americanismo moral” do «antitabagismo (antitabagismo é um bom eufemismo para aquilo que não passa de uma imposição burocrática de comportamentos)»(2). Segundo este Henrique, o pior é que «Para os americanos, esta cruzada é moral, isto é, é partilhada pela comunidade, é desenvolvida entre as pessoas. Só depois passa a lei. […] Na Europa, a coisa é burocrática, exterior ao indivíduo e terciária». No final, remata com um hipotético «cartão com a seguinte inscrição: “não fumo, mas como tenho um certo pó a fascistas, pode fumar ao pé de mim”.»

É uma divergência interessante. Enquanto o Henrique acha que o «civismo nasce na espada que protege a lei»(1) e, por isso, primeiro precisamos de leis que obriguem as pessoas a comportar-se como ele julga correcto para que depois interiorizem esses valores, o Henrique defende que essa «imposição burocrática de comportamentos […], exterior ao indivíduo e terciária» nunca deve preceder uma ideologia «moral, [...] partilhada pela comunidade [...] desenvolvida entre as pessoas»(2). Enquanto o Henrique defende que «o problema do asseio em Lisboa só será resolvido quando os donos dos cãezinhos receberem multas para pagar ali na hora»(1), o Henrique, por ter «um certo pó a fascistas», convida os fumadores a ignorar a lei e a fumar ao pé dele (2).

Isto pode parecer contraditório para quem não domina esta forma de argumentar. Para os adeptos, no entanto, faz todo o sentido. O Henrique deve ter amigos fumadores e, como já foi mordido por cães, naturalmente não gosta desses bichos. Assim, formula primeiro as conclusões: abaixo os cães, viva o tabaco. Depois é só urdir o argumento que for preciso para parecer que consegue lá chegar partindo algures da vizinhança da realidade. Fazer as coisas ao contrário é uma chatice. Quem parte de um fundamento e depois deriva conclusões por inferências válidas arrisca-se a não chegar às conclusões que queria. Nada disso. É mais seguro concluir primeiro e depois logo se martela um raciocínio ou dois.

Talvez o mais triste nesta dialéctica do Henrique é que nenhum dos Henriques acerta. As leis são uma ferramenta de engenharia social e, como tal, operam num sistema complexo. As generalizações do Henrique, de que primeiro deve vir a lei para forçar os valores, ou primeiro os valores para que a lei não seja mera imposição burocrática, são incorrectas porque isto depende muito das circunstâncias. É mais fácil fiscalizar estabelecimentos comerciais e condições de trabalho do que todos os parques e ruas do país. É mais aceitável proibir o tabaco num local fechado onde trabalhem pessoas oito horas por dia, sabendo que os fumadores passivos correm riscos acrescidos de ter cancro, do que proibir que se leve cães para o jardim só porque há quem não gosta de rosnadelas. Multar quem deixa a bosta do cão no passeio é uma boa ideia, que a lei contempla. Mas, na prática, é difícil de implementar esta medida como dissuasor eficaz, tal como acontece com transgressões muito piores como ultrapassar os limites de velocidade em zonas residenciais ou estacionar no passeio obrigando os peões a ir para a estrada. Entre Janeiro e Agosto deste ano morreram 19 pessoas e 199 ficaram gravemente feridas devido a atropelamentos. Houve 763 atropelamentos em passadeiras(3). Também me incomoda pisar bosta de cão, mas se for para coagir mudanças comportamentais reforçando a fiscalização, prefiro começar por problemas mais sérios.

Depois de ler estes textos do Henrique, fiquei com curiosidade acerca de uma coisa. Gostava de saber o que ele pensa das inúmeras beatas que os fumadores deixam espalhadas pelo chão. Será que isso merece multa ou seria fascismo multá-los? Será que devíamos corrigir este comportamento pela “espada que protege a lei” ou será necessário primeiro que a sua condenação seja “partilhada pela comunidade e desenvolvida entre as pessoas”? Ou será que podem deitar beatas ao chão desde que não rosnem ao Henrique? Talvez fosse interessante ver que conclusão o Henrique tirava do chapéu e, depois, que desculpas lhe agrafava por baixo para parecer que argumentava. E daí, talvez não...

1- Henrique Raposo (2013), Uma cidade sem cães, sff
2- Henrique Raposo (2005), Tabaco e Fascismo Hipocondríaco (Esta, sim, é uma das minhas guerras…)
3- RTP Notícias, Dezanove pessoas morreram atropeladas este ano

domingo, novembro 11, 2012

Treta da semana: os bifes da Maria.

Nasceu Maria Isabel Torres Baptista Parreira, cresceu na Linha, formou-se na Católica, casou com Nuno Maria Mariano de Carvalho Jonet, trabalhou em Bruxelas mas acabou por deixar a vida profissional para «acompanhar a integração escolar dos filhos» (1). Talvez tenha sido este percurso de vida que levou Isabel Jonet a expor-se recentemente a críticas por dar como exemplos de austeridade não comer bifes todos os dias ou ter de escolher entre ir a um concerto ou tirar uma radiografia depois de uma queda na ginástica (2). Uns dizem que deve abandonar a presidência do Banco Alimentar (3), outros defendem o seu trabalho «no combate à pobreza e à fome em concreto»(4) e a própria já esclareceu que «não estava a falar para os mais pobres»(5), o que quer que isso queira dizer. Esta polémica interessa-me pouco. Penso que uma pessoa com tempo disponível e contactos pode bem administrar voluntários e stocks de alimentos mesmo que as suas opiniões acerca da austeridade não estejam sequer na vizinhança da realidade. Por outro lado, os bancos alimentares combatem a pobreza da mesma forma que o paracetamol combate a pneumonia. Disfarçam alguns sintomas, o que pode ser melhor que nada, mas importa não os confundir com uma cura. O pobre auxiliado continua pobre à mesma.

Mais importante do que as metáforas infelizes da Isabel Jonet é a ideia de que quem sofre com a austeridade é quem esbanjou o dinheiro. O “nós” implícito em «Vivemos nos últimos anos muitas vezes acima das nossas reais possibilidades»(5). É como se pagássemos agora, todos por igual, uma asneira da qual somos todos igualmente responsáveis. Esta visão predomina na direita política, talvez por ser tão confortável para quem a austeridade é assim, sei lá, tipo não poder ir ao concerto por causa da queda na ginástica. Mas é completamente errada.

Quem paga mais caro esta situação são aquelas pessoas, muitas e cada vez mais, que trabalharam durante anos numa profissão e que agora estão sem emprego. Porque a fábrica fechou, ou o restaurante teve de despedir metade dos empregados, e não há mais ninguém que as contrate. O problema não é terem de comer menos bifes. O conceito pode ser difícil de compreender para alguém como a Isabel Jonet, mas o problema é que todo o rendimento destas pessoas vinha de venderem o seu trabalho. Sem comprador não têm dinheiro. Nenhum. Tanto faz se têm muitas dívidas ou poucas, se comiam muito ou se eram magrinhas. Agora ficaram com zero e não têm como viver.

Ao contrário do que explicou a Isabel Jonet, não perderam o emprego por falta de qualificações ou por alguma “restruturação” do mercado de trabalho. Não foi um enorme avanço na ciência da hotelaria que as tornou irrelevantes. A causa imediata foi a contracção do mercado. Se as pessoas compram menos há menos capacidade para manter empregados. A austeridade pode parecer uma virtude quando olhamos para quem decidiu poupar cortando despesas desnecessárias. Menos bifes, por exemplo. Mas quando o bairro todo faz isso várias pessoas perdem o emprego e já não o conseguem recuperar. O custo do reajustamento não é repartido por todos de forma equitativa.

