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sábado, julho 02, 2022

Consciência, Inteligência Artificial, e porque é que estamos tramados.

Um engenheiro da Google, entretanto despedido, alegou que o LaMDA, um modelo linguístico dessa empresa, se tinha tornado consciente (1). Muitas pessoas apontaram que é disparate mas as justificações que tenho visto não me deixaram satisfeito. Uns alegam que LaMDA não pode ser consciente porque apenas calcula probabilidades de frases e palavras. Além de isto subestimar a complexidade destes modelos, muito mais complexos do que aquilo que um ser humano consegue conscientemente fazer, mesmo tarefas simples podem ser feitas com consciência. Contar pelos dedos, por exemplo. Portanto, não é por "apenas" estimar probabilidades que não pode ser consciente. Outra justificação é que as palavras produzidas por LaMDA não têm intencionalidade, aquela propriedade de ser acerca de algo. Quando uma pessoa diz que subir ao monte Evereste é um grande feito, sabemos que diz essas palavras referindo aquele monte e conceito. Quando LaMDA dá essa resposta (2), são apenas palavras. Só na mente do leitor é que referem alguma coisa. Isto é verdade mas só diz que LaMDA não é consciente porque não é consciente. Neste contexto, intencionalidade e consciência acabam por ser o mesmo.

Eu proponho que o problema está na forma como o algoritmo é materializado. Um algoritmo é uma sequência abstracta de instruções que podem ser executadas de forma automática. Por exemplo, para calcular a área do triângulo somamos o comprimento dos lados, dividimos por dois, subtraímos a esse valor cada um dos lados, multiplicamos esses quatro valores (o total e as diferenças) e calculamos a raiz quadrada desse produto. Isto em abstracto. Em concreto, o melhor é arranjar algum suporte material e convencionar uma correspondência com estes passos. Marcas num papel ou a posição das contas de um ábaco, por exemplo. Ou, melhor ainda, cargas e tensão num circuito electrónico. Aí corre tudo automaticamente e no final só temos de interpretar o resultado. É assim que LaMDA funciona. Em abstracto, uma frase como "porque é que as pessoas sobem ao monte Evereste?" é mapeada numa tabela de números, esses números são multiplicados e somados a outros números, dá uma tabela ainda maior de números, faz-se isso várias vezes com muitos milhões de números e várias funções e no fim saem números indicando a probabilidade de cada palavra que pode vir a seguir*. Mas isso é o algoritmo em abstracto. Em concreto não vamos lidar com números mas sim com cargas e tensões num circuito que, para nós, representam esses números e essas operações. No final aparece uma mancha no ecrã que interpretamos como sendo uma resposta à nossa pergunta.

O que eu proponho é que a consciência não vem do algoritmo, que é abstracto, mas depende do suporte físico em que este for materializado. Um algoritmo simples materializado num cérebro humano é executado de forma consciente. Se o humano usar um ábaco ou um lápis, a consciência continua no humano e não no ábaco ou no lápis. E se materializar o algoritmo num circuito electrónico, também não é o circuito que fica consciente. Se LaMDA for consciente, então todos os aparelhos electrónicos serão conscientes também, o que não é plausível.

Isto não presume nada de sobrenatural ou imaterial acerca da consciência. É um problema mais genérico. Por exemplo, podemos pensar num algoritmo para construir um muro de tijolos, com todos os cálculos para posicionar os tijolos e colocar a argamassa em função das dimensões do muro e dos tijolos. E podemos materializar esse algoritmo fazendo as contas de cabeça, usando papel e lápis ou um computador sem que nada disso produza um muro de tijolos. Apenas vai produzir alguma representação do muro. Para termos mesmo um muro de tijolos o algoritmo terá de ser materializado num sistema físico que assente mesmo os tijolos e ponha a argamassa. Tal como assentar tijolo, a consciência também deve ser uma actividade específica que não surge automaticamente em qualquer materialização de algoritmos. Exactamente como a poderemos obter não sei, mas o que me parece é que não é empurrando electrões de um lado para o outro num circuito para representar operações algébricas. Deve ser preciso algo mais do que isso.

Se isto for verdade, então nem LaMDA é consciente nem qualquer rede neuronal ou programa de IA que se implemente neste tipo de computadores será consciente. Enquanto estivermos a materializar os algoritmos nestes ábacos electrónicos, por muito rápidos os ábacos e complexos os algoritmos, nem vão assentar tijolo nem gerar consciência. O que me preocupa é a capacidade destes modelos parecerem humanos aliada à sua capacidade sobre-humana de ter milhões de conversas personalizadas ao mesmo tempo. LaMDA é mais sofisticado do que apenas um modelo linguístico, porque a Google incluiu métricas como relevância, correcção factual, "segurança" (i.e. ser politicamente correcto) e afins (2). Mas os objectivos podiam ser outros. Podiam ser o de persuadir as pessoas a votar num candidato ou de as convencer que a democracia é uma experiência falhada e precisamos é de um ditador, por exemplo.

Um sistema sofisticado destes, capaz de criar conversas aparentemente inteligentes, gerar imagens falsas, criar artigos automaticamente e o que mais for preciso para persuadir pode ter um impacto enorme na nossa sociedade. E em vez de prepararmos as pessoas para resistir a isto andamos a fazer o contrário. Ensinamos os jovens que as palavras "ferem" e que por isso se deve evitar o que é desagradável ou nos contradiz. Proibimos que se divulguem factos que possam ofender alguém. Treinamos as pessoas a criar bolhas onde só entra o que lhes agrada. Exigimos que sejam os outros a verificar se o que vemos é verdade, para nem termos de pensar no assunto. Soltar sistemas como LaMDA neste meio vai ser uma razia. O meu medo não é que a inteligência artificial se torne consciente. O que me preocupa é a consciência natural estar cada vez menos inteligente, precisamente na altura em que isso é mais perigoso.

* O grande poder desta abordagem, de aprendizagem profunda, é que podemos começar com estes números todos ao acaso e depois, cada vez que o resultado não for o que queremos, ajeitamos os valores para reduzir um pouco o erro. Fazendo isso milhões de vezes conseguimos encontrar um algoritmo, que será aquela sequência de operações com aqueles números, que dá os resultados desejados. Mesmo sem sabermos como. Esta abordagem permite pôr o computador a resolver problemas que nós não sabemos como resolver. Por exemplo, o de calcular a probabilidade das palavras de uma resposta dada uma pergunta qualquer.

1- Washington Post, The Google engineer who thinks the company’s AI has come to life.
2- ResearchGate, LaMDA: Language Models for Dialog Applications.

sábado, julho 03, 2021

Os ciclos.

Com o aumento de novos casos aumenta também a acusação de falsos positivos. Independentemente do aumento nos internamentos, cuidados intensivos ou óbitos, é tudo falsos positivos porque a um bom conspiracionista os factos não metem medo. Uma variante sofisticada desta alegação é a dos ciclos de amplificação nos testes de PCR. Reza a conspiração que "eles" aumentam o número de ciclos para dar falsos positivos porque o PCR não é fiável acima dos 35 ciclos. É uma boa conspiração porque não só tem os tais "eles" que nos andam a enganar como permite ao conspiracionista passar por entendido sem o trabalho de entender seja o que for. Noutras circunstâncias, esta coisa dos ciclos até teria graça.

O muco que vem na zaragatoa tem células da pessoa testada, bactérias diversas, vários vírus e sabe-se lá mais o quê. Uma forma de testar se a pessoa está infectada com SARS-CoV-2 é usar moléculas que se ligam especificamente a certas proteínas desse vírus. É o que se usa no teste rápido, que assim fica com uma marca visível apenas se a amostra contém essas proteínas do vírus. O problema dos testes rápidos é que a marca só é visível se houver proteína suficiente e, por isso, só são fiáveis num período curto após o início dos sintomas, quando a carga viral é mais alta. Para detectar infecções antes dos sintomas é preciso usar PCR, que aproveita as propriedades do ADN* para conseguir detectar o vírus mesmo em quantidades pequenas.

As moléculas de ADN são longas cadeias formadas pela ligação sequencial de quatro tipos de nucleótidos, as tais letras A, C, G, e T **. Na cadeia de ADN, estes nucleótidos ficam com umas caudas espetadas e há uma forte afinidade entre a cauda de A e a de T, e entre e a cauda de C e a de G. Uma consequência disto é a forte tendência das moléculas de ADN se colarem a moléculas complementares. Se uma tem ACTGAC... vai ficar presa a outra que tenha TGACTG... como um fecho de correr. A outra consequência desta afinidade específica é permitir que enzimas sintetizem uma cadeia de ADN a partir de uma cadeia mãe e um trecho inicial ligando pela ordem certa os nucleótidos complementares. Estas enzimas são as polimerases, o P em PCR.

A ligação entre duas moléculas complementares de ADN é forte mas não tão forte como as ligações covalentes dentro de cada molécula. Por isso, se as aquecermos conseguimos que a agitação as separe sem degradar as moléculas. E quando arrefecem ficam novamente coladas aos pares complementares, porque a afinidade das sequências de nucleótidos é muito específica. Ou seja, podemos separar e juntar os pares sempre que quisermos, bastando aquecer e arrefecer a solução com o ADN. E com isto temos praticamente tudo para o PCR. Faltam só os primers.

O propósito do processo PCR é amplificar trechos específicos de ADN se estes existirem. Dessa forma, mesmo que haja pouco vírus na amostra, com PCR conseguimos aumentar a concentração do ADN correspondente até ser detectável. Para isso vamos juntar à amostra uma quantidade grande de pedaços de ADN, sintetizados artificialmente, cuja sequência encaixa especificamente em partes do ADN viral. Quando aquecemos e arrefecemos a amostra, as moléculas de ADN vão emparelhar e, se houver lá ADN do vírus, vai ficar com esses primers agarrados. Pomos a polimerase a trabalhar e todos os primers que encontraram parceiro vão ser aumentados pela polimerase, sintetizando a partir deles cópias do ADN do vírus. Agora aquecemos e arrefecemos de novo e vamos repetindo o processo. A cada ciclo a quantidade de ADN do vírus duplica, aproximadamente, porque estamos a criar cópias, e cópias de cópias, e assim por diante.

Tipicamente, se a pessoa está infectada com este vírus, ao fim de uns vinte ciclos já há tanto ADN que se nota o sinal de fluorescência no aparelho. Nesse caso o teste deu positivo. Se não houver vírus na amostra, então não acontece nada e ao fim de quarenta ciclos acaba o teste, que nesse caso deu negativo. O tal problema dos 35 ciclos ocorre se o sinal de fluorescência surgir acima deste número de ciclos. Isso é um problema porque sugere que há vírus na amostra mas para o sinal só surgir depois dos 35 ciclos é porque alguma coisa correu mal ou a quantidade inicial de vírus era tão pequena que pode ter sido contaminação. A zaragatoa pode ter tocado onde não devia, alguém espirrou lá perto ou coisa do género. Por isso, nesses casos, manda a DGS que o teste seja repetido do início, incluindo meter outra vez a zaragatoa no nariz do desgraçado que, sem culpa nenhuma, teve um teste inconclusivo.

