quarta-feira, janeiro 10, 2007

Ciência e Religião.

O professor Dom Mário Neto volta a contribuir para este blog, após o texto que aqui publicou anonimamente Introdução à Blinologia. No texto que se segue, Dom Mário Neto aprofunda alguns aspectos da Blinologia e disserta sobre o aparente conflito entre a ciência e o revelatum Blínico.

A filosofia natural e o estudo do Sagrado foram inseparáveis durante quase toda a história da humanidade. O conhecimento prático da natureza auxiliava o ritual religioso, desde o cálculo do calendário e dos dias de celebração à construção dos templos. E apesar da filosofia especulativa apresentar algumas hipóteses contrárias ao cânon religioso, até recentemente não eram suportadas por evidências concretas, pelo que os doutos blinólogos tinham liberdade de escolher as doutrinas filosóficas de acordo com as Escrituras. O mérito de filósofos como Platão, Epicuro, Aristóteles ou São Jacinto da Carrasqueira era medido pela concordância com a Palavra dos Blin, ou mesmo com a Frase e o Parágrafo.

No período áureo da escolástica blínica, esta visão de uma relação intima entre Natureza e Escritura levou mesmo à formulação duma noção basilar da blinologia: «A verdade não contradiz a verdade». Alguns críticos acusam-na de ser trivial e inútil, mas esta ideia rapidamente se espalhou pela cultura Europeia, sendo até adoptada por outra religião em voga nessa altura. E, no estudo do Sagrado, muitas vezes o que parece óbvio é profundamente misterioso, como atestam as famosas palavras do imperador Jin Tai aos missionários: «Se essa bolacha é Deus eu sou o rei da China».

Mas nos últimos séculos a experiência prática gradualmente se fundiu com a filosofia especulativa, gerando o que conhecemos hoje como ciência, o que levantou problemas à ideia de uma Revelação única de todos os aspectos da Criação. O relato da origem do mundo na Blínia Sagrada, «No início os Blin criaram a papa de aveia e a Terra», era interpretado literalmente, e a cosmologia blínica descrevia a Terra como flutuando num imenso mar de papa de aveia. Mas, no século XII, Barnabé da Eritreia relatou experiências, com vários tipos de rocha e receitas de papa, que demonstravam a impossibilidade física de tal interpretação. Foi executado em 1198 por heresia, e o Barnabismo foi perseguido com alguma violência, mas a Igreja Blínica sempre foi célere em admitir os seus erros. Mal passados oito séculos e Barnabé foi perdoado e, em parte por estar extinto mas em parte pelo progresso doutrinal da Igreja, o Barnabismo já não é um culto perseguido.

O trabalho de grandes cientistas, de Barnabé a Heisenberg e Einstein, mostrou à Igreja Blínica que temos que considerar verdades a níveis diferentes, se bem que a verdade nunca contradiga a verdade, mesmo que se contradigam. Parte do revelatum blínico está contido no universo em si. Treze mil e quinhentos milhões de anos, incontáveis estrelas e planetas, uma imensidão inimaginável de processos todos organizados de acordo com princípios regulares. Sem ambiguidades, sem margem para interpretações subjectivas, e onde tudo é desvendado objectivamente, sem considerar credo, raça, ou cultura. A compreensão deste universo duplicou a esperança média de vida, permite-nos comunicar instantaneamente com qualquer pessoa e mesmo explorar outros planetas.

No entanto, este universo comporta-se como se não existissem Blins, como se não tivesse sido criado por uma inteligência superior. Pior ainda, toda a ciência moderna indica que o universo não pode ter sido criado, que surgiu por um acontecimento quântico que não pode ter causa. Como sabemos que a verdade não contradiz a verdade, e como sabemos que os Blins criaram o universo, é evidente que o estudo do universo em si não pode revelar toda a verdade. Temos por isso que separar dois tipos diferentes de verdade. Isto é revelado a todos os que estudam o Sagrado, mesmo os que desconhecem o verdadeiro caminho dos Blins e seguem outras religiões. Dou aqui como exemplo as palavras de Joseph Ratzinger(1), líder religioso de um culto semi-monoteísta (os três deuses principais vivem como um só numa espécie de simbiose metafísica):

«One answer was already worked out some time ago, as the scientific view of the world was gradually crystallizing[...]. It says that the Bible is not a natural science textbook, nor does it intend to be such. It is a religious book, and consequently one cannot obtain information about the natural sciences from it.»

Evidentemente, isto não pode ser tudo. Como reconhece o próprio Ratzinger, e todas as religiões em geral, não basta separar o conhecimento da natureza do conhecimento espiritual. Há que juntá-los de novo numa síntese que abarque quer a nossa natureza física quer o aspecto blínico da nossa existência. Temos assim que considerar uma hierarquia de verdades. No nível inferior temos todo o universo, milhares de milhões de anos de imensidão, e toda a ciência e tecnologia que permite a nossa vida e sociedade moderna. No nível superior, a Blínia Sagrada, compilação da tradição oral de uma tribo do deserto e que, ao contrário de outras compilações de tradições orais de outras tribos do deserto, nos mostra a Verdade e todo o mistério do Sagrado.

