terça-feira, maio 26, 2020

Diz que é uma espécie de gripe.

Tenho tido várias conversas (remotas) acerca da COVID-19 com um leque alargado de pessoas, desde médicos responsáveis por unidades de cuidados intensivos até desconhecidos no Facebook a alegar que, como a esperança média de vida é 80 anos, não faz mal alguém morrer de COVID-19 aos 81 porque se não fosse disso seria de outra coisa (1). Uma correlação que me saltou à vista é que quem menoriza a gravidade desta doença, dizendo que é como uma gripe, é quem está mais longe de lidar com os que morrem dela (2). E há várias razões para rejeitar essa hipótese de que a COVID-19 é só uma gripe fora de época.

O SARS-CoV 2 é um parente próximo do SARS-CoV, o vírus da SARS, ambos da linhagem B dos coronavirus humanos. As proteínas são praticamente idênticas, o perfil clínico é semelhante (3) e são muito diferentes dos coronavirus da linhagem A, que causam gripe, como o OC43 (4). Em particular, as proteínas membranares às quais os SARS-CoV e SARS-CoV 2 se ligam para entrar nas células humanas são diferentes daquelas às quais se ligam vírus da gripe como o OC43. Isto faz com que a doença seja diferente, à parte do ponto comum de infectarem os pulmões, com mais complicações no sistema nervoso (5), rins (6) e outros órgãos (7). Vai demorar até se saber quais são as consequências de ter COVID-19. E também nisto é muito diferente da gripe. A gripe é uma doença que conhecemos bem mas esta é uma doença nova que encontrámos há uns meses pela primeira vez.

Mas o argumento mais comum diz para ignorar diferenças no vírus e quadro clínico, alegando que a COVID-19 é como a gripe porque mata pouco. O que só se poderia concluir se a doença já fosse bem conhecida em vez de uma doença nova cujos efeitos a longo prazo ninguém conhece. No entanto, mesmo a curto prazo isto é falso. A letalidade por infecção da gripe sazonal é inferior a 0.1%. Mata menos de uma pessoa em cada mil infectados. Dos 712 doentes com COVID-19 no cruzeiro Diamond Princess, morreram 14 (8), o que dá 2%. Eram pessoas mais velhas do que a média mas os testes serológicos a 70 mil pessoas em Espanha mostram que só 5% foram infectados por este vírus (9). Com 47 milhões de habitantes e 27 mil mortos, isto dá uma letalidade por infecção de pouco mais de 1%. Se a letalidade fosse de 0.1% teria de haver 27 milhões de infectados em Espanha, 4.1 milhões na Suécia e 1.3 milhões em Portugal. Não é plausível que 1.3 milhões de portugueses tenham contraído esta doença, 13% da população, e só se tenha apanhado 31 mil casos positivos em quase 700 mil testes feitos a 300 mil suspeitos. Uma letalidade de 1%, ou perto disso, é muito mais plausível com os números que vemos em vários países.

Um país que demonstra claramente a diferença entre a gripe sazonal e a COVID-19 é o Brasil. Infelizmente. O Brasil é um país tropical e, por isso, é pouco afectado pela gripe. Em 2019, por exemplo, morreram mil e cem pessoas com as várias estirpes de gripe no Brasil (10). Neste momento morrem mil pessoas por dia com COVID-19, e só contando os números oficiais de casos confirmados. É que, além da letalidade por infecção ser dez vezes maior, também é um vírus mais contagioso. Em vez de infectar 15% da população, se a epidemia se descontrola infecta 70%. Assim, se mata dez vezes mais por infecção e infecta cinco vezes mais pessoas, o resultado é cinquenta vezes mais mortes do que com a gripe. O número pode não ser exactamente este. Depende certamente de muitos factores, desde a distribuição etária da população à qualidade do sistema de saúde. Mas é óbvio que a COVID-19 não é uma gripe.

O intrigante nisto é o número de pessoas que insiste no contrário. Algumas, como Bolsonaro, têm claros interesses em propagar a ideia de que isto é só uma gripe. Mas em muitos casos penso que é por a virtude epistémica de suspender uma opinião até se ter dados, e mudar de opinião em função desses dados, é vista por muitos como uma falha de carácter. O que se quer é pessoas inabalavelmente convictas, e de preferência convictas de que “eles” estão todos a planear isto para nos fazer mal. Vi muito disso numa breve passagem pelo grupo de Facebook #sairdecasa, que tem «o grande objectivo de ser contra os confinamentos» (11). Numa conversa com Rui Lima, um dos moderadores, mencionei os dados de Espanha que mostram que a COVID-19 tem uma mortalidade por infecção de 1% e não dez vezes menor como ele defendia. Lima disse que eu não podia fazer as contas assim e que tinha de considerar só Madrid: «Em Madrid a Seroprevalencia é 11,3%... A região tem quase 7.000.000 de habitantes, 8900 mortos à data de hoje». Quando apontei que isso dava 1% de letalidade à mesma e que 0.1% era impossível porque exigiria 8.9 milhões de infectados entre 7 milhões de habitantes, acusou-me de dizer «que os serológicos estão errados». Por achar esse argumento suspeito, de tão obviamente falso que era, acabei expulso do grupo (11).

Esta atitude de pôr a convicção à frente dos factos é muito comum. Na astrologia, homeopatia, religiões, entre caçadores de OVNI e fantasmas e essas coisas. Mas este caso é excepcional. Porque, neste caso, esta teimosia irresponsável vai matar muita gente.

1- A esperança média de vida aos 80 anos é de 9.2 anos na Europa. É isso que perde quem morre de COVID-19 nessa idade, além do sofrimento óbvio de dias de asfixia a agravar-se até matar. Citando, «a esperança média de vida na europa ronda os 80 anos. A média de mortes por covid19 ronda os 81. Isto quer dizer que nunca poderemos recuperar pessoas que já estão em fim de vida. Parando ou não a economia as pessoas vão morrer. De Covid, de gripe sazonal ou de outra coisa qualquer. Podemos tentar adiar a idade de vida ao máximo mas nunca poderemos artificializar a vida.» Hélder Costa, num comentário no grupo público #sairdecasa
2- Por exemplo, André Dias, doutorado em modelação de doenças pulmonares: Autópsia de um Equivoco - SARS cov-19
3- Xu et. al, Systematic Comparison of Two Animal-to-Human Transmitted Human Coronaviruses: SARS-CoV-2 and SARS-CoV
4- Wikipedia, Human coronavirus OC43, e Betacoronavirus
5- Baig et. al., Evidence of the COVID-19 Virus Targeting the CNS: Tissue Distribution, Host–Virus Interaction, and Proposed Neurotropic Mechanisms
6- John’s Hopkins Medicine, Coronavirus: Kidney Damage Caused by COVID-19
7- CNN, Covid-19 infects intestines, kidneys and other organs, studies find
8- Wikipedia, Diamond Princess
9- El Pais, Antibody study shows just 5% of Spaniards have contracted the coronavirus
10- BBC Brasil, Coronavírus: média diária de mortes no Brasil já é 3 vezes a da gripe
11- Estão aqui neste post do Facebook os objectivos do grupo e uma conversa que resume bem a minha breve estadia: #sairdecasa