Esta poupança é consequência dos cortes nas prestações sociais, cerca de metade do orçamento público, e nos salários da função pública, que é cerca de um quinto. Isto corresponde a uns 20% da economia portuguesa, só que estas pessoas gastam quase todo o seu rendimento em bens e serviços, pelo que cortes aqui têm um impacto grande na economia, agravado pela expectativa de mais cortes no futuro.

Por sua vez, estas medidas advêm da ideia de reduzir o défice cortando na despesa do Estado em vez de aumentar a receita. Dito assim soa bem, mas o que quer dizer é redistribuir menos. O Estado, supostamente, obtém mais receita de quem tem mais e gasta com quem mais precisa. Ajustar as contas pela despesa é cobrar o défice aos pobres. Não pagam todos por igual.

Também não somos todos igualmente responsáveis pelo défice. Parte do problema está em diferenças estruturais de logística, tecnologia, formação e cultura que tornam Portugal menos eficiente a vender coisas caras do que outros países como a Alemanha. Isto não é culpa de ninguém vivo hoje nem se pode resolver em poucas décadas. Mas o problema principal é os governos, principalmente os de direita, terem cobrado menos do que gastaram. As Jonets dirão que é culpa dos pobres que se fartaram de comer bifes, mas não é. O défice deve-se, por um lado, a dar dinheiro aos ricos em coisas como PPPs e resgates bancários e, por outro lado, a aumentar quase somente impostos sobre os salários evitando aumentar impostos sobre lucros de empresas, especulação financeira e qualquer coisa que incomode os mais ricos (6). Os ricos preferem dizer que o problema foi gastar-se muito em hospitais e escolas, mas parece-me que o mal foi eles não pagarem o que deviam ter pago e levarem mais do que deviam ter levado.

Ajustar o défice pela austeridade é injusto porque penaliza mais severamente quem tem menos culpa. E é um disparate porque deprime a economia tanto ou mais do que um aumento nos impostos sobre lucros e especulação com a agravante de reduzir o apoio aos mais necessitados. Daí ser tão prejudicial esta ideia hipócrita de que “nós” vivemos acima dos nossos meios e, por isso, “nós” temos de aceitar privações, coitadinhos de “nós”. Uns são mais nós do que outros.

1- Visão, Novembro de 2011, A Sra. Banco Alimentar
2- Alfredo Pereira (YouTube), O inacreditável discurso de Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome.
3- Por exemplo, Petição Isabel Jonet: Demita-se !
4- Expresso, Isabel Jonet, as palavras e os atos
5- Rádio Renascença, OPINIÃO DE ISABEL JONET
6- Correio da Manhã, Estado duplica receita com o IRS cobrado

sábado, novembro 10, 2012

Disto e daquilo, 3.

Aonde?
Num canal qualquer vai dar o filme “Aonde é que pára a polícia?”. Talvez seja da idade, mas estas coisas incomodam-me cada vez mais. Se pára, não é aonde. É onde. Até podem experimentar ler devagar: a onde é que pára. Não faz sentido. Apesar do filme vir com este título em vários sítios (1), quando noticiaram a morte do Leslie Nielsen ou puseram o título original (2) ou corrigiram o português (3). Ao menos isso.

Um milhão de milhões.
Segundo uma notícia no Expresso, a «França exige à Google um milhão de milhões de euros»(4) em impostos. Não sei se terá sido uma tradução apressada de “billion” ou “milliard” para bilião, mas é estranho que passado mais de uma semana não tenham corrigido o título. Possivelmente pensaram meh, mil vezes mais, mil vezes menos, tanto faz. Além disso, quem escreveu isto para o Expresso esqueceu-se das partes mais interessantes. Por um lado, a pressão que Estados como a França e a Alemanha estão a fazer sobre indexadores como a Google para pagarem um género de “direitos acessórios” pelos excertos de algumas palavras que citam acompanhando as ligações para páginas de notícias. Segundo a legislação vigente é perfeitamente legítimo citar pequenos trechos sem pedir autorização ou pagar licenças. Mas na Alemanha já há propostas de lei para obrigar a tais pagamentos e na França estão a pressionar a Google para chegar a acordo com as “empresas de conteúdos” (5). Bem feito era se simplesmente deixassem de indexar sites que exigissem pagamento. Por outro lado, há a situação fiscal escandalosa da Google. No ano passado, tiveram 4,7 mil milhões de dólares de lucros nos EUA, dos quais pagaram 43%. Mas dos 7,6 mil milhões de dólares que ganharam no resto do mundo pagaram apenas 3,2% em impostos (6). E, ao que parece, isto é legal. Talvez se largassem um pouco a austeridade e se dedicassem a tapar os rombos na legislação fiscal para as empresas as coisas aqui na Europa melhorassem um pouco.

Copy right e copy wrong.
No Canadá, o supremo tribunal declarou inválida a patente da Pfizer sobre o Viagra por não incluir os detalhes necessários à recriação do invento (7). Isto é um resultado importante para combater a ideia errada de que a “propriedade intelectual” é um direito do criador. Na verdade, estes monopólios só devem ser concedidos em benefício da sociedade. No caso das patentes, concede-se um monopólio temporário sobre a exploração de uma invenção em troca da divulgação detalhada daquilo que foi inventado. No caso das obras literárias ou artísticas, concede-se monopólios sobre a cópia como incentivo e subsídio à divulgação e distribuição das obras. Em ambos os casos, só faz sentido a sociedade conceder esses monopólios se tirar daí benefícios que compensem os custos. Um exemplo do que não devia ser aceite é a patente que a Microsoft submeteu sobre um método para bloquear a exibição de conteúdos se o número de pessoas a assistir for superior ao permitido pela licença (8). Não é só a parvoíce de conceder um monopólio sobre esta ideia (a troco de quê?) mas a parvoíce ainda maior do sistema legal servir para que, por exemplo, se alugue um DVD com a restrição de só poder ser exibido a quatro pessoas e cobrar extra se a audiência chegar à meia dúzia. Há tempos o Icarus perguntou-me como eu achava que seria o futuro destas coisas (9). Acho que vão acabar. Cada vez é mais fácil ignorar estes monopólios, cada vez é preciso leis mais absurdas para os tentar proteger e enquanto os custos para a sociedade são cada vez maiores os benefícios são cada vez mais pequenos. É uma questão de tempo até o eleitorado abrir os olhos.
1- Por exemplo, aqui e aqui.
2- Visão, Morreu o ator Leslie Nielsen
3- Blitz, Morreu Leslie Nielsen, ator das sagas Onde Pára a Polícia e Aeroplano
4- Expresso, França exige à Google um milhão de milhões de euros.
5- NY Times, A Clash Across Europe Over the Value of a Click
6- Reuters, Google denies 1 billion euro French tax claim.
7- Michael Geist, Supreme Court Voids Viagra Patent as Insufficient Disclosure Means It Fails the "Patent Bargain"
8- US Patent and Trademark office, CONTENT DISTRIBUTION REGULATION BY VIEWING USER (via Boing Boing).

9- Comentário em Treta da semana (passada): 312€ + IVA.

sexta-feira, agosto 10, 2012

Disto e daquilo, 2.