Em conclusão, se bem que seja verdade que acima de 35 ciclos o resultado positivo não é de fiar, é ridícula a ideia de que "eles" andam a aumentar os ciclos para dar falsos positivos. O número de ciclos depende da amostra. Se não tem nada o teste pára aos 40 ciclos e é negativo. Se houver sinal é no ciclo que calhar. Normalmente é abaixo de 35 e é positivo, mas se calhar acima repete-se. Não há um botão no aparelho para aumentar a taxa de falsos positivos.

* Em rigor, este vírus tem ARN em vez de ADN. Mas o que se faz é usar enzimas que copiam o ARN do vírus para o ADN correspondente, pelo que isto acaba por ser um detalhe irrelevante.
** Adenina, Citosina, Guanina e Timina, mas esta parte não vem para o teste.

quarta-feira, janeiro 20, 2021

O que é uma treta.

Uma treta é mais que uma afirmação falsa. Um erro, uma conclusão precipitada ou uma crença injustificada não são, por si só, tretas. Mesmo uma mentira descarada pode não ser uma treta. O que caracteriza a treta é a argumentação manhosa com a qual se tenta racionalizar uma tese que se percebe não ter fundamento adequado. Mesmo quando não é para enganar terceiros, o recurso a estratagemas argumentativos para disfarçar o disparate implica desonestidade intelectual. É esta aldrabice que torna a treta muito mais interessante que a mera falsidade.

Em geral, a motivação para conceber uma treta é a necessidade de justificar uma afirmação. Sem isso não vale a pena dizer tretas. Por exemplo, um crente a quem baste a sua fé para acreditar num deus não inventa tretas. Diz que acredita e se alguém perguntar porquê encolhe os ombros. É só se quer dar ares de racionalidade que precisa da teologia. Argumentos ontológicos, o problema lógico do mal e essas coisas são um embrulho enfeitado para disfarçar o vazio da caixa. Assim, uma forma de topar a treta é notar que aquilo que faz uma pessoa crer no que defende não é o que tenta parecer que conduz a essa conclusão. Deve haver muito poucos cristãos que se tornaram crentes pela leitura de um argumento ontológico. Isso é uma racionalização a posteriori. Como é regra nas tretas, a teologia só serve para pintar o alvo à volta de onde a bala calhou.

No entanto, na prática pode ser difícil determinar se a motivação e a justificação estão desalinhadas. O astrólogo pode estar deliberadamente a aldrabar quando invoca a influência dos astros e o simbolismo das constelações para fundamentar prognósticos. Mas também pode ser ele próprio vítima da treta que lhe pregaram. Por isso é melhor examinar a consistência das justificações. Um argumento martelado até dar a conclusão desejada naquele caso específico tende a ficar demasiado torto para servir fora desse âmbito restrito. Por exemplo, o astrólogo argumenta que a direcção em que estava um planeta quando nascemos é importante por aquilo que o planeta e as constelações simbolizam. Mas isso faz esperar que a direcção do crucifixo na parede, da igreja mais próxima ou dos sinais de trânsito nas redondezas também sejam relevantes para traçar o horóscopo, porque todos esses têm valor simbólico. Por esta fragilidade dos argumentos manhosos a treta exige compartimentalização. O que se aplica a isto não se aplica àquilo. Isto pode ser fácil de perceber usando a mesma justificação noutras conclusões. Por exemplo, aplicando os mesmos argumentos de fé em religiões diferentes.

A atractividade da treta vem de imitar a forma como aprendemos quase tudo. O nosso forte é aprender comunicando, sem que cada um tenha de descobrir por si aquilo que os outros já sabem. Basta que nos digam o que é verdade e que o justifiquem de forma minimamente adequada para aquele propósito. Não queremos um doutoramento em matemática só para aprender a fazer uma conta. Mas esta atitude de poupar trabalho ficando pela justificação superficial desencoraja a análise crítica de inconsistências. A mesma pessoa pode defender que se criminalize o discurso racista porque este nega que alguns seres humanos são pessoas, que se legalize o aborto porque um feto humano não é pessoa e por isso não tem direito à vida, e que se proíba a eutanásia de cães vadios porque apesar de não serem pessoas têm o direito à vida. E pode defender isto sem nunca lhe ocorrer que as justificações se contradizem. Detectar tretas exige contrariar esta tendência de guardar ideias em gavetas separadas.

Além deste problema, o nosso cérebro está adaptado para tomar decisões rápidas. O que faz sentido. Se ponderarmos demoradamente todas as decisões que tomamos não conseguimos fazer nada. Mas a consequência disto é exigir alguma disciplina naquelas situações em que se justifica adiar a decisão e examinar alternativas. Por exemplo, se perguntarmos a várias pessoas se devemos ter um serviço público de veterinária para atender gratuitamente animais doentes ou feridos, muita gente vai logo responder. Uns que sim e outros que não. Perguntados porquê uns poderão dizer que os animais também têm direitos e outros que os recursos limitados devem ser gastos em humanos, reforçando a posição inicial e escavando cada vez mais a trincheira que dificulta perceber os prós e contras de cada opinião.

Outra peça importante neste processo de compartimentalização, entrincheiramento e racionalização é o conceito vago. “Energia” tem um significado rigoroso em física mas pode ser usado para significar qualquer coisa em muitas tretas. As vibrações também. O conceito de “saber” também pode ser tornado tão vago que simplesmente ter fé numa crendice passa a ser uma “forma de saber”. Na nova justiça social, “identidade” deixa de ser aquilo que caracteriza cada indivíduo como único e passa a ser a mera pertença a um grupo, como na identidade de género ou raça. “Comunidade” agrupa pessoas que têm muito pouco em comum, como lésbicas, gays e transgénero. Até o termo “igualdade”, que devia ser claro, é usado de forma confusa em expressões como “igualdade de género”. A ideia de género serve precisamente para distinguir entre grupos como masculino e feminino e se queremos igualdade nestes grupos temos de especificar em quê. Essa omissão torna difícil interpretar mensagens como, por exemplo, a da organização UN Women denunciando que 19% de jornalistas assassinados em 2017 eram mulheres (1). Exigir clareza nos conceitos torna-nos pouco populares e aumenta a probabilidade de sermos bloqueados no Facebook mas é fundamental para nos protegermos de tretas.

Amanhã às 21:30 vou participar nos diálogos COGITO (2) e deixo este texto como mote para a conversa. Talvez motive alguns leitores a participarem com críticas. Mesmo que não tenham paciência para me ouvir, visitem a página porque há lá conversas interessantes. Parabéns aos organizadores por esta iniciativa e muito obrigado pelo amável convite.

1- UN Women, 3 de Maio 2018
2- COGITO, Diálogos

terça-feira, maio 26, 2020

Diz que é uma espécie de gripe.

Tenho tido várias conversas (remotas) acerca da COVID-19 com um leque alargado de pessoas, desde médicos responsáveis por unidades de cuidados intensivos até desconhecidos no Facebook a alegar que, como a esperança média de vida é 80 anos, não faz mal alguém morrer de COVID-19 aos 81 porque se não fosse disso seria de outra coisa (1). Uma correlação que me saltou à vista é que quem menoriza a gravidade desta doença, dizendo que é como uma gripe, é quem está mais longe de lidar com os que morrem dela (2). E há várias razões para rejeitar essa hipótese de que a COVID-19 é só uma gripe fora de época.

O SARS-CoV 2 é um parente próximo do SARS-CoV, o vírus da SARS, ambos da linhagem B dos coronavirus humanos. As proteínas são praticamente idênticas, o perfil clínico é semelhante (3) e são muito diferentes dos coronavirus da linhagem A, que causam gripe, como o OC43 (4). Em particular, as proteínas membranares às quais os SARS-CoV e SARS-CoV 2 se ligam para entrar nas células humanas são diferentes daquelas às quais se ligam vírus da gripe como o OC43. Isto faz com que a doença seja diferente, à parte do ponto comum de infectarem os pulmões, com mais complicações no sistema nervoso (5), rins (6) e outros órgãos (7). Vai demorar até se saber quais são as consequências de ter COVID-19. E também nisto é muito diferente da gripe. A gripe é uma doença que conhecemos bem mas esta é uma doença nova que encontrámos há uns meses pela primeira vez.

Mas o argumento mais comum diz para ignorar diferenças no vírus e quadro clínico, alegando que a COVID-19 é como a gripe porque mata pouco. O que só se poderia concluir se a doença já fosse bem conhecida em vez de uma doença nova cujos efeitos a longo prazo ninguém conhece. No entanto, mesmo a curto prazo isto é falso. A letalidade por infecção da gripe sazonal é inferior a 0.1%. Mata menos de uma pessoa em cada mil infectados. Dos 712 doentes com COVID-19 no cruzeiro Diamond Princess, morreram 14 (8), o que dá 2%. Eram pessoas mais velhas do que a média mas os testes serológicos a 70 mil pessoas em Espanha mostram que só 5% foram infectados por este vírus (9). Com 47 milhões de habitantes e 27 mil mortos, isto dá uma letalidade por infecção de pouco mais de 1%. Se a letalidade fosse de 0.1% teria de haver 27 milhões de infectados em Espanha, 4.1 milhões na Suécia e 1.3 milhões em Portugal. Não é plausível que 1.3 milhões de portugueses tenham contraído esta doença, 13% da população, e só se tenha apanhado 31 mil casos positivos em quase 700 mil testes feitos a 300 mil suspeitos. Uma letalidade de 1%, ou perto disso, é muito mais plausível com os números que vemos em vários países.

Um país que demonstra claramente a diferença entre a gripe sazonal e a COVID-19 é o Brasil. Infelizmente. O Brasil é um país tropical e, por isso, é pouco afectado pela gripe. Em 2019, por exemplo, morreram mil e cem pessoas com as várias estirpes de gripe no Brasil (10). Neste momento morrem mil pessoas por dia com COVID-19, e só contando os números oficiais de casos confirmados. É que, além da letalidade por infecção ser dez vezes maior, também é um vírus mais contagioso. Em vez de infectar 15% da população, se a epidemia se descontrola infecta 70%. Assim, se mata dez vezes mais por infecção e infecta cinco vezes mais pessoas, o resultado é cinquenta vezes mais mortes do que com a gripe. O número pode não ser exactamente este. Depende certamente de muitos factores, desde a distribuição etária da população à qualidade do sistema de saúde. Mas é óbvio que a COVID-19 não é uma gripe.

O intrigante nisto é o número de pessoas que insiste no contrário. Algumas, como Bolsonaro, têm claros interesses em propagar a ideia de que isto é só uma gripe. Mas em muitos casos penso que é por a virtude epistémica de suspender uma opinião até se ter dados, e mudar de opinião em função desses dados, é vista por muitos como uma falha de carácter. O que se quer é pessoas inabalavelmente convictas, e de preferência convictas de que “eles” estão todos a planear isto para nos fazer mal. Vi muito disso numa breve passagem pelo grupo de Facebook #sairdecasa, que tem «o grande objectivo de ser contra os confinamentos» (11). Numa conversa com Rui Lima, um dos moderadores, mencionei os dados de Espanha que mostram que a COVID-19 tem uma mortalidade por infecção de 1% e não dez vezes menor como ele defendia. Lima disse que eu não podia fazer as contas assim e que tinha de considerar só Madrid: «Em Madrid a Seroprevalencia é 11,3%... A região tem quase 7.000.000 de habitantes, 8900 mortos à data de hoje». Quando apontei que isso dava 1% de letalidade à mesma e que 0.1% era impossível porque exigiria 8.9 milhões de infectados entre 7 milhões de habitantes, acusou-me de dizer «que os serológicos estão errados». Por achar esse argumento suspeito, de tão obviamente falso que era, acabei expulso do grupo (11).