1 - Joseph Ratzinger, "In the Beginning...." A Catholic Understanding of the Story of Creation and the Fall

18 comentários:

  1. O meu contributo para explicar a obsessão religiosa com a «hierarquia dos saberes»:

    http://www.ateismo.net/diario/2006/10/hierarquia-dos-saberes-segundo-os.php

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  2. Caro António,

    Tem razão que a alusão ao É era mesmo essa. Os crentes teistas não têm problema em admitir que algo simplesmente é, sem causa nem porquê, desde que esse algo seja um deus consciente, pensador, com vontade e acção. Não deviam ter problema em aceitar o mesmo de algo infinitamente mais simples que um deus: uma particula virtual minuscula que apareceu sem causa, despoletou o desenrolamento desta bolha de espaço-tempo, e imediatamente desapareceu, deixando o universo a desenrolar-se sozinho.

    Quanto à causa, o problema não é não conhecermos. É mais forte que isso. Einstein tinha proposto essa hipótese, que a aparente ausência de causas na mecânica quântica era ignorância nossa e não acausalidade. Einstein, Podolsky, Rosen e Bohm conceberam uma experiência conceptual para testar essa hipótese. Mais tarde Bell formalizou alguns aspectos, e Freedman e Aspect testaram-na em 1972 e 1982.

    (veja http://en.wikipedia.org/wiki/Bell_test_experiments )

    Não pode haver variáveis escondidas (causas) que respeitem a relatividade e dêm estes resultados. Por isso ou a relatividade está errada ou este tipo de acontecimentos quânticos não tem causa. Isto não é mera filosofia ou presunção. É tão fundamentado como o GPS e os computadores.

    Uma técnica de espectroscopia baseia-se no efeito de tunel, segundo o qual uma partícula (um electrão neste caso) pode "atravessar" uma barreira energética mesmo sem ter energia suficiente em virtude de não ter uma posição definida e, por isso, ter uma probabilidade de, em cada instante, estar do outro lado da barreira.

    Podemos medir a distância duma agulha extremamente afiada (poucos àtomos na ponta) a uma amostra a analisar com uma precisão enorme pela frequência com que electrões "saltam" de uma para outra por este efeito. Mas cada "salto" não tem causa. Não podemos fazer o electrão "saltar", porque o efeito é apenas consequência da probabilidade do electrão ser detectado do lado de lá.

    Como o Ricardo mencionou, a "faísca" que fez rebentar o big bang surgiu de forma semelhante. Havia uma probabilidade de acontecer, e eventualmente aconteceu. Apareceu e desapareceu rapidamente, com uma massa/energia minúscula. E a energia total do universo que se formou é precisamente zero -- o acréscimo de energia pela formação de todas as partículas do universo equilibra precisamente o decréscimo devido à atração gravitacional entre elas.

    Não é preciso ser eleito, nem a graça divina, nem ter fé, para perceber estas fórmulas. Basta saber ler, ter paciência e vontade de aprender. E é preciso muito pouco para ver que são mais que teorias meio tontas. O computador onde está a ler isto não foi feito pela fé, nem por rezas, nem sequer por tentativa e erro, mas pela aplicação directa dessas teorias.

    E, como disse Asimov, apesar do conhecimento criar problemas, nunca é pela ignorância que os resolvemos.

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  3. No fundo, é exactamente aqui que reside o problema (grande novidade, mas alguém tem que chamar a atenção para ele).

    Ao cientista, é-lhe exigido estudo.

    Ao crente,é-lhe exigida obediência (a fé não é mensurável, a obediência sim).

    O que dá mais trabalho, estudo ou obediência?

    Por isso é que muitos crentes, dos quais o comentador anterior é um óptimo representante, revelam tanto ódio em relação á ciência e aos cientistas.

    E isto apesar de utilizarem medicamentos, roupas sintéticas, aquecimentos, carros, telemóveis, televisão, internet, computadores, máquinas fotográficas, frigoríficos, aviões, e tudo o mais para o qual os cientistas (e não os padres) contribuiram.

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  4. Caro António,

    é muito mais interessante le-lo quando não entra na ironia.

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  5. Caro António,

    Há um erro nessa aplicação simplificada de interpretação de Copenhaga. O que determina o colapso dessa combinação linear não é um observador externo mas sim a decoerência quântica resultante da interacção das partículas no sistema.