Notícias
A propósito das cheias na Indonésia nas Filipinas, ouvi ontem no noticiário da TVI que se prevê uma precipitação de 40cm por metro quadrado. É como o limite legal da velocidade ser 120Km/h por automóvel ou alguém ter a idade de 18 anos por pessoa. Também estavam a evacuar as pessoas. A menos que estejam com problemas graves de prisão de ventre, parece-me preferível evacuar as zonas afectadas pelas cheias. Outra calinada irritante, e permanente durante a época de incêndios, é a treta dos cinco meios aéreos, dois meios aéreos ou, quem sabe, um meio aéreo. Caros jornalistas, os meios são os recursos em geral. Não é um meio por cada avião ou helicóptero. Já agora, deixo também um pedido aos agentes da autoridade para que, quando usarem um cão para farejar drogas, digam que usaram um cão. Não chamem “binómio” ao bicho só porque vem com um guarda a segurar a trela. Se tiverem vários cães vai ser o quê? Um polinómio?

Multa
O grupo Jerónimo Martins foi condenado a pagar a multa máxima pela venda de quinze produtos abaixo do seu custo na promoção de dia 1 de Maio. Terão de pagar trinta mil euros. No entanto, é provável que contestem a decisão em tribunal, assim que conseguirem parar de rir.

Código
A Maria Madalena Teodósio tem tentado explicar algumas coisas de evolução ao Jónatas Machado, entre as quais que o código genético é uma invenção nossa e não uma prova de que o ADN foi criado pelo menino Jesus (1). Desejo-lhe boa sorte na ingrata tarefa e aproveito para apontar que o código que usamos para designar o ADN não são as quatro letras – A, C, G, e T – correspondentes às quatro bases dos nucleótidos. Temos também o Y para qualquer uma das pirimidinas (C ou T), o R para as purinas (A ou G), W, S, K, M, e assim por diante. E como N designa qualquer nucleótido, todos os genes podem ser escritos como NNNNN...(2) É realmente um código inteligente, mas um código que serve para trocarmos, entre nós, informação acerca dessas moléculas. À citosina tanto faz se lhe chamamos C, M, S ou X.

Ordenados
Um dado que, aparentemente, surpreendeu alguns jornalistas, foi o de que «Serralheiros, canalizadores e torneiros mecânicos podem conseguir ordenados mais altos do que arquitetos ou advogados» (3). Além do problema metodológico de considerarem os valores extremos de três mil ofertas de trabalho como representativos seja do que for, não acho estranho que um canalizador ganhe mais do que um recém-licenciado em direito. Ser canalizador não é trivial e só é canalizador quem tiver experiência profissional, tendo demonstra não só que sabe mas que sabe fazer. Um recém licenciado teve apenas a experiência de trabalhar para si. Falta-lhe ainda mostrar que se safa quando aquilo que faz tem consequências para os outros.

Pirataria interplanetária
Pouco depois da NASA pôr no YouTube um vídeo da aterragem* do Curiosity, o vídeo foi retirado por violação de copyright. A queixa veio de uma empresa privada de notícias que tinha usado o vídeo da NASA, gratuitamente, e tinha-o registado como seu no sistema de gestão de conteúdos do YouTube (4). Isto mostra três coisas. Primeiro, a deturpação de valores acerca da distribuição. As alegações de direitos exclusivos, mesmo sem fundamento, têm toda a prioridade enquanto que o direito de expressão e de acesso à informação são tão irrelevantes que até automatizam o bloqueio e quem for injustamente penalizado que se amanhe. Enquanto quem faz estas alegações falsas não sofre consequências, um cidadão britânico vai ser vai ser extraditado para os EUA por ter um site com ligações a ficheiros sob copyright alojados noutros sítios, algo que nem é claro que seja crime no seu país mas que lhe pode dar cinco anos de cadeia nos EUA(5). Em segundo lugar, este episódio mostra como os monopólios sobre a distribuição afectam mesmo os produtores que não os querem. A NASA tem peso para resolver estas coisas rapidamente, mas muitos não têm essa facilidade (6). E, em terceiro lugar, mostra que se pode produzir obras caras sem precisar de monopólios sobre a distribuição. Pôr o Curiosity em Marte custou 2500 milhões de dólares. Se até ciência a este nível se pode fazer sem direitos exclusivos não vejo desculpa para filmes e canções terem esses privilégios legais.

* Vem de terra, e não de Terra, por isso é que é amaragem quando cai no mar na Terra e aterragem quando cai na terra em Marte.

1- Neste post, com os resultados esperados. Talvez melhor seja dar uma olhada no blog da Maria Madalena Teodósio.
2- IUPAC ambiguity codes.
3- Ofertas de emprego para soldadores e mecânicos com salários mais altos que doutores e engenheiros
4- Motherboard, NASA's Mars Rover Crashed Into a DMCA Takedown
5- Huffington Post, Richard O'Dwyer Memo Leaked To TorrentFreak Reveals MPAA's Insecurity In Piracy Fight
6- Lon Seidman, via BoingBoing.

domingo, maio 27, 2012

Treta da semana: correlação é causalidade.

Na quinta-feira foi apresentado um estudo sobre “pirataria informática”, coordenado por Ricardo Ferreira Reis, economista e investigador na Universidade Católica. O procedimento normal, em ciência, é submeter os estudos a revisão pelos pares antes de os publicar e, depois, publicá-los sempre de forma que outros peritos na área os possam avaliar e criticar. Desta vez foi diferente. O que fizeram foi organizar uma apresentação pública no hotel Marriot, substituindo o peer review por uma “reflexão” conduzida pela Associação Portuguesa de Software (ASSOFT) e os detalhes por bonecos bonitos e espectáculo mediático (1). O que, de certa forma, se adequa à qualidade científica do estudo.

A brochura de publicidade ao relatório começa por referir um estudo da Business Software Alliance (BSA) segundo o qual «em 2011, mais de 50 mil milhões de euros desapareceram da economia mundial devido à utilização ilegal de software»(2). O teledisco do relatório começa com a mesma alegação (3). Isto é absurdo. Primeiro, a BSA estima o índice de pirataria comparando o número médio de unidades de software vendidas por computador com o número médio de programas instalados em cada computador. Tudo o que está instalado sem ter sido comprado é “pirataria”, mesmo que seja software gratuito (4). Depois, a estimativa dos 50 mil milhões assume que todo o software gratuito seria pago ao preço de mercado, e que ninguém que usa um programa gratuitamente deixaria de o usar se tivesse de pagar cem ou duzentos euros (5). Finalmente, o dinheiro que as pessoas não gastam por usar software sem pagar não desaparece. Não se desfaz em cinzas nem fica debaixo do colchão mas acaba por ser gasto noutras coisas ou investido por intermédio dos bancos. A conclusão da BSA, repetida pela ASSOFT e por este estudo, não faz sentido.

A abordagem do Ricardo Ferreira Reis é diferente, mas igualmente incorrecta. Segundo a descrição do estudo, calcularam a correlação entre o índice de pirataria* e o PIB de vários países, entre outros factores. Depois, «com base nos resultados da regressão linear, e aplicando os valores correspondentes para Portugal, estimámos o seguinte resultado[:] um impacto que poderá chegar aos 1150 milhões de euros, ou aproximadamente, 0.6% do PIB atual». Ou seja, a partir da correlação assumiram haver uma relação causal na qual a pirataria é a causa e o PIB é o efeito. Isto é um erro grave, mas explica bem porque é que este estudo foi apresentado em panfletos e telediscos em vez de sujeito a revisão por peritos na matéria. Ou sequer por alguém com um mínimo de bom senso.