Esta atitude de pôr a convicção à frente dos factos é muito comum. Na astrologia, homeopatia, religiões, entre caçadores de OVNI e fantasmas e essas coisas. Mas este caso é excepcional. Porque, neste caso, esta teimosia irresponsável vai matar muita gente.

1- A esperança média de vida aos 80 anos é de 9.2 anos na Europa. É isso que perde quem morre de COVID-19 nessa idade, além do sofrimento óbvio de dias de asfixia a agravar-se até matar. Citando, «a esperança média de vida na europa ronda os 80 anos. A média de mortes por covid19 ronda os 81. Isto quer dizer que nunca poderemos recuperar pessoas que já estão em fim de vida. Parando ou não a economia as pessoas vão morrer. De Covid, de gripe sazonal ou de outra coisa qualquer. Podemos tentar adiar a idade de vida ao máximo mas nunca poderemos artificializar a vida.» Hélder Costa, num comentário no grupo público #sairdecasa
2- Por exemplo, André Dias, doutorado em modelação de doenças pulmonares: Autópsia de um Equivoco - SARS cov-19
3- Xu et. al, Systematic Comparison of Two Animal-to-Human Transmitted Human Coronaviruses: SARS-CoV-2 and SARS-CoV
4- Wikipedia, Human coronavirus OC43, e Betacoronavirus
5- Baig et. al., Evidence of the COVID-19 Virus Targeting the CNS: Tissue Distribution, Host–Virus Interaction, and Proposed Neurotropic Mechanisms
6- John’s Hopkins Medicine, Coronavirus: Kidney Damage Caused by COVID-19
7- CNN, Covid-19 infects intestines, kidneys and other organs, studies find
8- Wikipedia, Diamond Princess
9- El Pais, Antibody study shows just 5% of Spaniards have contracted the coronavirus
10- BBC Brasil, Coronavírus: média diária de mortes no Brasil já é 3 vezes a da gripe
11- Estão aqui neste post do Facebook os objectivos do grupo e uma conversa que resume bem a minha breve estadia: #sairdecasa

quinta-feira, abril 09, 2020

Inflexão.

Tenho implicado regularmente com quem usa a curva logística para prever quando a epidemia estará controlada. Em parte é feitio. Gosto de implicar. Mas, neste caso, tenho outras razões para isso.

Se pusermos um pouco de iogurte em leite morno, os bacilos começam a reproduzir-se. Cada um divide-se em dois, esses dois em quatro, oito, dezasseis, e assim por diante. A isto chama-se crescimento exponencial porque o número depende de uma constante elevada ao tempo e que, por isso, tem o tempo em expoente. Mas é mais fácil perceber a curva exponencial como sendo em cada instante proporcional ao que era no instante anterior. Seja a crescer seja a diminuir. Por exemplo, o pneu furado perde, a cada instante, uma fracção constante da pressão que tinha, num decaimento exponencial também.

Mas voltemos ao iogurte. Como o leite morno não é infinito, eventualmente os bacilos terão menos alimento e o seu crescimento irá abrandar até ficar tudo em iogurte. Assim, por causa desta limitação, o número de bacilos em função do tempo não dispara para o infinito mas faz uma curva em “S”, eventualmente estabilizando. A função logística é um bom modelo para estes casos em que o crescimento exponencial encrava no limite rígido da capacidade do sistema. É também isto que acontece quando um vírus se propaga tanto pela população que começa a ser difícil encontrar vítimas por infectar. Eventualmente há tanta gente doente ou imune que a infecção pára de crescer. Uma propriedade simpática da curva logística é que o ponto em que a taxa de crescimento deixa de aumentar e começa a diminuir (o famoso ponto de inflexão) corresponde a metade do valor máximo. Diz-nos logo onde a curva vai parar. Por isso muita gente procura o ponto de inflexão da COVID-19 para prever o patamar. Não é boa ideia.

O gráfico abaixo mostra o número de casos confirmados na Coreia do Sul contando a partir do dia em que houve pelo menos 100. Ajustando a curva logística aos dados até ao dia 15, até ao dia 16, e assim por diante até ao dia 20, o resultado é bastante consistente. Tendo passado o ponto de inflexão no dia 10, o abrandamento do crescimento a seguir sugere a tal curva em “S” que pára por volta dos oito mil casos. O problema é que não pára. E a razão para isto é que o “S”, neste caso, não tem nada que ver com o iogurte ou a infecção descontrolada. Com cinquenta milhões de habitantes, não é por ter oito mil infectados que o vírus fica com falta de espaço para crescer. O abrandamento deveu-se apenas à redução na taxa de novas infecções por causa das medidas tomadas e o crescimento a seguir depende do valor em que ficou essa taxa. E isso não dá para ver com a curva logística.



Para explorar isto corri umas simulações. Considero que uma pessoa infectada demora alguns dias até contagiar os outros, depois tem 50% de probabilidade de não ter sintomas, continuando a contagiar os outros até se curar. Se tiver sintomas acaba por ser testada*. São essas pessoas que notamos no número de confirmados. O gráfico abaixo mostra dois casos. Em ambos os casos, a infecção começa com 200 infectados, que uns dias depois se tornam contagiosos e começam a passar a doença a outra pessoa com 20% de probabilidade por dia. Isto dá o tal crescimento exponencial. Ao dia 40, nesta simulação, o governo toma medidas extraordinárias e a taxa de contágio cai abruptamente. Pode ver-se um efeito imediato no grupo das pessoas contagiosas. Mas isto só se vê na simulação. Na realidade, não sabemos o que se passa com essas pessoas porque só vemos o sub-conjunto que tem sintomas. Neste, o efeito surge gradualmente e aparenta chegar ao tal ponto de inflexão no dia 50, aproximadamente, quando a curva parece afastar-se da exponencial. Mas isto não é por ter chegado a meio caminho do máximo. Não é uma curva logística. É apenas o efeito da taxa de contágio ter diminuído por causa das medidas tomadas.



Isto também mostra como o resultado depende crucialmente da eficácia das medidas. O gráfico da direita mostra a simulação em que a probabilidade de contágio caiu para 1.2% por dia. Neste caso**, a propagação baixou o suficiente para a epidemia ficar controlada. Mas se as medidas tomadas baixarem a taxa de contágio dos 20% originais para 2.2% em vez de 1.2%, ficando aquém só um ponto percentual, a doença continua descontrolada. É por isso que me preocupa a travagem na queda da taxa de crescimento dos casos de COVID-19 em Portugal, que podemos ver no gráfico abaixo. Se chegarmos a 1 sabemos que o problema está controlado, pelo menos enquanto mantivermos as medidas de mitigação que temos agora em vigor. Mas até lá não adianta andar à procura do “ponto de inflexão” ou a fazer previsões de patamares com modelos logísticos. A curva logística é o modelo errado porque estamos muito longe de atingir o máximo de capacidade do vírus infectar a população. E o progresso futuro, mesmo mantendo as condições como estão agora, depende muito de diferenças demasiado pequenas para se detectar por enquanto olhando para os pontos.



* Na pasta partilhada incluí o código para estes gráficos e simulação. Estão lá os parâmetros para estas probabilidades para quem quiser ver, e simulo também os casos críticos, mortos e recuperados, mas esses detalhes não são importantes para este post. Está tudo aqui.
** A simulação é estocástica e não dá sempre exactamente os mesmos resultados. Mas corri várias vezes e, com estes valores, dá isto em geral.

segunda-feira, setembro 16, 2019

A heurística.

No Esquerda Republicana, João Vasco defende a «legitimidade do argumento de autoridade» e propõe que «Se não sou especialista numa área, eu uso uma heurística: confio no consenso entre especialistas.» Defende-o, alegadamente, em oposição à tese de que «a Ciência recusa "autoridades", o que importa são as "evidências", "devemos avaliar os argumentos pelos seus méritos, avaliar as evidências que os suportam, e ignorar a quantidade de gente que a eles adere ou a autoridade dos mesmos" e por aí fora». Propõe João Vasco que, aceitando argumentos de autoridade, poderemos ter uma «epistemologia diferente, adequada a uma população que tem de formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»(1)

A intenção parece boa mas temo que não funcione. Primeiro, “confio no consenso entre especialistas” não é uma heurística útil. Tal como “cuida da tua saúde para não teres doenças”, é um conselho que nada diz acerca de como o aplicar. Vou confiar nos teólogos para saber se Deus existe, nos astrólogos para saber a astrologia funciona e nos criacionistas para saber se o criacionismo é verdade? Não adianta confiar nos especialistas sem saber identificar os especialistas certos. Além disso, esta heurística de nada serve contra meias verdades e outros engodos. Por exemplo, se alguém disser que as Torres Gémeas não podem ter caído por causa dos aviões porque, segundo os especialistas, a temperatura a que arde o combustível dos aviões não é suficiente para derreter o aço. Confiar naqueles que se julga especialistas não é uma maneira fiável de «formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não [se] tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.»

Um equívoco parece estar na distinção que João Vasco faz entre evidências (isto é, indícios de que uma hipótese é verdadeira) e a opinião de especialistas. A opinião de especialistas é também evidência, exactamente como o resto. Na verdade, as evidências são apenas hipóteses das quais, de momento, julgamos não valer a pena duvidar. Aquilo que nos parece evidente que é verdadeiro. Por exemplo, se eu confio na balança então considero o número que lá aparece como evidência para o meu peso. Se não confio, então é algo que tenho de testar. Com pesos conhecidos, por exemplo. Qualquer investigador confia (tentativamente) em muitas fontes autoritárias, desde os aparelhos que usa aos artigos que cita e em cujos resultados baseia o seu trabalho. Tudo isso são evidências que, em conjunto, terá de avaliar para determinar que conclusão suportam. Tanto faz se são resultados de experiências, valores fornecidos por aparelhos, citações de artigos ou alegações de peritos. Não são fiáveis sem “tempo nem disponibilidade” para as avaliar porque é sempre preciso avaliar o padrão que formam. É preciso atenção constante àquelas inconsistências que indicam que este perito está enganado, aquele aparelho está a funcionar mal ou aquela medição foi mal feita.

É por isso que a “heurística” de seguir os peritos não serve de substituto à análise das evidências. A opinião dos peritos é mais uma peça do puzzle e não há uma regra simples para distinguir entre as evidências correctas e as incorrectas. O que funciona, mas que é mais trabalhoso do que confiar nos peritos, é manter uma atitude persistente, consciente e deliberada de atenção ao encaixe das evidências e a disposição para considerar hipóteses alternativas, questionando premissas sempre que algo não encaixe bem. Isto exige treino e depende de ter informação e de compreender como essa informação está interligada. Nada disto é possível sem tempo e disponibilidade para avaliar as evidências.