    O fotão isolado está numa combinação de dois estados, mas assim que interage com o detector, este com o gas venenoso, e o último com o gato temos um número tão grande de partículas que esta coerência inevitavelmente desaparece. O sistema como um todo nunca ficará numa combinação de estados, mas sim num dos dois (Gato morto ou vivo). E é isto que se entende por "observação" na interpretação de Copenhaga.

    Pode ler mais aqui:

    http://en.wikipedia.org/wiki/Schrödinger's_cat


    O resultado é que não precisamos assumir um observador externo (esse deus) para colapsar a combinação de estados para o universo. Mais, o "observador" tem que interagir com o sistema como parte do sistema para poder colapsar os vários estados num só, e por isso o tal deus teria que ser feito de particulas e matéria como todos nós para isso funcionar assim.

    Não sou perito em mecânica quântica, mas parece-me que tentar misturá-la com teologia é asneira.

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  6. Caro António,

    Não me pronuncio quanto á beleza da demonstração, pois questões estéticas são subjectivas, e esses gostos não se discutem.

    Mas do ponto de vista epistemológico penso que deixa muito a desejar.

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  7. O que éramos nós sem a wikipedia...

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  8. Caro António,

    Referi a wikipedia por ser tão acessivel. Não proponho que aceite o seu conteudo por fé. No entanto, precisamente pelo sistema aberto á critica é das fontes mais fiáveis da internet, e referi esse artigo porque me pareceu estar de acordo com o que obtive de outras fontes. Mas se quiser investir num livro sobre o assunto, ainda melhor.

    Quanto ao segundo ponto, a teologia é o estudo do teos, assume por isso à partida que ele existe (curiosamente, assume também que é ele e não ela...). É isso que não se deve misturar com a ciência. A hipótese da existência de um ou mais deuses ou deusas não é do âmbito da teologia, e essa sim pode ser abordada como qualquer outra hipótese.

    Terei todo o gosto em ver como o seu consultor propõe manter a coerência quântica de um sistema como o do gato com o gás venenoso. É possível mantê-la em sistemas macroscópicos (os lasers e os supercondutores são exemplos disso), mas se o seu consultor tem uma forma de o fazer com um gato penso que não serei eu o único interessado em saber mais sobre isso.

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  9. "Não proponho que aceite o seu conteudo por fé"

    Já temos a frase do dia...

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  10. Oi Helder,

    Provar a inexistência pode ser fácil. Por exemplo, que não existem solteiros casados (por ser uma contradição). E se provar for no sentido de testar, também está provado que o Pai Natal não existe.

    Parece-me que não é nada dificil obter provas (no sentido de evidências, indicios, etc) da inexistência de um ser hipotético.

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  11. Mas eu acho que a existência ou inexistência de deuses é uma questão científica importante. E sempre o foi. Até ao sec XVIII era uma premissa básica de todos os modelos científicos. Mais tarde foi sendo revista por não encaixar com a realidade, e hoje em dia os melhores modelos assumem que não há ninguém a puxar os cordelinhos. Mas é uma hipótese que faz uma grande diferença na forma como modelamos a realidade.

    Está muito na moda agora dizer que são "magisteria" separados mas isso é treta. É apenas uma forma dos crentes continuarem a alegar certezas sem que se lhes exija fundamento.

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  12. Caro António,

    Muito me alegra saber que já só tópico de conversa de café. E, pela amostra que tenho tido do seu método investigativo, pouco me surpreende a conclusão a que chegou.

    Mais uma vez quase que acerta. Só que eu não escrevo sobre um deus em particular, mas sobre a pergunta: será que existem deuses? Essa é compreensivelmente interessante quer para crentes quer para ateus. Ou talvez mais para ateus, pois estes não precisam temer a resposta...

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  13. Helder,

    Penso que concordamos em quase tudo. Estou inteiramente de acordo que não compete à ciência provar que um ser não existe sempre que alguém se lembra de inventar tal possibilidade. Entre Pais Natal, Superhomens, deuses e chaleiras a orbitar plutão não se fazia outra coisa.

    Só queria salientar que existência dos deuses (e do Pai Natal, do Superhomem, e eventuais chaleiras a orbitar plutão) serão sempre de âmbito científico se incluidos em hipóteses concretas. E mesmo do ponto de vista pragmático devem ser consideradas a sério. A hipótese de não haver intervenção divina é muito importante na ciência moderna.

    Quanto a essa coisa da conta do blogger, acho que já está resolvido. Substitui a restrição a membros registados pelas letrinhas irritantes, deve chegar para não vir cá spam.

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  14. Nao tires as letrinhas irritantes...nunca...é poesia...ja chega de coisas logicas em todo o lado que olhamos!

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  15. Caro Luís

    pmwwgjx
    blqrsfv

    E, já agora, sdfmcmw

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  16. Lindo...excepto a parte

    "E, já agora"...

    parece que nao tem qualquer sentido...

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  17. Então, estamos todos de acordo... Que chatice!

    Vamos lá estrear as letrinhas.

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