A correlação entre os factores A e B pode dever-se a A causar B, a B causar A ou a ambos serem efeito de outros factores causais comuns. Por exemplo, a pirataria também está correlacionada com a idade, sendo mais frequente entre os mais jovens do que entre os mais velhos. No entanto, seria incorrecto assumir que esta correlação se deve à pirataria afectar a idade das pessoas, concluindo daí que aumentar a pirataria iria inverter a tendência para o envelhecimento da população e trazer grandes benefícios para a segurança social.

É neste erro ridículo que assenta o estudo do Ricardo Ferreira Reis. Da mera correlação entre a pirataria e o PIB não se pode prever que a pirataria afecta o PIB. O contrário até faz mais sentido, pois quanto maior for o rendimento das pessoas menor o incentivo para obter software ilegal. O próprio estudo admite isto ao apontar que «a crise financeira representa um risco de contração do rendimento que pode levar a um aumento da taxa de pirataria». Mas não parece haver um mecanismo plausível pelo qual reduzir a pirataria de software aumente o PIB de Portugal.

Há até razões para crer o contrário. Forçar uma redução na pirataria por medidas judiciais implicaria mais despesa pública em fiscalização e castigos e iria reduzir o uso de software. Como muito software é ferramenta de trabalho, reduzir o seu uso, mesmo que ilícito, teria um impacto negativo na produtividade. Além disso, a maior parte do software comercial à venda em Portugal é importado. Por isso, aumentar os gastos com software desequilibraria ainda mais a balança de pagamentos, diminuindo o PIB em vez de o aumentar.

Infelizmente, parece que esta propaganda manhosa funciona porque, na comunicação social, a maioria não questiona as premissas nem pergunta como é que usar menos software estrangeiro de graça aumentaria o PIB nacional. Em vez disso, só vejo estas publicações papaguearem as alegações do “estudo” sem qualquer análise crítica (6).

* Como medido pela BSA

1- Notícias Grande Lisboa, Estudo do impacto económico da pirataria informática apresentado em Lisboa. Obrigado a todos que me enviaram emails e comentários sobre isto.
2- CSLBE, O impacto económico da pirataria informática em Portugal
3- No YouTube, Impacto Económico da Pirataria Informatica em Portugal.
4- BSA.org, Methodology
5- «The commercial value of pirated software is the value of unlicensed software installed in a given year, as if it had been sold in the market.». Há uma boa análise destas e outras asneiras no Techdirt
6- Por exemplo, Público, Diário de Notícias, Computerworld, Exame Informática, Tek, Económico e Agência Financeira.

domingo, janeiro 15, 2012

Lei de Poe

O Douglas Bonafe estreou-se neste blog, há dias, com umas questões curiosas. Infelizmente, comentou um post de 2007, pelo que ninguém deve ter reparado. Para desenjoar do copyright e da política, vou aproveitar a deixa.

«Se a ciência não é dogmática então me prove, considerando o método científico, algumas coisinhas simples que uma criança é capaz de definir como postulado. Vou citar alguns postulados:
1) O ponto existe.
2) Por um ponto passam infinitas retas.
3) Não existe velocidade maior que a velocidade da luz.»
(1)

Nós podemos definir ponto e recta como “postulados” porque são apenas conceitos. São as peças que usamos para criar modelos. Por exemplo, posso modelar o ar num balão assumindo que cada molécula de gás é um ponto que se desloca em linha recta e colide com a borracha do balão. Daqui deriva-se a lei dos gases perfeitos, um modelo bastante aproximado do que se passa no balão. Mas postular conceitos e inventar modelos é só parte do processo. Em ciência, também se tem de investir muito trabalho a averiguar o ajuste entre o modelo e o aspecto da realidade que o modelo tenta descrever. Por isso é que, em ciência, “provar” é pôr à prova. É testar. E é por isso que exigir uma prova científica de que “pontos existem” não faz sentido. É como pedir a demonstração matemática do café com leite.

«Os postulados são proposições fundamentais em cima das quais modelamos o Universo ao nosso redor. Nas Religiões, os dogmas são proposições fundamentais […] Ou seja... tudo o que conhecemos partem de postulados.»

A ciência não é nada assim. A ciência é fundamentalmente diferente das religiões porque não assenta tudo nos postulados. Em vez de postular apenas uma coisa e seguir por aí, cega às alternativas, a ciência começa por considerar várias alternativas, mutuamente exclusivas, que depois testa, seleccionar e aperfeiçoa para ir aproximando as descrições à realidade. Além disso, durante este processo vão surgindo novas hipóteses, que muitas vezes substituem elementos anteriores. Aquilo que a ciência considera conhecimento, em cada momento, é a região onde os dados encurralaram as várias hipóteses ainda não rejeitadas. É um ponto de convergência de muitos “postulados” alternativos de onde a investigação partiu. Por exemplo, em ciência não se vai simplesmente postular que “Não existe velocidade maior que a velocidade da luz”. Em vez disso, vai-se procurar indícios que permitam distinguir entre essa hipótese e hipóteses alternativas. Basicamente, enquanto que as religiões partem de afirmações que assumem verdadeiras, a ciência começa com perguntas às propõe várias respostas possíveis.

A respeito do ateísmo e da moralidade, o Douglas escreve que «O pensamento ateu em sua origem, não considera a existência de um Deus, nem seu antagônico, não considera a existência do bem e do mal, uma vez que não fazem sentido dada a inexistência de uma causa para o bem ou o mal. Logo, para um ateu verdadeiro, comer a mãe e jogar os restos aos cães não tem nenhuma diferença de se comer um animal qualquer». É fácil desfazer esta confusão. O ateu é ateu porque confia em proposições factuais apenas na medida em que os dados o justifiquem. É por isso que conclui não haver deuses, diabos, fadas ou Saci-pererê. Por outro lado, há ampla evidência de que a imbecilidade existe, mesmo fora das caixas de comentários dos blogs, e de que é causa de muito mal. Não é preciso fé em deuses para perceber que há bem e mal, e é fácil encontrar uma justificação ética para não se “comer a mãe e jogar os restos aos cães” mesmo sem acreditar que o menino Jesus castiga.

Mais preocupante é haver quem ache que a tortura, a violação e o homicídio só são maldade porque um deus disse que eram, e que se esse deus disser outra coisa – por exemplo, para se apedrejar até à morte adolescentes que desobedeçam aos pais – então é isso que é bom fazer. No fundo, o problema não é tanto se as pessoas acreditam num deus ou não acreditam em deus nenhum. O maior problema é haver tanta gente que, para acreditar num deus, vive com o cérebro desligado.

1- Comentários em Dogma e ciência.

terça-feira, dezembro 20, 2011

“Conto de Natal”

No de Dickens, Ebenezer Scrooge transforma-se radicalmente. Aprende quanto pode fazer por si e pelos outros e, com isso, torna-se numa pessoa melhor. O João César das Neves não é um Charles Dickens, obviamente, mas também não era preciso fazer o oposto. Num texto apressado, conta como um tal André lida com a crise: «Queres saber o segredo da minha calma? Queres saber como consigo não ficar desesperado? É que o meu Pai é dono disto! […] Estou a referir-me Àquele a quem digo todos os dias 'Paí Nosso', que é dono de tudo o que tenho e sou, de tudo o que vejo e existe no universo. Nada me preocupa porque Deus é dono da minha vida. A confiança em Deus é a melhor coisa da existência.»(1) A mensagem parece ser que, ao contrário do que se passou com Scrooge, o melhor para nós é aceitar tudo como é: «esta crise tem me feito muito bem. Ao princípio assustou-me, mas um dia percebi que acima dela está Deus [e] desde que Lhe entreguei, mais uma vez, a minha vida senti uma liberdade e alegria profundas [...] 'Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus' (Rm 8, 28)».