Infelizmente, isto que João Vasco propõe está a ganhar popularidade. Há quem queira que empresas policiem as “redes sociais” para eliminar afirmações falsas ou prejudiciais. Há fact checkers que se apresentam como fontes autoritárias que nos basta consultar para ficarmos imunes ao engano. Até serve para vender jornais, alegando que, se pagarmos aos jornalistas, eles tornam-se fontes fiáveis de informação correcta e imparcial. Mas nada disto resolve o problema de muita gente não ter «tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências.» Para resolver esse problema é preciso, primeiro, dar tempo às pessoas e a formação necessária para que possam pensar criticamente. E, depois, é preciso que as pessoas queiram usar esse tempo e essa capacidade para avaliar adequadamente as hipóteses que lhes apresentam. Confiar em fontes fiáveis é uma boa ideia mas não dispensa a atenção necessária para avaliar se a fonte é realmente fiável, se merece essa confiança e se não está a dizer asneira. Sem esse cuidado, esta “epistemologia diferente” é apenas pôr-se jeito para enfiar barretes.

1- João Vasco, A Ciência e os argumentos de autoridade

sábado, fevereiro 16, 2019

Treta da semana: aumentar a vibração.

Nos próximos anos, entre 2019 e 2024, irá ocorrer o Evento. «O Evento é o avanço por compressão [...] quando as forças da Luz acima e abaixo da superfície do planeta se encontram na superfície do mesmo». Várias coisas vão suceder nesse Evento. Algumas à escala galáctica, como «uma grande onda de Luz ou flash, de Energia Divina, de luz do Sol Central Galáctico diretamente para a superfície do planeta. (O Sol Central Galáctico é um objecto na constelação de Sagitário)». Outras mais modestas, como «Detenções e desmantelamento das organizações criminosas que operam a nível planetário (prisão em massa da cabala)» (1). Mas atenção: «O planeta irá passar de um planeta de 3.ª para 4.ª densidade (daí as alterações climáticas, terramotos, etc), portanto irá elevar a sua frequência, portanto os humanos também terão de o fazer, se desejarem permanecer cá, sendo que a Época Dourada começará na Terra». Não podemos deixar que o planeta passe para a quarta densidade sem aumentarmos nós próprios a nossa frequência. Felizmente, não é preciso comprar um martelo pneumático ou uma cadeira de massagens. O autor, informado pelos seres de Luz, diz-nos o que fazer e não fazer. Não devemos comer açúcar, nem beber água da torneira (porque tem químicos, principalmente H2O) e sobretudo evitar «Água ácida». É importante também saber que «as pessoas depressivas sugam-nos a energia, portanto diminuir o contacto com elas». Se tiverem algum amigo que se sinta mais em baixo, cortem relações. Um suicídio a mais ou a menos faz pouca diferença nas estatísticas e sempre poupam o incómodo de aturar gente deprimida. Ironicamente, nessa página está também este aviso: «Internet: se a mesma for usado de forma consciente é bem-vinda, mas a maioria usa a internet obviamente para aquilo que não interessa e ocupa muito do seu tempo livre.»(2)

No YouTube há muitos vídeos a explicar como se pode aumentar as vibrações e até que frequências são boas para vários efeitos. 432Hz cura, aumenta a vibração e energia positiva e ainda traz amor, força e poder (3). Com 963Hz activa-se imediatamente a “Glândula PINEAL” o que, suponho, é bom, mas não explica porque é que o vídeo dura quase quarenta minutos se a activação é imediata (4). Mas parece que o mercado das frequências na nossa língua está dominado por brasileiros. Encontrei apenas dois mestres portugueses desta disciplina do aumento vibracional e um deles, Jorge Silva, parece estar agora ainda menos activo do que estava quando fazia vídeos. Deixo aqui as suas recomendações para aumentar a vibração do corpo ou, pelo menos, para dormir uma sesta:



O outro, achado graças ao Facebook, é Ivo Artur, aparentemente um português que vive no Brasil e que tenta conciliar as duas pronuncias com resultados fascinantes. Sem menosprezar o contributo de Jorge Silva, julgo que Artur causa mais vibrações, especialmente na região abdominal.



Eu gosto de terminar os meus posts frisando a mensagem principal, em jeito de conclusão, mas neste caso não sei o que fazer disto. Deixo-vos apenas mais um vídeo de Artur, que penso ilustrar bem o que conta como explicação e conhecimento nestas andanças. Muitas vibrações para todos, mas só das positivas, uma boa dose de namastés e não bebam água ácida que é só químicos.



1- oevento.pt, O que é o Evento
2- oevento.pt, O que nos faz subir ou descer a nossa Energia, Frequência e Vibração
3- YouTube, Clube de Meditação para Pensamentos Poderosos, 432Hz Frequência de Cura | Aumentar Vibração e Energia Positiva | Atrair Amor, Força e Poder
4- YouTube, Outro Mundo, Glândula PINEAL| 963Hz | ATIVAÇÃO IMEDIATA | Meditação |

domingo, janeiro 27, 2019

Treta da semana: Terapia de Consciência.

No dia 19 de Novembro, Maria Borges lançou oficialmente, e com amor, a sua «marca como terapeuta» na Terapia de Consciência (1). Tinha tudo para correr bem. Comentários encorajadores das amigas, um site na Web, página no Facebook com mensagens inspiradoras (2), os preços das consultas online e até testemunhos de clientes satisfeitas, se bem que com alguma intersecção aparente com as amigas mencionadas atrás. Só cometeu um erro. Pagou ao Facebook para fazer publicidade ao seu consultório virtual, o que é arriscado porque nunca se sabe onde é que o anúncio vai aparecer e há por aí malucos que só estão bem a dizer mal.

Como eu não sou desses, começo pelo que me pareceu, inicialmente, ser um aspecto positivo na empreitada de Borges. Nestas coisas, vejo muitos exagerarem as suas qualificações e as virtudes da cobra cuja banha querem vender. Pareceu-me louvável de Borges evitar este erro. Descreve a sua terapia de forma minimalista e abstém-se de quaisquer alegações passíveis de induzir o leitor a julgá-la uma terapeuta qualificada. Pouco mais adiante do que «A terapia de consciência permite uma leitura, compreensão e orientação do seu estado de consciência de forma integral» e que, como terapeuta, tem quatro características importantes, cada uma ilustrada com o boneco apropriado: escuta activa (uma orelha); linguagem acessível (um balão); sensibilidade avançada (uma folha); e foco no resultado (um alvo). São cinquenta euros por uma consulta online individual, oitenta se for um casal, por uma terapia descrita assim:

«Com as ferramentas necessárias possibilito acesso a campos de informação necessários para compreender o seu percurso, os seus bloqueios, as suas potencialidades e em conjunto chegarmos a um caminho mais adequado àquilo que realmente faz sentido para si.»

Despertou-me a curiosidade e fui procurar mais sobre esta Terapia de Consciência. Foi durante essa breve pesquisa que a minha percepção de virtude na abordagem de Borges se foi transformando em preocupação. Encontrei material sobre estados alterados de consciência mas não deve ser isso porque não dá para fazer dessas coisas com consultas online. Acerca da Terapia de Consciência apenas descobri que «tem como base explorar os nossos processos mais inconscientes, fazendo uma análise integrada dos vários aspectos que nos podem estar a aprisionar e construindo de forma integrada soluções e orientações para a resolução de situações que nos podem estar a impedir de trazer as nossas virudes [sic] e bem-estar.» (3).

Não sei onde a terapeuta Maria Borges se formou em Terapia de Consciência. Talvez haja cursos disso. Talvez me tenha escapado alguma fonte mais substancial sobre esta terapia. Mas receio que isto seja sinal de uma twitterização das tretas. Agora tem de caber tudo em 250 caracteres ou ser pequeno que baste para ler à pressa no telemóvel no intervalo de esmagar rebuçados. Se for isso, é pena. Ganhei gosto por tretas mais elaboradas e temo que já não tenha idade para me adaptar a este minimalismo.

1- Maria Borges, Facebook.
2- Maria Borges, e Facebook
3- Essência de Luz, Terapia de Consciência

domingo, outubro 21, 2018

Conceitos de Deus.

Acerca de como podemos conceber os deuses, António Afonso escreve no seu blog que o argumento do mal pode ser facilmente refutado se «alegar que na minha concepção (particular), Deus são as leis fundamentais da física. Por exemplo, na minha concepção particular, Deus é a gravidade. E claro, eu posso demonstrar que a gravidade existe e faz coisas extraordinárias, logo, na minha concepção particular de Deus, Deus existe.»(1) Realmente, o problema de determinar se existe algo chamado “Deus” pode ser trivialmente resolvido pela afirmativa chamando “Deus” a algo que exista. A minha máquina de lavar roupa, por exemplo. Mas isto não ajuda muito e Afonso também o reconhece, notando que «Partir de concepções particulares para justificar uma crença sobre Deus [pode ser um erro] porque podem ser ignoradas princípios fundamentais». Eu diria que o problema é mais fundamental ainda porque, na verdade, não estamos a mudar qualquer concepção de Deus. Cada concepção de Deus continua a ser o que sempre foi. O que fazemos com este truque é simplesmente apontar a palavra “Deus” para um conceito ou objecto diferente. É um truque recorrente entre apologistas, quando dizem que Deus é amor ou Deus é a verdade, mas isto é só brincar com as palavras porque as questões importantes são se o universo foi criado de propósito por um ser inteligente e se esse criador se rala alguma coisa connosco.

Os argumentos do mal incomodam os crentes porque mostram formas de concluir que não é plausível existir um deus competente que se importe com o bem. A ideia é simples. Há actos tão maldosos que qualquer ser capaz de os impedir teria o dever moral de o fazer. Se o Super-Homem existisse, teria a obrigação de usar os seus poderes para impedir a malta do ISIS de cometer as atrocidades que têm cometido. Um deus infinitamente mais poderoso teria uma obrigação ainda maior. Se não o fez ou é ruim ou não existe. Para quem defende a existência desse super super homem este argumento é inconveniente. Mas Afonso comete o mesmo erro que cometem os apologistas desta crença ao julgar que o mais relevante é a refutação de um argumento específico destes. Como aquele que Afonso considera:

«1) Se Deus existe, deve intervir no mundo para prevenir o mal.
2) Deus não intervém no mundo para prevenir o mal.
3) Logo, Deus não existe.»


O problema desta abordagem da refutação de cada argumento isolado é que perde de vista o mais importante. Cada argumento é apenas a expressão de uma linha de inferência. Para refutar o argumento basta invocar premissas que contrariem algum elemento do argumento ou indiquem condições nas quais alguma inferência é inválida. Por exemplo, no caso do argumento que Afonso formulou, podemos negar a primeira premissa alegando que nem todo o mal deve ser prevenido. Há actos maldosos que cabem nas liberdades legítimas do indivíduo. Podemos negar a segunda alegando que há milagres em que Deus intervém e corrige algum mal. E isto pode ser repetido para todos os argumentos exprimindo todas as linhas de inferência que levam à conclusão de que não existe um ser poderosíssimo ralado com a nossa existência. Isto tem de ser feito caso a caso com diferentes desculpas para cada argumento e para cada observação.