Além de promover a bovinidade, a historieta salienta algumas inconsistências do fatalismo cristão. O André não se preocupa porque o seu “Pai” está encarregue de tudo, mas também não estranha que o “Pai” trate os filhos de forma tão injusta. É difícil imaginar que um pai fique indiferente ao filho que passa fome numa cubata na Somália enquanto outro vive luxuosamente num chalé suíço. Pior, esse tal André diz-se descansado da vida porque «se ao Seu Filho Deus deixou que nós O crucificássemos, tudo o que eu sofrer é pouco». Chiça. Felizmente sou ateu e não acredito ser filho de um pai desses. Senão é que andava aterrorizado.

Isto de aceitar a injustiça com passividade e enaltecer o sofrimento absurdo já é treta antiga. Vê-se na história de Jó, na desculpa de que Jesus se sacrificou para nos “redimir”, na adoração dos mártires e no adoçar dos males com pós de caridadezinha para evitar a chatice de os corrigir. Como se o principal problema da pobreza fosse não ter uma sopa quente no Natal. Como somos intuitivamente sensíveis à injustiça, é preciso este barrete. Quem se diz infalível, vive num palácio e veste roupa bordada a ouro tem de louvar a humildade e a pobreza. Ponham a vida nas mãos deste deus, dizem, e dêem graças pelas migalhas que vos calham. Sobretudo, portem-se bem.

Mas nós somos pessoas, não somos ovelhas, e esta crise não é obra dos deuses. Não é o nosso destino nem um teste para ganhar uma nuvem mais fofa no céu. É um problema humano, de actos e de atitudes. É o problema de estar tudo a mando de Scrooges e não de um “Pai” que nos ama a todos. E nota-se nos detalhes. Quem enaltece os mártires com histórias da carochinha não se martiriza a si próprio; quem elogia a pobreza não vive na miséria; e quem exorta a que cada um aceite, sorridente, a sua condição goza geralmente de condições melhores do que as dos outros. É a estes que convém a crença generalizada do destino como obra divina em vez de tarefa humana. Caso contrário, teriam de se assumir responsáveis por terem ficado com a maior parte daquilo que é de todos.

A crença pessoal num deus, na vida depois da morte ou afins é um direito de cada um e não faz grandes estragos. Mas, à volta disso, há sempre quem invente religiões para controlar os outros, disfarçar injustiças e ir mantendo tudo como lhes convém. Promessas de paraíso além-morte, o pai celestial que criou o universo mas precisa que se gaste dinheiro em igrejas imponentes e luxos para os seus representantes, e a ideia de que os miseráveis têm muita sorte por sofrer, são tudo embustes. O ateísmo tem a grande vantagem de nos inocular contra tais aldrabices, e encorajar-nos a enfrentar os fantasmas dos natais futuros como algo que temos o dever de tornar tão bom quanto pudermos. Se o André da historieta não se preocupa, isso não é sinal de fé. É sinal de irresponsabilidade.

1- João César das Neves, Conto de Natal

terça-feira, agosto 30, 2011

Pensar com os testículos.

O Gonçalo Portocarrero de Almada escreveu, no Público, um post onde se opõe à possibilidade de alguém ser reconhecido pela sociedade como sendo do género com o qual se identifica. O argumento do Gonçalo, pelo que consegui perceber, assenta na analogia com uma hipotética mudança de espécie segundo a qual ele seria reconhecido como ave rara (1). Uma coisa que achei interessante no texto do Gonçalo é uma profusão de chalaças – presumo que o sejam, porque fazem ainda menos sentido se não o forem – ilustrando na perfeição o que propus no post de há dias (2). Mas o propósito deste não é comentar o sentido de humor do Gonçalo. É apenas apontar um pequeno problema no seu argumento.

A distinção entre aves e humanos é uma distinção biológica. Tem consequências sociais – as aves não escrevem para o Público, por exemplo – mas estas categorias assentam rigidamente na distinção biológica. Em contraste, enquanto o sexo é uma distinção biológica, o género é uma distinção social, abarcando aspectos como quem passa primeiro nas portas, quem tira o chapéu quando cumprimenta, cuida de crianças no infantário, muda o pneu furado, usa bâton e assim por diante. E enquanto o sexo é determinado pelo tamanho dos gâmetas, o género resulta de hábitos, expectativas, comportamentos e relações sociais que não são totalmente dependentes das diferenças biológicas, pelo que a distinção entre ser mulher ou homem, socialmente, é bem mais complexa do que ter óvulos em vez de espermatozóides. Ou penas em vez de pêlos. Quando o Gonçalo pergunta «será que o faz-de-conta é válido para o sexo, mas já não para a idade, a altura e o peso?» comete o equívoco de julgar que o Estado reconhece uma mudança de categoria biológica quando, na verdade, trata-se apenas de uma categoria social. Mais correctamente, do género e não do sexo.

Além disto, o Gonçalo presume também um dualismo de corpo e mente quando critica a determinação da identidade pessoal por «um acto libérrimo de vontade de cada qual». As evidências que temos contradizem este dualismo. Não há um fantasminha transcendente a mexer nos neurónios para manipular o corpo. A nossa identidade de género, aquilo que nos faz sentir homem ou mulher, é determinada pelas nossas hormonas, pelos genitais, e pelo cérebro. Pelo corpo todo, no fundo. Na maior parte das pessoas, os indicadores concordam e é fácil ver que é homem ou mulher. No entanto, noutros casos os indicadores discordam. Para a biologia tanto faz, mas a questão de como uma pessoa se identifica e se apresenta aos outros é mais complexa do que ser XY e ter gâmetas pequenos. Por isso temos de decidir o que é vai contar mais para determinar o género, se os testículos ou o cérebro.

Sendo vice-presidente da Confederação Nacional das Associações de Família e padre católico, suspeito que o Gonçalo prefira a primeira opção. Convém-lhe que a identidade de cada um seja função de indicadores externos para que uma figura de autoridade possa dizer a cada pessoa aquilo que ela é. Simples e fiável. Confiar no cérebro é uma chatice porque passa o problema para o íntimo da pessoa, onde outros não mandam. Se admitimos que alguém se identifique como homem ou mulher por processos que se passem lá dentro em vez de algo que seja óbvio cá fora, só com a desculpa de que é assim que se sente, qualquer dia julgam que podem também ter opiniões acerca das tradições, da religião ou do que lhes dizem ser certo ou errado. Seria uma desgraça.

No entanto, por muito inconveniente que isto seja, o facto é que os testículos e os ovários estão menos habilitados do que os cérebros – do que alguns, pelo menos – para gerir a complexa rede de relações sociais que estrutura o género de cada pessoa. Devemos, portanto, permitir que cada um use o seu cérebro para resolver este problema em vez de engavetar as pessoas pelo que têm entre as pernas. Mesmo correndo o risco das pessoas se habituarem a usar o cérebro.

1- Gonçalo Portocarrero de Almada, Igualdade de género ou falsa identidade. Via Shyz Nogud no Google+
2- Treta da semana: com isso não se brinca!

terça-feira, março 22, 2011

Os censos e os recibos verdes.

O ponto 32 do questionário individual dos Censos 2011 pergunta «Qual o modo como exerce a profissão indicada?». Este ponto tem suscitado polémica por causa da indicação «Se trabalha a “recibos verdes” mas tem um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva e um horário de trabalho definido deve assinalar a opção “Trabalhador por conta de outrem”».

Uma objecção é que a situação descrita é ilegal, pois se alguém trabalha nessas condições não é um trabalhador independente e, portanto, não pode legalmente ser pago a recibos verdes. Tem de ter um contrato de trabalho. Realmente, esse parece ser o espírito da lei. O problema é que a letra da lei deixa buracos suficientes para passar qualquer coisa. O artigo 5º do DL 338/93 estipula que se presume ser trabalho independente «quando ocorram algumas [...] circunstâncias» tais como «O trabalhador tenha [...] a faculdade de escolher os processos e meios a utilizar, sendo estes, total ou parcialmente, da sua propriedade» ou «A actividade do trabalhador não se integre na estrutura do processo produtivo»(1). Ora isto parece-me mesmo lei para os políticos dizerem que fizeram alguma coisa, os advogados ganharem balúrdios, o processo arrastar-se e, no fim, não se chegar a conclusão nenhuma. Ou ser conforme der na cabeça ao juiz.

Mas a objecção principal é que esta indicação esconde a situação dos trabalhadores precários. O Bloco de Esquerda quer ver a questão “esclarecida” (2). O PCP diz que «É esconder completamente e impedir que se saiba a realidade dos falsos recibos verdes»(3). Há até quem sugira ignorar a indicação no questionário e responder “outra situação” porque, alegadamente, é mais verdadeiro (4).



Acho que estão baralhados. A Direcção Geral dos Impostos recolhe todos os anos informação completa e actualizada acerca dos recibos verdes. É desnecessário que nos censos se indique também que se está a receber a recibos verdes. O que importa saber é quais são as condições efectivas de trabalho. É essa informação que falta. E é essa informação que nos pode indicar quantos trabalhadores estão a ser privados dos seus direitos pelos falsos recibos verdes.

No final de 2010 havia 77 mil trabalhadores a recibos verdes, dados que o INE já tem e disponibiliza (5). Se esses 77 mil responderem “trabalhador por conta própria” ou “outra situação” nos censos ficamos a saber exactamente o que já sabíamos antes. Que há 77 mil a receber recibos verdes. Mas se todos os que tiverem «um local de trabalho fixo dentro de uma empresa, subordinação hierárquica efectiva e um horário de trabalho definido» seguirem as instruções do inquérito e marcarem a cruz como trabalhadores por conta de outrem, vai haver menos de 77 mil nas outras categorias. É essa diferença que nos dá o número de falsos recibos verdes.

A intenção do protesto pode ser boa, mas é asneira. Se protestarem contra a “ocultação” ignorando a indicação no questionário vão acabar por esconder o que se tornaria evidente se respondessem de acordo com as condições efectivas de trabalho.

1- IGF, Decreto-Lei n.º 328/93
2- TVI 24, Censos 2011: BE quer questão dos recibos verdes esclarecida
3- IOL, Censos «escondem» falsos recibos verdes?
4- Via Cidadã do Mundo, Censos 2011 "escondem" falsos recibos verdes
5- Económico, Recibos verdes com maior aumento da década

domingo, março 06, 2011

Treta da semana: o coqueiro?!

À procura de inspiração para este post, fui dar ao site de esoterismo do Mário Sousa (1). Logo à partida, ter um site na Internet dedicado ao esotérico é estranho. O esoterismo é aquilo que se reserva apenas aos iniciados e que se preserva oculto. Escarrapachá-lo na autoestrada dos bytes parece-me um contra-senso.

Mas o que me atraiu nas páginas do Mário Sousa foi a secção sobre os horóscopos. Tem lá de tudo: Grego, Chinês, “Xamánico”, Celta, Árabe, Cigano, Azteca e até de árvores e flores. O das árvores é o “Horóscopo Druídico”:

«este ramo da Astrologia remonta ao tempo dos Druidas, os sacerdotes que viveram nas regiões da Gália e da Irlanda durante a Idade Média. Além das funções sacerdotais - que iam desde a consagração de oferendas aos deuses da natureza até a prestação de aconselhamento aos membros da comunidade -, os Druidas também se dedicavam aos estudos da magia, das propriedades curativas das plantas e dos corpos celestes.

Foi assim que nasceu o Horóscopo Druídico. Para simbolizar cada tipo de personalidade, estes antigos sábios escolheram doze diferentes árvores, que, para eles, estavam associadas a determinadas forças e características. Vale lembrar que os Druidas viviam nas florestas, e assim enxergavam o sagrado em cada detalhe da vida - nas plantas, nos animais, na chuva e no Sol, no nascimento e na morte.»


Dei uma olhadela de relance nas árvores que os druidas tinham escolhido. Cedro («inteligentes, práticos, bons administradores»), cipreste («joviais e versáteis»), pinheiro («marcantes e fortes»), enfim, as tretas do costume. Mas, de repente, salta-me um coqueiro à vista, trazendo a imagem indelével do Panoramix com saia de palha e flores ao pescoço. E segue-se eucalipto, manacá, paineira, mangueira, acácia, jacarandá, goiabeira, e até o bambu, que tem tanto que ver com as árvores como tem com a Irlanda medieval.

Fiquei a saber duas coisas. Uma, é que sou do signo da goiabeira no horóscopo dos druidas da Irlanda e da Gália. A outra é que, afinal, não eram os romanos que estavam loucos.

1 - esoterico.no.sapo.pt

sábado, agosto 28, 2010

Treta da semana: a esponja do O.B.

O Orlando Braga escreveu que «O que, no fundo, nos separa de uma esponja — e ao contrário do que têm defendido os naturalistas e ateístas — não são propriamente os genes, mas antes a Forma entendida no sentido platónico, ou a Essência entendida no sentido aristotélico.» Isto porque «As esponjas têm entre 18.000 e 30.000 genes, aproximadamente o mesmo número dos genes do ser humano [e] os genes [...] têm uma estrutura idêntica.»(1).

“Estrutura idêntica” é um termo vago, como é costume na tretofilia. Pode referir as semelhanças na sequência e organização dos genes, esperadas pelo parentesco entre os seres vivos. Pode ser a argolada de dizer que os genes da esponja são iguais aos nossos. Ou pode ser qualquer coisa pelo meio, fugindo da inteligibilidade para não admitir que não sabe o que diz.

E o número de genes não permite tirar estas conclusões. Os genes interagem, pelo que a complexidade do genoma depende das combinações de genes. A cada gene que se acrescenta duplica-se as combinações possíveis de genes activos em simultâneo. Com mais dez genes há mil vezes mais combinações e entre 18 mil e 30 mil a diferença é inimaginável. Mas nesta imensidão de possibilidades a evolução acumula muita redundância. A evolução elimina rapidamente o que prejudica a reprodução mas deixa acumular o resto como a tralha na dispensa da avó.* Isto resulta em muitos genes e muita variedade. Há seis mil milhões de pessoas com combinações diferentes de genes todas igualmente humanas. E em cada um de nós há milhões de células do sistema imunitário com genes diferentes, que combinam aleatoriamente trechos de ADN para criar os genes dos anticorpos.

Além disso a nossa estrutura celular e o nosso metabolismo são quase iguais aos da esponja. A maior parte da maquinaria bioquímica é a mesma e a maior parte das diferenças genéticas deve-se a mutações que alteraram os genes mas deixam igual o funcionamento. A tal redundância que se espera de uma evolução por processos naturais, sem inteligência. E o último antepassado comum a nós e à esponja viveu há pouco mais de seiscentos milhões de anos. É um sexto do tempo da vida na Terra e uma fracção ainda mais modesta das gerações, porque a maior parte do tempo foi com antepassados unicelulares e gerações mais curtas.