Mas o mais importante não é cada linha de inferência individual. É o padrão de inferências consistentes que se reforçam em contraste com as desculpas ad hoc inventadas para tentar atacar cada uma delas. O argumento do mal é relevante apenas como peça desse puzzle, pela forma como encaixa no resto. Sempre que desvendámos algum processo natural descobrimos que não tinha nada que ver com deuses. A justificação que cada crente dá para acreditar no seu deus, pela sua fé, é a mesma que dão outros para acreditar em deuses diferentes. Os milagres que alegadamente demonstram a preocupação dos deuses para connosco só aparecem nos buracos do nosso conhecimento e são cada vez mais pequenos para lá conseguirem caber. E assim por diante. Há muitas formas de chegar à conclusão de que o universo não foi criado de propósito por um ser que se rala connosco e são todas consistentes entre si.

Apesar de ser sempre possível propor premissas que enfraqueçam qualquer argumento isolado, quando olhamos para as refutações teístas encontramos o padrão oposto ao que suporta o ateísmo. Não há consistência. Não se reforçam mutuamente. Alteram o significado da palavra “Deus” conforme dá mais jeito. As premissas invocadas para justificar a fé de uns são contrárias às que invocam para rejeitar as religiões dos outros. O milagre pelo qual Deus salva os sobreviventes do desastre contradiz a justificação dada para não ter salvo os que não sobreviveram. E quando falta desculpa melhor refugiam-se no mistério. É como tentar completar o puzzle fingindo que os buracos fazem parte do desenho. E com mais buracos que desenho.

Este é o problema mais importante das hipóteses teístas, mas não acontece só no teísmo. É um problema comum quando se tenta defender uma tese havendo alternativas com melhor suporte nas evidências. É preciso fragmentar, isolar pedaços, descartar dados inconvenientes e fazer de conta que não há problema em invocar aqui justificações que contradizem as que se invocou ali. Isto é o que faz o criacionismo e a astrologia, as teorias da conspiração, as ideologias políticas extremistas, os que negam o aquecimento global e a generalidade das tretas pseudo-científicas que nos querem impingir. Focam na refutação deste ou daquele argumento invocando as premissas necessárias mas, se dermos um passo atrás e olharmos para o boneco, vemos que não faz sentido nenhum.

1- António Afonso, Uma concepção particular do sujeito

quinta-feira, agosto 02, 2018

Treta da semana: incêndios terroristas de geo-engenharia.

Durante a minha ausência, certamente se interrogaram acerca da relação entre os incêndios, a pedofilia e Bruxelas. Não se preocupem mais com isso. Já estou de volta para esclarecer tudo.

Segundo fontes fidedignas que conhecem uma pessoa que foi agente da Mossad (melhor ainda do que ter um amigo na NASA), há pessoas poderosas que querem criar uma Nova Ordem Mundial e juntar todo o mundo num só país, com um só governo. Não é claro porquê. Para quem tem poder e dinheiro dá muito jeito mover capital entre países com níveis de vida diferentes enquanto os trabalhadores ficam presos à sua terra. Só assim podem vender caro num lado o que foi produzido por tuta-e-meia no outro e ainda tratar dos impostos num terceiro país que não lhes cobre nada. Mas a Nova Ordem Mundial é liderada por Nazis e Swiss Octogon Templars, descendentes de atlantes e faraós, pelo devem ter lá as suas razões para querer um só país (1).

Para perceber o que isto tem que ver com incêndios, pedofilia, e Bruxelas é preciso primeiro conhecer a operação Gládio. Ostensivamente, é um termo informal para operações de resistência clandestinas que foram organizadas pela NATO para a eventualidade de invasão soviética (2). Mas, na verdade, é a operação secreta pela qual a NATO controla todo o terrorismo mundial (3). Desta forma, a NATO conduz ataques terroristas para culpar organizações como os Taliban ou o ISIS, que não fazem nada senão ficar com os louros. Bela vida, a de terrorista fajuto. O quartel-general da NATO, e centro de comando da operação Gládio, fica em Bruxelas, que é também onde se desmantelou grandes redes de pedofilia, «o mecanismo principal de controlo da Matriz Global de Controlo»(4). Para criar um governo mundial é preciso começar pelo mais fundamental em qualquer governo. Ou seja, violar crianças. Tudo o resto tem de assentar nessa fundação e, como vêem, está tudo interligado. A NATO gere a operação Gládio em Bruxelas onde pedófilos lançam os alicerces do novo governo mundial. Mas como nem só de pedofilia vive uma ditadura, é também preciso terrorismo incendiário e geo-engenharia.

Um governo mundial só é possível se as pessoas acreditarem no aquecimento global. Porquê, não percebi. Mas é assim. E, para isso, não basta a temperatura aumentar. É fácil os nazis e os templários suíços aumentarem a temperatura porque controlam engenheiros «capazes de fabricar qualquer estado de tempo que desejem»(5). Mas ninguém vai acreditar no aquecimento global só por ver a temperatura aumentar. É preciso incêndios. E a melhor forma de provocar incêndios sem ninguém suspeitar da NATO é a NATO usar aviões especialmente equipados com raios laser que só a NATO tem (6). Se passasse alguém no mato com um isqueiro e uma garrafa de gasolina toda a gente desconfiava da NATO. Óbvio. Quem mais poderia ser? Mas usando aviões secretos e raios laser a NATO fica livre de qualquer suspeita. Ou ficaria, se não fossem os argutos detectives da Internet e os seus conhecidos na Mossad.

Isto não é só especulação. Há evidências sólidas. A tragédia recente na Grécia foi comprovadamente um ataque das forças terroristas e pedófilas da NATO, controladas a partir de Bruxelas, com o intuito de pôr os nazis a controlar o governo mundial. A prova disso está nas fotos de carros carbonizados. «O que poderia ter causado os danos invulgares de ruas cheias de automóveis queimados ao pé de árvores e edifícios que permaneciam ilesos se não AED (Armas de Energia Dirigida)?»(7). Realmente, o que poderia? Uma possibilidade seria a de os carros conterem materiais inflamáveis, como gasolina, plásticos e borrachas, e bastar que algo lhes pegue fogo para que ardam completamente. Parvoíce. A única explicação plausível é que os pilotos terroristas e incendiários da NATO, enquanto disparam lasers para as florestas, gostam também de mandar uns disparos contra os carros para se divertirem e deixarem pistas.

Relendo o texto que escrevi admito que há aqui coisas que podem parecer pouco credíveis. É um dos muitos efeitos das chemtrails que são usadas para a geo-engenharia do estado do tempo (8). Sempre que houver aviões a deixar rasto evitem sair à rua sem o chapéu de folha de alumínio.

1- The Millennium Report, The Power Structure of the New World Order
2- Wikipedia, Operation Gladio
3- The Millennium Report, GLADIO: “The SWORD” Used By The North Atlantic Terrorist Organization Worldwide
4- The Millennium Report, Pizzagate, que refere State of the Nation, Pedogae. 5- The Millennium Report, CALIFORNIA FIRESTORMS: Who’s geoengineering the statewide conflagration and why?
6- State of the Nation, 500 Trillion Watt Laser Created In California (Video)
7- The Millennium Report, FALSE FLAG ATTACK: Greece Targeted With Geoengineered Wildfire Terrorism (Photos)
8- The Millennium Report, Government Finally Admits Chemical Geoengineering Via Chemtrail Operations

sábado, março 24, 2018

Treta da semana (atrasada): sim, mas não assim.

A propósito da disparatada licenciatura em “medicina” tradicional chinesa, David Marçal e Carlos Fiolhais apontaram «a falta de provas científicas» e de «fundamentação científica» dessa disciplina e que «É por causa da medicina baseada na ciência que hoje vivemos mais e melhor.» Esta «medicina científica» é melhor que a outra que «usa uma linguagem pré-científica»(1). Miguel Guimarães, bastonário da ordem dos médicos, fez o mesmo: «Em vez de [defenderem] a ciência com base na investigação e na metodologia científicas [, defendem que] a saúde e a ciência não necessitam de ter valor científico.» Com muito «validar cientificamente», «base científica», «fundamentação científica», «metodologia científica» e afins, conclui que «Sem validação científica, devidamente comprovada, é a saúde das pessoas que fica em sério risco.»(2).

Eu concordo que as “medicinas” tradicionais são uma treta perigosa e que não têm nada de científico. Mas esta abordagem está errada. Não apenas por se pôr jeito de críticas demagógicas como a de Leonor Nazaré, que denuncia o «paradigma científico […] do materialismo positivista», alega que «investigação científica séria e independente [...] propõe alternativas ao paradigma materialista da ciência» e outros disparates difíceis de desmontar quando se defende a ciência como fonte autoritária de conhecimento (3). Marçal, Fiolhais, Guimarẽs e, infelizmente, muita gente que tenta defender a ciência, erram porque invertem a direcção da relação causal. Dizer que a medicina é fiável por ser científica é como dizer que o atleta foi mais rápido porque lhe deram a medalha de ouro. É o contrário.

O teorema do “nenhum almoço grátis”, de Wolpert, Macready e Schaffer, diz, aproximadamente, que todos os métodos para tirar conclusões a partir de um conjunto finito de dados terão o mesmo desempenho, em média, se aplicados a todos os conjuntos de dados matematicamente possíveis (4). Ou seja, a priori, não há um método científico que seja melhor que qualquer outra coisa. Podia bem ser que a melhor forma de prever e manipular a realidade fosse lendo as folhas do chá, rezando ou lançando búzios. Pode haver um universo paralelo no qual a medicina tradicional chinesa é que funciona e a nossa ciência só dá respostas falsas. Acontece que a realidade em que vivemos não permite tudo o que é matematicamente possível e, nesta realidade, os métodos para tirar conclusões e fazer previsões não têm todos o mesmo desempenho.

É importante perceber que a diferença entre um método que funciona e um que não funciona é mera consequência da estrutura da realidade que estamos a descobrir. Não é característica intrínseca dos métodos. Por isso, aquilo a que chamamos “método científico” não é uma autoridade a priori de virtude epistémica e conhecimento. É um conjunto de técnicas que vamos aperfeiçoando para aproveitar as regularidades da realidade que nos calhou.

É por isso falso dizer-se que a medicina a sério é mais fiável porque é científica. O correcto é dizer que esta medicina é científica porque a sua metodologia foi aperfeiçoada para ser fiável. Muitos truques que compõem o método científico servem para combater a nossa tendência para a ilusão e o auto-engano. Não podemos fiar-nos nas respostas dos pacientes quando perguntamos se o medicamento funciona. Temos de os enganar, dando a uns comprimidos falsos para medir a diferença, porque todos desejam que o medicamento funcione. Quem avalia as respostas também não pode saber qual é o comprimido verdadeiro porque, se souber, será tentado a viciar o resultado. Mesmo acautelando tudo isto com ensaios duplamente cegos, temos de esperar por confirmação independente porque somos demasiado espertos para fazer ciência de forma fiável. E temos de recorrer a truques da estatística para não tomarmos como significantes resultados que são mero acaso. O que torna o método fiável é ser aplicado com atenção à forma como a realidade funciona, em particular a parte da realidade que somos nós, as nossas limitações e os nossos enviesamentos. O método não é fiável por ser científico. É científico porque é fiável.