Alega o Orlando que «Lá se vai o “gradualismo darwinista” por água abaixo» e «o que interessa saber é onde estavam os genes da esponja — que são idênticos aos do ser humano e de outros animais — antes de a esponja aparecer no nosso planeta.» Refere-se a genes encontrados na esponja que são semelhantes, não idênticos, a genes activos em células nervosas ou epiteliais, células que a esponja não tem (2). O que a teoria da evolução prevê é que esses genes, como todos os outros, descendam de genes de antepassados por duplicação e acumulação de alterações. O antepassado comum a nós e à esponja tinha genes parecidos que a esponja herdou adaptados ao seu modo de vida e nós ao nosso. E esse antepassado comum terá herdado os seus genes dos seus antepassados, também por duplicação e modificação de genes pré existentes. Um processo que começou com moléculas simples, formadas por processos naturais, e que dispensa quaisquer milagres.

Saltando alguns disparates, como dizer que os biólogos consideram que a vida humana vale o mesmo que a da esponja, passo ao que parece ser o ponto principal do Orlando. «A questão de saber como é que uma idêntica disposição genética gera seres tão diferentes, é totalmente ocultada ou esquecida pelos naturalistas». É falso. A regulação genética do desenvolvimento é uma área de investigação intensa, com dezenas de milhares de artigos publicados* e um trabalho notável na descoberta destes mecanismos. Gradientes de concentração de algumas moléculas controlam a actividade de genes específicos, que por sua vez geram novos gradientes que se cruzam em sinfonias químicas tão complexas que pequenas diferenças genéticas podem gerar uma grande diversidade anatómica.

Também a interacção de genes com o ambiente amplia as diferenças genéticas. Uma esponja cresce bem numa caixa com água se lhe dermos oxigénio e nutrientes. Mas se um mamífero crescer sem estímulos sensoriais não se desenvolve correctamente. E não é preciso muitas diferenças genéticas para tornar o organismo mais sensível ao ambiente em que se desenvolve e, com isso, gerar coisas tão diferentes como o cérebro humano e uma esponja.

O Orlando quer substituir o conhecimento detalhado da evolução, do desenvolvimento e da regulação dos genes por um simples “o que nos separa de uma esponja é a Forma platónica ou a Essência aristotélica”. Coisa que não diz nada, não esclarece e não explica. É como deitar fora a medicina para ficar só com “a doença é um problema de saúde”.

É preciso opor estas flatulências verbais não só porque enganam com uma ilusão de sabedoria fácil mas também porque a proliferação destas tretas não prejudica apenas os iludidos.

*Mais sobre isto no post sobre as cebolas.
**Procurando por “developmental biology” na PubMed devolve 38825 artigos, e “developmental genetics” 2653. Com as apas.
1- Orlando Braga, Aumenta o desespero dos naturalistas e ateístas
2- Science News, Sponge genes surprise.

quarta-feira, agosto 25, 2010

Pela boca morre o peixe.

Não têm mais nada em comum que isso, mas assim ponho um dois em um e poupo um post.

Este é o vídeo que a Google produziu em 2006 para persuadir legisladores e a opinião pública da importância da neutralidade da Internet. Isto foi antes de se meterem nos telemóveis e decidirem que a neutralidade só é importante para a rede fixa, não para as ligações à Internet pela rede móvel. Obrigado ao Barba Rija pela referência ao Vooglewilreless.



E este é uma argolada da Fox News, que tem feito um grande alarido acerca da mesquita no sítio do World Trade Center. Que na verdade é um centro cultural islâmico a vários quarteirões de distância. Segundo a Fox News, o projecto é financiado por uma organização islâmica, Kingdom Foundation. Esquecem-se de mencionar que a Kingdom Foundation é dirigida por um príncipe saudita chamado Alwaleed bin Talal, o segundo maior accionista da empresa detentora da Fox News. Obrigado pelo email com a ligação para o vídeo.

domingo, julho 25, 2010

Treta da semana: vinte porcento.

Tenho lido algumas críticas à sugestão do Carlos Azevedo, o bispo auxiliar de Lisboa, para que os políticos cristãos contribuam 20% do seu ordenado para um fundo social. Há quem o acuse de demagogia, populismo ou até de hipocrisia. Não digam isso, coitado do homem. A ideia dele é boa. Contribuir uma parte do ordenado para um fundo comum de onde se financia aquilo de que todos precisam é uma excelente prática.

É verdade que não é novidade nenhuma para a maioria de nós, e quem ganhar mais que 600€ por mês já paga 23,5% só de IRS, sem contar com o resto. Os 20% do Carlos Azevedo são uma estimativa modesta. Mas penso que não se deve criticar tanto o bispo auxiliar porque ele é um dos poucos adultos portugueses que é inocente em matéria de impostos. Falta-lhe a nossa prática nisto. Há duas coisas que quase todos reconhecemos como inevitáveis; o fisco e a morte. De uma dessas os padres só dão promessas vagas de salvação, mas da outra estão bem protegidos.

Carlos Azevedo pede este dinheiro aos políticos católicos «para um fundo que vai ser criado junto da Caritas para atender às situações mais criticas e que serão veiculadas através das paróquias»(1). Ou seja, para os católicos darem dinheiro à Igreja Católica para ajudar outros católicos. Mais uma vez, é uma boa ideia. Mas, talvez pela falta de prática com isto dos impostos e por ter passado uma vida a julgar que justiça social é dar esmola aos pobrezinhos, falta ao bispo auxiliar uma visão mais abrangente do problema.

A crise não é por os políticos católicos não darem dinheiro à igreja do bispo (auxiliar). A crise é, em boa parte, por não conseguirmos pagar a educação, infraestrutura, saúde, segurança, administração e outros serviços dos quais o país precisa. Não cada um de nós, individualmente, mas todos em conjunto. E com isso vamos afundando o país em dívidas. A sopa dos pobres, no meio disto, é uma fatia mais pequena do que as tolerâncias de ponto há uns meses atrás.

Por isso aqui vai a minha contra-proposta para o bispo auxiliar. A ver o que ele acha. Em vez desse tal «testemunho de modo voluntário» que pede aos políticos católicos, de mais uma esmola para a Igreja distribuir pelos pobres que julgue merecer, proponho que todos façamos a nossa parte. Todos. E não é só 20%. Eu, contando com IRS, CGA e o resto, já vou nos 35%. Não peço mais ao senhor bispo auxiliar nem à sua Igreja, mesmo que não tenham filhos para criar. 35% dos vossos ordenados e do negócio da fé já era uma ajuda para o país.

E mesmo os padres que já dêem parte do seu salário à Igreja Católica deviam pensar neste problema de forma mais abrangente. Não é para os fundos desta ou daquela organização que devemos contribuir, que os fundos sociais não devem ser de uma religião, clube ou empresa. Devemos contribuir, por justiça e não por pena ou caridade, para o fundo que é de todos.

Já agora, um conselho. A Igreja Católica tem tido algumas dificuldades em preservar a sua imagem, metendo o pé na boca em quase todas as oportunidades. Para contrariar essa tendência sugiro que, em tempo de crise, foquem mais em tentar contribuir e menos em pedir dinheiro.

1- RTP, Igreja pede parte dos vencimentos aos políticos católicos, via este post do Carlos Esperança no DA.

segunda-feira, maio 10, 2010

Jogar sem bola.