Isto é muito importante quando se defende a ciência. Não só porque dar a entender o contrário é transmitir uma ideia falsa, o que é contraproducente, como também porque perceber que a ciência é produto da procura contínua por métodos mais fiáveis permite descartar tretas como a das “outras formas de conhecimento”, os espantalhos do “cientificismo” e do positivismo lógico, o falso conflito entre filosofia e ciência e tantos outros disparates que dependem da defesa – errada – da ciência como autoridade última que dita o que é válido e o que não é. Se percebermos que “ciência” é simplesmente o rótulo que colamos ao conjunto de métodos que se revelaram, até hoje, melhores do que as alternativas que já experimentámos, esses ataques perdem eficácia.

Assim, proponho aos defensores da ciência que descartem definitivamente a argumentação fácil, mas incorrecta, que se apoia em “provas científicas”, “validação científica”, “base científica” e afins. Não justifica nada e só induz em erro. É melhor explicar porque é que os métodos que a ciência vai adoptando são mais fiáveis do que as alternativas descartadas. No caso da medicina tradicional isso até é fácil. Antigamente, ninguém conseguia averiguar se as explicações que propunham estavam correctas. Especulavam acerca de humores, de yin e yang, de meridianos e da influência dos astros mas faltava-lhes os instrumentos e o conhecimento para ver quem tinha razão. Como é inevitável nesses casos, quase ninguém tinha razão e os restantes tinham pouca e só por sorte. Não se pode compreender infecções antes de inventar microscópios. É isso que interessa explicar. Ser científico ou não é uma mera consequência disto e não justifica nada.

1- Público, Terapias alternativas: quando as portarias substituem as provas.
2- Público, O ministro da “medicina tradicional chinesa”
3- Público, Biopolítica
4- Wikipedia, No free lunch in search and optimization

sábado, fevereiro 17, 2018

Treta da semana (atrasada): os três aquecedores.

Foi recentemente publicada a portaria 45/2018, que «Regula os requisitos gerais [da licenciatura] em Medicina Tradicional Chinesa». Entre outras coisas, estes licenciados em “medicina” terão de dominar «a) Teorias de medicina tradicional chinesa, incluindo [...] Os seis níveis, as quatro camadas, os três aquecedores» (1). Os três aquecedores são órgãos fictícios que os chineses julgavam fazer circular os fluidos pelo corpo (2). São os erros normais em qualquer investigação porque, no fundo, o nosso conhecimento cresce precisamente corrigindo erros anteriores. Na “medicina tradicional” grega, Aristóteles afirmou que as mulheres têm menos dentes que os homens. É falso mas faltavam-lhe as noções de estatística necessárias para perceber que não basta contar os dentes de uma desdentada qualquer para fundamentar uma conclusão destas. Um tratamento para feridas do século XVII era o “pó da simpatia”, um preparado de sulfato de cobre que se aplicava à lâmina que causara o ferimento. Tinha a vantagem de poupar o paciente às porcarias que, de outra forma, lhe iriam pôr na ferida (3).

As “medicinas” tradicionais brotaram da imaginação de pessoas mais ignorantes do que nós. A nossa medicina também não é perfeita. Provavelmente, as gerações vindouras ainda vão corrigir muitos erros. Mas quanto mais se sabe melhores soluções se encontra. É obviamente indesejável optar pelo saneamento tradicional e ter toda a gente despejar os penicos pela janela. Ou o transporte tradicional a partilhar a autoestrada com carros de bois. A medicina tradicional é igualmente absurda. Até 1960, a esperança média de vida na China rondava os 40 anos. Mesmo com antibióticos, vacinas e outras coisas nada tradicionais, hoje ainda é dez anos menor do que em Portugal (4). Quem diz que a medicina tradicional chinesa é melhor do que a medicina moderna portuguesa ou tem algo a ganhar com isso ou tem o barrete enfiado até ao queixo.

Ah, e tal, mas a medicina tradicional até pode ter coisas boas. Com certeza. Eu tenho um relógio parado que também está certo duas vezes por dia. Seja como for, a medicina progride aproveitando o que funciona, melhorando o que dá problemas e procurando alternativas. Quando eu era miúdo tomava aspirina para a febre. Era um risco calculado, porque há quem tenha reacções graves à aspirina (5). Mas antes isso do que ficar com danos cerebrais se a febre fosse muito alta*. Os meus filhos tomaram paracetamol em vez de aspirina, porque hoje sabemos ser mais seguro. Medicina é isto. Não faz sentido inventar uma “medicina da aspirina” em contraponto à “medicina do paracetamol” só para haver complementaridade ou tretas dessas. O mais racional é tratar cada doença com a terapia melhor. Isso de inventar “medicinas” avulsas é só truque para fazer negócio.

A maneira dos praticantes destas “medicinas” responderem a críticas demonstra bem os seus objectivos. Um técnico competente responde a críticas admitindo que errou ou explicando por que tem razão. Mas quando João Cerqueira questionou a eficácia terapêutica dos serviços vendidos no Centro de Cura Corpo Limpo (6) recebeu uma notificação de um advogado solicitando que retratasse a crítica por colocar em causa «a credibilidade, o bom nome e a imagem» dos auto-proclamados terapeutas (7). Ficou de parte a questão mais importante, e mais objectiva, que é a da eficácia e segurança do «método próprio de tratamento Cérebroterapia e Despertar da Consciência» que vendem no tal “Centro de Cura”. O truque da virgem ofendida é muito usado nestas andanças. Há uns anos fui depor a tribunal por causa disso (8). Hoje, por Cerqueira ter dado uma classificação baixa à página “Clínicas Pedro Choy”, Pedro Choy comentou que «Fica mal a um profissional de saúde ( sem grandes provas dadas, diga-se de passagem) criticar o trabalho dos seus concorrentes»(9). No mesmo sítio, Ana Rodrigues, terapeuta holística e facilitadora do método Kiron, concordou: «Fica muito mal a um professional de saúde, seja de que área for, criticar / julgar o trabalho de outro profissional.» Faz sentido. Quem tem pés de barro não dança. Mas a crítica, principalmente entre peritos, é o motor principal do progresso. É à prática de criticar que devemos o conhecimento que temos, incluindo o conhecimento de antibióticos, vacinas, saneamento básico e medicina preventiva que dá tanta saúde a tanta gente que a podem esbanjar em tretas. Ironicamente, foi o enorme sucesso da medicina a sério que permitiu a proliferação das outras “medicinas”. Ana Rodrigues defende que «Cada um é livre de ter a sua experiência! O que funciona para uns às vezes não funciona para outros, faz parte do caminho». Mas se tem mais de quarenta anos, ou se não viu metade dos seus filhos morrer antes dos cinco, é graças à medicina a sério ser muito mais fiável do que o método de Kiron, a acupunctura ou a Cérebroterapia.

Há licenciaturas que abordam temas fictícios. Em literatura, história ou filosofia, por exemplo, é preciso estudar relatos que não correspondem à realidade. Mas, com a teologia fora do ensino público, é invulgar obrigar os alunos a afirmar serem reais coisas tão obviamente fictícias como o sistema dos meridianos, as patologias energéticas ou o “qi”. Também parece pouco útil, ou sequer honesto, licenciar técnicos no tratamento de doenças dos três aquecedores. Dizem que a oposição da Ordem dos Médicos é “sectária” (10) mas parece-me tão razoável que os médicos se oponham a isto quanto seria os químicos protestarem contra uma licenciatura em “química tradicional” que leccionasse o flogisto e a pedra filosofal. O que querem ensinar são erros que a ciência já corrigiu. Mas se a racionalidade continuar a perder terreno, pelo menos deixem-me criar uma licenciatura em caça de gambozinos ou uma pós-graduação em fadas e duendes. Será tradicional e, sem as restrições da realidade, terei muito menos trabalho a preparar as aulas. A quem criticar a matéria, também já sei o que responder: criticar é feio e o caminho é mesmo assim; não serve para todos. Este caminho é bom é para os que ficam servidos.

*Admito que, no meu caso, talvez a aspirina não tenha sido inteiramente eficaz.

1- DRE, Portaria n.º 45/2018
2- Shen-Nong, Triple Burner
3- Wikipedia, Powder of sympathy; e também weapon salve, na RationalWiki.
4- World Bank, Life expectancy at birth, total (years)
5- Wikipedia, Aspirin-induced asthma.
6- Scimed, Clínica Placebo – Centro de Cura Corpo Limpo
7- Scimed (Facebook): 8 Fevereiro, 18:59
8- Processado
9- Facebook, João Júlio Cerqueira reviewed Clínicas Pedro Choy
10- DN, Sociedade de Medicina Chinesa acusa Ordem dos Médicos de sectarismo

quarta-feira, agosto 30, 2017

Treta da semana (atrasada): acreditar, mas em quê?

Daniel Dennett pediu uma vez a um colega turco que lhe escrevesse uma frase verdadeira em Turco mas sem lhe dizer o que significava. Dennett usa esta frase como um exemplo de uma crença peculiar: Dennett acredita que a frase é verdadeira, porque confia no colega, mas não acredita na frase em si porque nem sequer sabe o que lá está escrito. Por estranho que este tipo de crença pareça, é cada vez mais comum entre os crentes religiosos.

Acreditar em algo inteligível é mais satisfatório e, por isso, as crendices inteligíveis são mais populares. Há quem acredite em vidas passadas, que a personalidade de cada um depende da posição dos planetas, que os santinhos intercedem por nós, que temos energias positivas e podemos ver o futuro nas cartas e carradas de coisas assim. Sempre foi assim. Quem acreditava que um deus escaravelho fazia rolar o Sol pelo céu acreditava num disparate. Mas era um disparate que se percebia, tal como o disparate de acreditar que andar de joelhos em Fátima convence a mãe do criador do universo a meter uma cunha pelo fiel que assim se sacrifica.

No entanto, a crença inteligível não é ideal para a religião. Nunca foi, e agora ainda é menos. Primeiro, porque perceber uma ideia permite interpretá-la e preencher os detalhes com a imaginação de cada um. Daqui brotam muitas variantes como se nota, por exemplo, nas várias formas de venerar santinhos e na diversidade de santinhos venerados. Formalmente, a Nossa Senhora de Fátima é a Nossa Senhora de Lourdes e de muitos outros sítios. Mas, na imaginação dos crentes, são diferentes. Quem faz promessas à de Fátima é a Fátima que as vai pagar. Assim, as crenças inteligíveis tendem a fragmentar as religiões, por vezes de forma violenta. No século XVI, alguns cristãos dizerem que os homens só se salvam pela fé e que só a Bíblia é fonte de dogmas acabou por matar oito milhões de pessoas em século e meio de guerras*.

A outra desvantagem das crenças inteligíveis é serem vulneráveis aos factos. Isto é menos problemático quando abunda a ignorância. Quando ninguém sabia o que era a trovoada ou que existiam bactérias não era estranho acreditar que as doenças e os raios fossem castigo de Deus. Sem perceber de estatística também não se estranha a crença no poder da oração. Muitas crendices ainda sobrevivem em buracos no conhecimento. Mas esses buracos são cada vez menores e cada vez mais gente os vai tapando. Por isso, especialmente entre os crentes mais esclarecidos, as crenças inteligíveis tornaram-se indefensáveis. Deus passou de um ser poderoso a quem se podia pedir favores a um conceito abstracto e paradoxal.

Miguel Panão dá bons exemplos das dificuldades de ser um crente erudito. O conhecimento que tem obriga-o a trocar crenças inteligíveis por alegações incompreensíveis: «Eu estou cada vez mais convicto de que Deus não existe como todas as outras coisas neste universo existem, mas sim que Deus é existência. Ou seja, onde assenta todo e qualquer processo passível de existir, seja ele racional ou relacional.»(1) Não se percebe como Deus pode ser existência, problema que Panão admite logo a seguir: «Paradoxal. Falar de Deus é querer atingir o inatingível. O confronto com os paradoxos quando nos referimos a Deus podem ser uma causa para alguém iniciar um processo que acaba no ateísmo. Não porque Deus não exista, mas por ser difícil lidar racionalmente com os paradoxos que encontramos em Deus». Não é apenas difícil. É mesmo impossível. Não é por acaso que lhe chamam o mistério da fé. É que uma hipótese acerca de um deus, para não ser obviamente inconsistente com a realidade que conhecemos, tem de ser uma hipótese que ninguém possa compreender. Tem de ser uma frase em Turco que ninguém pode compreender. E nem há turco que a traduza.

Esta característica curiosa da fé erudita mostra que ninguém acredita em Deus. A maioria dos adeptos de cada religião tem uma crença menos sofisticada, menos reflectida, e acredita em deuses primitivos, daqueles que se zangam, que respondem a orações, a quem se pede favores e de quem se teme castigos. São crenças inteligíveis mas incompatíveis com o que sabemos da realidade. Não são o Deus dos crentes eruditos. E os crentes eruditos não acreditam em Deus porque, como Panão demonstra, acreditam que é verdade algo que não se compreende.

Este processo de perda de inteligibilidade da crença religiosa também contrasta com o que tem acontecido na ciência. A ciência aproveita a acumulação de informação acerca da realidade para aperfeiçoar teorias e tornar-se cada vez mais esclarecedora. As religiões ou ignoram essa informação e insistem em crenças inteligíveis mas obviamente disparatadas, ou então fogem dessa informação e refugiam-se em demagogia incompreensível. A tese de que ciência e religião se complementam como vias para o conhecimento é obviamente falsa. A primeira procura a compreensão. A segunda procura precisamente o contrário.

* Ou então foi por causa da manteiga. Mas vai tudo dar ao mesmo.

1- Miguel Panão, Única resposta à possibilidade de Deus

sexta-feira, agosto 25, 2017

Treta da semana (atrasada): mais do mesmo...

Eu ando a tentar escrever sobre outras coisas. Mas não me deixam.

A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) recomendou que a Porto Editora retirasse do mercado dois livros de passatempos para crianças entre os quatro e os seis anos de idade. Um é azul, tem piratas e robôs e é vendido para meninos. O outro é cor-de-rosa, tem princesas e culinária e é vendido para meninas. A CIG recomendou retirá-los do mercado porque «Esta editora, ao optar por lançar duas publicações com atividades que diferenciam cores, temas e grau de dificuldade para rapazes e raparigas, acentua estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens.»(1)

Nas competições desportivas segrega-se atletas pelo sexo e os estereótipos de género associam às mulheres menor desempenho na maioria dos desportos. E, nestas competições desportivas, nota-se que o desempenho das mulheres é inferior. A metodologia da CIG recomendaria terminar a segregação sexual no desporto para não perpetuar este estereótipos que “estão na base” das diferenças de desempenho, para as mulheres finalmente se revelarem iguais aos homens no desporto. A imbecilidade disto é óbvia porque não é a segregação sexual e os estereótipos que causam as diferenças de desempenho. Pelo contrário, são consequência dessas diferenças.

Imaginemos que recuávamos 3.5 milhões de anos e observávamos uma família de Australopithecus afarensis, nossos antepassados ou perto disso, para perceber a origem destas diferenças. Julgando pelo seu dimorfismo sexual e pelo comportamento de outros primatas, machos e fêmeas teriam papeis sociais diferentes e evidentes logo na infância. Os jovens machos passariam mais tempo em brincadeiras agressivas de dominância e competição, e as jovens fêmeas mais tempo a aprender a cuidar dos mais pequenos imitando as fêmeas adultas. Os machos adultos teriam o papel de defender o grupo, especialmente contra machos de outros grupos, e as fêmeas adultas cuidariam das crias. Isto não teria “por base” estereótipos de género mas resultaria de especializações biológicas seleccionadas por optimizarem o sucesso reprodutivo. Ao fim de 3.5 milhões de anos disto não é surpreendente que homens e mulheres não tenham o mesmo desempenho desportivo.

Estas diferenças físicas não são dissociáveis das diferenças de preferências e comportamento. Não era por pressão cultural que as jovens fêmeas de Australopithecus afarensis aprendiam a cuidar das crias e os jovens machos lutavam uns com os outros. Era porque sentiam diferente afinidade por actividades diferentes, fruto de pressões selectivas que favoreceram esses comportamentos. Hoje, também essas preferências se manifestam no desporto. Mesmo com as mulheres só competindo com mulheres, ainda assim há mais homens a praticar desporto e a diferença é maior nos desportos mais competitivos. E começa logo na infância, com os rapazes muito mais predispostos a organizar competições desportivas (2).

Muita gente rejeita a explicação evolucionária alegando que as diferenças não podem ser só biológicas. É uma falsa dicotomia. Num animal como nós, o cultural e o biológico interagem e reforçam-se mutuamente. Por exemplo, o tamanho dos nossos maxilares e os problemas com os dentes do ciso são efeitos biológicos da inovação cultural que foi usar o fogo para processar alimentos. As diferenças biológicas entre os sexos também causam pressões sociais diferentes. Milhões de anos de vantagem reprodutiva para as fêmeas que escolhiam os machos vencedores resultou em preferências femininas que motivam os homens a competir e vencer, reforçando a tendência masculina para a competição. Daqui vem o estereótipo do homem valer pelo seu sucesso no desporto, nas artes ou na acumulação de dinheiro e poder. Por outro lado, o sucesso reprodutivo dos nossos antepassados masculinos dependeu mais de investir em mulheres férteis, capazes de criar filhos e que lhes dessem confiança na paternidade. O resultado é que os homens não se sentem especialmente atraídos por campeãs nem é provável que considerem a directora da empresa mais atraente do que a secretária trinta anos mais nova. O estereótipo da mulher ideal como jovem, bonita, maternal e fiel é apenas um esboço grosseiro destas preferências e não a sua causa.

As «desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens» resultam da interacção de factores biológicos e culturais que se influenciam mutuamente há muitas gerações. É um sistema adaptável mas, nos países mais desenvolvidos, estas desigualdades são cada vez mais reflexo de escolhas diferentes e não de imposições injustas. Por exemplo, enquanto na Nigéria 41% dos empreendedores são mulheres, nos EUA só 10% são mulheres e no Reino Unido são apenas 5.7% (3). Enquanto que nos EUA, onde nem sequer há licença de maternidade obrigatória, a probabilidade das mulheres chegarem a lugares de direcção nas empresas é apenas 15% menor que a dos homens, nos países nórdicos essa diferença chega aos 63%. Quanto melhores as condições oferecidas às mulheres, e melhor a segurança social, menos do seu tempo as mulheres querem vender (4). Os estereótipos não são a causa disto. São apenas um reflexo destas correlações. Querer reduzir estas diferenças retirando de circulação livros que “acentuam estereótipos de género” é como combater a obesidade eliminando livros com receitas de doces.

NOTA EXTRA: Foi muito criticada a diferença de dificuldade entre os livros por reforçar o estereótipo de que as meninas são menos inteligentes. Isto é parvoíce por duas razões. Primeiro, esse alegado estereótipo é fictício. Não há uma crença generalizada de que as meninas entre os 4 e os 6 anos são menos inteligentes do que os rapazes entre os 4 e os 6 anos. E, em segundo lugar, «No conjunto das 62 actividades propostas, existem seis cuja resolução é mais difícil no livro dos rapazes e três que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas.»(5). Se alguma coisa esta diferença pequena demonstra é que tiveram o cuidado de equilibrar a dificuldade das actividades entre os dois livros que, sendo para crianças dos 4 aos 6 anos, têm de cobrir uma gama bastante grande de capacidades.

1- CIG, NOTA À COMUNICAÇÃO SOCIAL
2- Time, The Scientific Reason Men Like Sports More Than Women
3- How we made it in Africa, African female entrepreneurs fighting their way to the top
4-Epicenter, The Swedish Gender Equality Paradox
5- Público, Livros de exercícios diferentes para meninos e meninas. Serão elas mais limitadas?

quinta-feira, agosto 10, 2017

Treta da semana (atrasada): a premissa.

James Damore, um engenheiro da Google, partilhou internamente com os colegas a sua opinião de que, apesar de existir sexismo e de ser contra o uso de estereótipos, «Quando abordamos o problema da desigualdade de representação numa população, temos de considerar diferenças nas distribuições ao nível da população» e propôs que parte das diferenças na distribuição de homens e mulheres em diferentes cargos se deve a diferenças biológicas entre os sexos (1). Por isso, defendeu que é errado tomar medidas discriminatórias para aumentar a representatividade feminina em certas áreas e que deve haver uma discussão aberta acerca das causas das diferenças sem moralizar a “diversidade” como um fim em si mesmo e sem reprimir opiniões contrárias. Confirmando pelo menos parte do problema, pouco depois foi despedido (2).

Uma alegação bastante criticada foi a de que as mulheres têm menos capacidade para resolver problemas de informática ou liderar projectos de engenharia. Também duvido disso. Damore aponta que as mulheres são mais colaborativas e «demonstram mais interesse em pessoas» enquanto os homens se interessam mais por coisas. É uma simplificação grosseira, mas aproximadamente correcta (3). No entanto, esta diferença pode ser até uma vantagem na organização de equipas, um aspecto fundamental de qualquer projecto de engenharia. Além disso, até aos anos 80 a proporção de mulheres na informática cresceu a par com as outras áreas, chegando aos 35% antes de começar a cair conforme a informática deixou de ser uma disciplina académica para se tornar numa profissão de engenharia bem remunerada (4). Isto sugere que a diferença não está na capacidade das mulheres. Em geral, exceptuando tarefas fisicamente exigentes, ou tarefas que já existam há milhões de anos, como cuidar de crianças pequenas, o trabalho remunerado é demasiado diferentes daquilo para o qual evoluímos para esperar diferenças de capacidade entre homens e mulheres. Onde é de esperar diferenças significativas é nas preferências. Homens e mulheres não querem as mesmas coisas.