Na sua coluna no DN, o João César das Neves faz uma analogia engraçada entre futebol e religião. «Imagine uma pessoa que assiste a um jogo de futebol sem conseguir ver a bola. […S]ofrendo de uma estranha forma de daltonismo, não vislumbra a pequena esfera de couro que prende a atenção de toda a gente. […] Esta é a situação de grande parte dos debates, públicos e privados, sobre a próxima vinda do Papa. [...Q]uase todos, seguidores ou adversários, passam ao lado do elemento central, da única coisa que, de facto, tem algum interesse neste homem e que, mesmo inconscientemente, focaliza a atenção geral. [...A]quela pessoa frágil, sorridente e tímida, tão fascinante para uns e irritante para outros, é o 265.º vigário de Cristo na Terra.»(1)

Em sete parágrafos, César das Neves mói e remói a ideia de que o que importa é Deus mas os ateus como eu são estranhos daltónicos que não vêem a bola.

Mas se eu fosse esse estranho daltónico, mesmo não vendo a bola veria que todos os jogadores olhavam para o mesmo sítio, que só um chutava de cada vez e que todos sabiam onde a bola andava. Se pedisse à pessoa à minha esquerda para apontar para a bola, ela apontaria para o mesmo sítio que a pessoa à minha direita. E podiam atirar-me uma bolada à cara ou pôr-me a bola nas mãos. Podia sentar-me nela, chutá-la contra uma janela e ver o vidro partir e uma data de coisas que, em conjunto, tornariam irrelevante o meu estranho daltonismo. Porque se essa bola existisse, e se fosse possível saber que existia, eu até podia ser cego que conseguiria reunir as evidências necessárias para o demonstrar conclusivamente.

O problema é que as religiões jogam sem bola. Os jogadores chutam o ar deambolando pelo campo, os árbitros discutem se a bola é redonda ou quadrada e, nas bancadas, uns gritam golo, outros gritam que não é e outros tentam saber o que é isso dos golos. O Papa é um comentador deste jogo, um perito naquilo que nem ele nem ninguém sabe como é.

Há séculos que a ciência lida com coisas que não vemos. Não vemos átomos nem electrões, não vemos ondas rádio nem a força da gravidade. Não vemos o centro da Terra, nem vírus, nem proteínas nem a formação dos planetas. Mas conseguimos saber muito acerca disso tudo porque é real e porque exploramos hipóteses que a realidade pode derrubar se estiverem erradas.

As religiões só inventam. Cada uma para seu lado, com revelações, corações, intuições e confusões, criam e agarram-se a ideias que não sabem nem podem saber se são verdade. E passam o tempo a dizer que marcam golos quando ninguém sabe da bola.

1- DN, Revelar os corações

sexta-feira, abril 23, 2010

Treta da semana: o teste.

Um teste do professor Paulo Otero, da Faculdade de Direito de Lisboa, tem sido muito criticado desde que uma aluna, a Raquel Rodrigues, denunciou e divulgou o enunciado. Também me parece estranho dar doze valores a uma pergunta sobre casamento com outras espécies de vertebrados quando a nossa constituição só fala sobre direitos dos animais da nossa espécie. Não sendo evidente como isto possa testar conhecimentos de direito constitucional, fica a suspeita que a avaliação vá depender de quão bem cada aluno engraxe os preconceitos do professor. Por isso concordo com essa crítica. Parece um mau teste e é bom que o Conselho Pedagógico daquela faculdade se pronuncie sobre esta avaliação.

E aproveito para louvar o que a Raquel Rodrigues fez. Não digo isto só por o pai dela ser maior que eu; é muito mais cómodo e seguro para um aluno ficar calado nestas situações, mas ela teve a coragem apontar o problema. E o problema da falta de abertura nas universidades públicas. Os portugueses pagam a funcionários como eu e o Paulo Otero para prepararmos aulas, exercícios, material de estudo e explicar a matéria. O produto desse trabalho tem valor para qualquer pessoa que queira aprender, mesmo que não seja estudante universitário. E devia estar acessível a todos porque são todos a pagá-lo. Além disso, essa abertura contribuiria também para a confiança pública nas nossas instituições de ensino, para informar os jovens que querem ingressar no ensino superior e, quem sabe, até reduzir a frequência de argoladas como esta. Com a tecnologia que temos é triste que a única informação acerca de uma disciplina seja, muitas vezes, uma folha digitalizada com o resumo do programa.

Mas a treta que me preocupa mais é a confusão entre, por um lado, o mau gosto do professor e a má qualidade do teste e, por outro, a discriminação dos homossexuais e a violação dos seus direitos fundamentais. Escreveu a Raquel que «O que acontece é que o Sr. Professor parece ter-se esquecido do art. 13º e do princípio da igualdade; e com certeza que não pensou no que sentiria um gay ou uma lésbica que se visse confrontado com a obrigatoriedade de fazer este teste. […] Esta atitude repulsiva não só é discriminatória em relação a todas as pessoas LGBT como obriga os alunos a tomarem uma posição em relação ao tema que irá influenciar a sua nota.»(1)

Se os alunos forem avaliados em função da sua sexualidade então há discriminação, mas penso não haver dados que confirmem ser esse o caso. E as duas alíneas da pergunta pediam para argumentar a favor e contra a constitucionalidade da poligamia e do casamento com animais de outras espécies. Não exigiam manifestar qualquer posição acerca do casamento homossexual. Por isso, se bem que concorde com a Raquel que o enunciado é de mau gosto, devo apontar que não indica por si qualquer discriminação ou violação de direitos que não o direito do aluno a ter testes que façam sentido.

O que me preocupa aqui é que, nas palavras da própria Raquel e na opinião ecoada em muitos outros sítios, o que se aponta como mais grave é a ofensa e não a qualidade pedagógica do teste. «Até podia ter apresentado o mesmo caso prático sem, no entanto, referir que o diploma era “em complemento à lei sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo”, mas a comparação foi obviamente propositada e consciente.»(1) Certamente que foi. Mas não será esse também um direito?

Admito que se ao Paulo Otero repugna o casamento entre homossexuais e tem vontade de o denegrir não é apropriado que o faça num teste de forma tão forçada. Mas se o fizer em detrimento do seu desempenho enquanto professor a única coisa que viola é o seu compromisso profissional. Deu mal a matéria que podia ter dado bem. Não viola direitos fundamentais de ninguém. A menos que se defenda um direito fundamental de nunca sermos expostos a nada que nos ofenda. E isso é que me preocupa.

Se vão repreender um professor, um jornalista, um blogger ou qualquer pessoa só porque alguém se diz ofendido lembrem-se que tudo pode ofender. Há quem se ofenda com a oposição ao casamento homossexual e há quem se ofenda com a lei que o permite. Há quem se ofenda quando dois homens se beijam e quem se ofenda quando um homem beija uma mulher. Há quem se ofenda com preservativos, imagens de Maomé ou até mini-saias – e se há coisa menos ofensiva que uma mini-saia não sei o que possa ser.

Por isso critiquem o professor pela má pergunta no teste. Critiquem todos os professores. Muitos avisos nas páginas das minhas disciplinas sou eu a agradecer a alunos que apontaram erros nas páginas, no processamento dos trabalhos ou nos enunciados. E exijam um ensino público mais aberto e transparente, pois são vocês que o pagam e têm o direito de ver o que se passa lá dentro. A crítica franca e o acesso à informação são fundamentais para a qualidade do ensino e para a qualidade da sociedade em geral.

Mas isto só é possível se prescindirmos todos de exigir satisfações sempre que ficamos melindrados ou ofendidos. Tramar o homem só porque alguém se ofendeu é treta.

(1)- Random Precision, Um teste (in)constitucional.