Mesmo que não houvesse qualquer outra diferença biológica, uns terem útero, engravidarem e amamentarem enquanto outros só têm espermatozóides torna muito assimétrica a relação entre pessoas destes grupos. Os que têm menos para contribuir estão sob uma pressão maior para competir por recursos que os tornem mais atraentes. Prolongue-se isto por muitos milhões de anos e o resultado é o dimorfismo sexual evidente na nossa espécie. Os homens não são maiores e mais musculados só porque calhou. Esta diferença resulta de milhões de anos de competição violenta entre machos por causa das fêmeas e é irracional assumir que isto não tenha causado diferenças de comportamento e preferências. Irracional, mas conveniente.

A premissa fundamental dos “estudos de género”, e que é heresia questionar, é a de que todas as diferenças entre sexos se devem à cultura*. Ponto. Isto permite isolar esta disciplina e ignorar a neurologia, a evolução, a fisiologia ou qualquer coisa que possa cheirar a biológico. O desinteresse em explicar a origem desses factores culturais (é cultural e pronto) permite também especular à vontade e escolher facilmente os alvos de indignação. Ao contrário da ciência, motivada pela curiosidade acerca da realidade, os “estudos de género” são motivados pela indignação perante a injustiça discriminatória. Com esta compartimentalização é fácil encontrar injustiças. Basta procurar estatísticas politicamente interessantes ignorando qualquer informação inconveniente. Por exemplo, os empregados da BBC com maiores salários serem maioritariamente homens (5) implica que a BBC está a discriminar (6). O facto de acontecer o mesmo no YouTube, sem salários nem empregados e onde cada um ganha conforme a popularidade dos seus vídeos (7), não é considerado relevante. Talvez seja prova de outra injustiça qualquer acerca da socialização das raparigas, da auto-confiança, do machismo ou o que calhe, mas tem de ficar separado da tese da discriminação salarial na BBC. Cortar a realidade e as explicações em pedacinhos independentes permite postular, caso a caso, os factores culturais que melhor correspondam às expectativas dos praticantes desta arte.

No entanto, por muito conveniente que esta premissa seja para os “estudos de género” e para as pessoas pagas para promover a “diversidade”, a premissa é falsa. A biologia também é importante. Entre muitos outros exemplos, isto é evidente em diferenças comportamentais em recém-nascidos (8), na diferente expressão e incidência de doenças mentais como o autismo (9) ou a depressão (10), e até na identidade de género. Muitas pessoas rejeitam o género em que foram socializadas, demonstrando cabalmente que a socialização e a “cultura” não explicam totalmente as diferenças comportamentais entre géneros. E a biologia sabemos de onde vem. Os homens têm mais motivação para competir por recursos e estatuto porque estes factores têm mais peso no seu sucesso reprodutivo do que no sucesso reprodutivo das mulheres. Isto explica porque é que os homens são maiores e fisicamente mais fortes, em média. E explica porque é que a desigualdade sexual em carreiras como construção civil ou engenharia é maior em países mais ricos, onde há mais liberdade de escolha. Explica porque é que há menos mulheres em certos cursos, em cargos de direcção, em trabalhos perigosos e porque é que as mulheres vendem menos horas do seu trabalho (11) e dedicam mais tempo à família. Até explica porque é que no YouTube há a mesma desigualdade de rendimentos que na BBC.

Os factores culturais também são importantes e há injustiças a combater. Mas é preciso reconhecer que, em média, homens e mulheres não querem as mesmas coisas. Temos de aceitar que há diferenças médias no equilíbrio entre o esforço que cada pessoa quer dedicar a competir por recursos e o tempo que quer reservar para si, para os amigos e familiares. Não podemos combater a injustiça obrigando as pessoas a comportar-se como se fossem todas iguais.

* Excepto órgãos sexuais, tamanho do corpo, forma do esqueleto, musculatura, mamas, barba e coisas igualmente irrelevantes. Mas de resto, é tudo 100% igual.

1- Gizmodo, Exclusive: Here's The Full 10-Page Anti-Diversity Screed Circulating Internally at Google [Updated]
2- Bloomberg, Google Fires Author of Divisive Memo on Gender Differences
3- Su, Rong, James Rounds, and Patrick Ian Armstrong. "Men and things, women and people: a meta-analysis of sex differences in interests." (2009): 859; e também Debra Soh, No, the Google manifesto isn’t sexist or anti-diversity. It’s science
4- Planet Money, http://www.npr.org/sections/money/2014/10/21/357629765/when-women-stopped-coding
5- BBC, BBC pay: Male stars earn more than female talent
6- Guardian, BBC accused of discrimination as salaries reveal gender pay gap - as it happened
7- Business Insider, These are the 18 most popular YouTube stars in the world — and some are making millions
8- Psychology Today, Sex-Specific Toy Preferences: Learned or Innate?
9- The National Autistic Society, Gender and autism
10 – Picinelli e Wilkinson, Gender differences in depression, The British Journal of Psychiatry Dec 2000, 177 (6) 486-492; DOI: 10.1192/bjp.177.6.486
11- Forbes, New Report: Men Work Longer Hours Than Women

quinta-feira, junho 15, 2017

Treta da semana (atrasada): cortar no osso.

No seu blog sobre o diálogo entre fé e ciência, Miguel Panão escreveu há tempos que «Não há nada mais complicado e infrutífero do que meter tudo no saco de explicações da nossa zona de conforto» (1). Concordo. Como Sócrates terá dito a Fedro, para compreender a realidade temos de a desmanchar pelas articulações, distinguindo o que é diferente e agrupando o que é análogo. Mas é precisamente nisto que Panão revela dificuldades.

Noutro post, Panão alega que, tal como a ciência, «toda a fé assenta numa experiência sensível». Em particular, «a experiência de Deus». E pergunta «De que modo pode uma pessoa que não tem fé encontrar o valor de uma experiência de fé?» (2). Mas a experiência científica não é uma sensação privada como Panão refere em «experiência de Deus». A experiência científica é pública, partilhável, de resultados que podem ser confirmados por terceiros e que, por isso, servem para encontrar consenso acerca das melhores explicações. São dois sentidos opostos de “experiência” que Panão enfia no mesmo saco. E depois tenta separar o que é análogo. Ter fé é empenhar-se pessoalmente numa crença, coisa que os ateus também fazem. Eu acredito que a liberdade individual tem valor e acredito que amanhã não vai chover. Mas enquanto esta última crença é descartável – se chover mudo logo de opinião – a primeira, para mim, é essencial na ética e na decência humana. Eu não me limito a acreditar no valor da liberdade. Eu quero acreditar no valor da liberdade. Eu até considero ser um defeito de carácter não acreditar nesse valor. Ou seja, eu tenho fé no valor da liberdade. Portanto, quando Panão tenta separar o religioso com fé e o ateu sem fé, está a cortar no sítio errado. Ambos temos fé e ambos percebemos a importância de ter fé. O que nos distingue é o tipo de crenças em que temos fé. Ter fé no valor da liberdade faz sentido porque os valores são algo que podemos escolher. Vale a pena querer crer neles. Mas é absurdo ter fé em factos porque os factos não dependem da nossa vontade. Não vai existir água em Marte só por eu querer acreditar. Ou unicórnios, ou o deus de Panão. Nessas coisas não faz sentido ter fé.

Outra confusão de Panão é com os «níveis de compreensão da realidade»(1), dos quais diz haver vários e compatíveis entre si. Exemplifica: «Posso acender uma vela e a explicação do senso comum é a de que não há luz elétrica e eu preciso de ver; a explicação científica envolve a combustão do pavio que liquidifica a cera [e] a explicação religiosa é a de que a luz da vela representa um sinal visível da luz de Deus no meio da escuridão.» É verdade que podemos descrever estes acontecimentos focando diferentes aspectos como o comportamento de quem acende a vela, a combustão, os movimentos das moléculas e assim por diante. Mas a compreensão está no encaixe destas descrições para formar uma imagem mental coerente e consistente daquilo que está a acontecer. Não a podemos separar em níveis diferentes. O que devemos separar é o que não encaixa no resto. Por exemplo, aquela coisa da vela simbolizar Deus, que não contribui nada para se compreender o que quer que seja. O que Panão diz ser outro nível da compreensão é simplesmente um vestígio de hipóteses descartadas por não encaixarem em lado nenhum.

Finalmente, Panão cola o cristianismo ao ateísmo assumindo que ambos são caminhos que escolhemos, distinguindo-se apenas por serem caminhos diferentes: «O facto de seguirmos um caminho e procurarmos compreender as coisas à luz desse caminho [...] não é diferente do ateu porque também ele escolheu o ateísmo e procura compreender as coisas sem ser à luz de Deus.»(3) É outro corte mal feito. Ao contrário de Panão, eu não procuro compreender as coisas “à luz de um caminho” que tenha escolhido inicialmente. O que acontece é que, para formar uma imagem consistente da realidade, tenho de seleccionar as explicações que encaixem umas nas outras. E o que não encaixa vai fora. Os dragões, as fadas, a eficácia do tarot, os muitos deuses – incluindo o de Panão – e tudo o resto que não contribui para a compreensão de coisa nenhuma. Nisto somos diferentes porque enquanto Panão escolhe o seu caminho eu vou descobrindo o meu. Prefiro ver primeiro onde há silvas em vez avançar por onde calhe e seja o que Deus quiser. É nesta diferença de atitude que Panão devia ter cortado. Em vez disso, tenta separar-nos na compreensão, que é o que temos em comum. Não é verdade que Panão compreenda as coisas “à luz de um caminho” diferente do meu. Tudo aquilo que Panão compreende, no sentido concreto de ser capaz de explicar, Panão compreende da mesma forma que eu. Com as mesmas explicações, encaixadas da mesma maneira e obtidas pelo mesmo processo. É assim que ele compreende como funciona um computador, como se põe um satélite em órbita, o que é uma célula, a combustão da cera da vela e tudo o resto que conseguimos compreender. O deus só serve para aquilo que Panão não consegue compreender nem explicar. Aquilo que Panão diz ser “inexplicável”(4), na esperança de que ninguém consiga explicar porque, como tem sempre acontecido, quando se explica nota-se que não tem nada que ver com Deus. Ao fim de milhares de anos disto, já era altura de perceber que o caminho não é por aí.

Panão tem razão em não querer «meter tudo no saco de explicações da nossa zona de conforto». Compreender exige encontrar as explicações certas, aquelas que separam o diferente, agrupam o semelhante e cortam a realidade pelas articulações. Mas isso só serve quem quer ajustar as suas crenças aos factos e não se importa de trocar umas por outras mais correctas. Para quem tem fé acerca de factos, cortar no sítio certo traz dissabores sempre que revela uma realidade diferente daquela em que se quer acreditar. É isso que obriga Panão ao trabalho árduo, mas infrutífero, de raspar a faca no osso para cortar onde não é possível.

1- Miguel Panão, Explicações em Ciência e Religião
2- Miguel Panão, Pode um ateu encontrar valor numa experiência de fé?
3- Miguel Panão, Como responder quando questionam o que acreditamos?
4- Miguel Panão, Como reagir ao experimentar algo inexplicável?