Niels Bohr
Muitas vezes vejo proposto que a realidade varia conforme o que acreditamos. Falam-me de coisas que existem só para os crentes, ou de verdades para uns que são falsas para outros. É um abuso dos termos e uma grande confusão.
Em certos casos «existe» e «verdade» parecem problemáticos: é verdade que Sherlock Holmes vivia em Baker Street, e existe o cargo de presidente da Republica. Mas o problema desaparece se percebermos o contexto. «Verdade» como concordando com uma ficção em particular no primeiro caso, e «existe» como convenção social no segundo. Mas os crentes não propõem a fé como ficção nem Deus como convenção social. Propõem algo mais substancial, que o seu deus existe mesmo, de verdade.
Mas é absurdo que a realidade seja uma para uns e outra para outros. Nunca foi verdade que a Terra é plana. O Pai Natal não existe. Nem para uns nem para ninguém, e quem acredita o contrário apenas se engana. A fé não dá ao crente uma realidade alternativa isolada da realidade dos restantes. Pode dar uma ilusão, mas a crença é independente da realidade. Só com esforço é que podemos fazer com que crença e realidade concordem.
Moldar a realidade às crenças dá para pouca coisa. Dá para inventar rituais, fazer estátuas e chamar-lhes deuses, ou desperdiçar tinta a escrever tratados teológicos, mas não faz com que exista um ser omnisciente e omnipotente. Impor a crença à realidade só cria deuses a fingir. Deuses de verdade, e tudo o que não conseguimos simplesmente inventar, podemos apenas tentar conhecer. E no saber é a realidade que manda na crença.
O caminho para o conhecimento é tortuoso e cheio de obstáculos. Quem vai a direito movido pela fé entala-se no primeiro buraco que encontrar. Para compreender a realidade temos que usar a dúvida em vez da crença. Como o cajado do caminhante, testando se o solo é firme, se o charco é fundo, se a pedra está solta. E sem medo que a descrença estrague a realidade. Pelo contrário. Quanto mais real, mais resiste à nossa dúvida. O Pai Natal é frágil; uma pergunta bem posta e desvanece-se. O dinheiro é pouco mais resistente. Se a maioria deixa de acreditar que papel com números tem valor lá se vai toda a riqueza. Mas podem duvidar à vontade da força da gravidade que não lhe faz diferença nenhuma. Até podemos definir realidade e verdade como aquilo que resiste à descrença.
Niels Bohr aconselhava os alunos a interpretar o que ele dizia como perguntas e não como afirmações. A melhor forma de compreender a realidade é mesmo fazendo perguntas. O agnóstico, convicto que não há respostas, não sai do ponto de partida. O crente, fiel à primeira ideia que lhe ocorre, lá fica no seu buraco a imaginar que a realidade dele é diferente da dos outros. E o céptico usa a dúvida como método para abrir caminho, questionando o que pensava ser verdade, descobrindo coisas novas, compreendendo cada vez melhor onde está e o que está a fazer.
É este método da dúvida que nos dá as vacinas, a agricultura moderna, os computadores, e toda a sociedade onde agnósticos e crentes podem insistir em conforto que não sabemos nada ou que temos certezas absolutas.
Aaaahhh, agora entendo porque é que o meu dinheiro desaparece sempre tão depressa: não é que gaste muito ou ganhe pouco, é falta de fé ;-)
ResponderEliminarCristy
Excelente!!!
ResponderEliminarMais um de antologia :)
É o dinheiro e quase todo o que não contribui para a reprodução e subsistência, só tem valor relativo. Qual a utilidade de 1 tonelada de ouro transformado em aneis? Zero... A menos que alguem ache que fica mais bonito com um anel de ouro, e depois tem que se atribuir valor a essa beleza, mas, para mim um anel de ouro na mão de um empreiteiro é apenas mais uma inutilidade, talvez se for no dedo da rapariga certa valesse alguma coisa, mas, até assim o valor do ouro é relativo, e tende para zero.
ResponderEliminarE acho que o mesmo se passa com a religião. Um deus só vale aos olhos dos seus crentes. O buda deve ter um valor diferente aos olhos de um cristão, comparativamente aos olhos de um budista. E o dinheiro vale menos aos olhos de um rastafari, do que aos meus, e por aí em diante...
É só relatividades. :-)
Estou com a Cristy, a minha fé deve andar pelas ruas da amargura porque o dinheiro nem ver : )
ResponderEliminarA dúvida é uma característica exclusiva dos ateus?
ResponderEliminarPermita-me discordar. Considero-me agnóstico. Acredito que não nos será possível, nunca, termos a certeza da existência de *um deus*. No entanto, esta posição permite-me negar a existência de todo e qualquer deus "conhecido" da humanidade, pois que tal é impossível. Portanto, sou ateu em relação a todos os deuses, mas agnóstico em relação a *um deus* (e por *um deus* refiro-me a...qualquer coisa. Qualquer espécie de consciência cósmica ou natural...).
No entanto, não é por considerar a busca desta consciência irrelevante que sou completamente apático em relação à vida. Pelo contrário, ao libertar-me dessa inútil tarefa, uso as minhas energias e o meu tempo para "duvidar" doutras coisas...
É... Convém lembrar que o filósofo que defendeu a dúvida como método chegou à conclusão de que a única realidade de que pode estar certo é que se pensa, e por isso que se existe. Caíu num idealismo extremo porque pôs em causa crenças - sim, crenças - de que o Ludwig, pelos vistos, não abdica, como é o caso de que o mundo é aquilo que a ciência nos mostra.
ResponderEliminarClaro que o objectivo de Descartes foi o de chegar a uma primeira verdade capaz de fundamentar o conhecimento produzido pela ciência emergente e matematizada. Mas o que eu pretendo salientar é que se a dúvida e o questionar da realidade forem radicais e hiperbólicos (como foram para Descartes), percebe-se que o que o Ludwig concebe como oposto às crenças afinal também não passa de uma crença.
É que ao contrário do que você diz as crenças não são independentes da realidade. As suas crenças como as dos outros são dependentes de determinados pressupostos e de determinadas pré-compreensões da realidade, ou seja, estão dependentes da realidade cultural em que se exsite e que se assimilou.
O conselho de Niels Bohr, se for realmente seguido, deve conduzir a que se ponham questões como: «O que é compreender?»; «O que é a realidade?»; «O que é a verdade?». Se Ludwig tiver coragem de pôr estas questões concluirá facilmente que as suas certezas objectivas também são crenças.
Caro Zé Carlos,
ResponderEliminarTem razão quanto às certezas. Até a de Descartes estava errada. O facto de pensar apenas indica que há um pensamento; a existência de um sujeito é questionável.
Mas o Zé Carlos assume que eu tenhos certezas. Não tenho. Nem preciso. Não vale a pena andar à procura do 100% certo quando, na prática, basta os 99.99% de confiança.
O importante é deixar sempre algum espaço para a dúvida. Tenho crenças numa realidade objectiva, mas não tenho certezas, pois estou sempre disposto a mudar essas crenças se a observação o justificar.
Penso que o Zé Carlos comete o erro de considerar apenas os dois extremos: ou há certeza absoluta (crente) ou não se pode saber nada (agnóstico). Mas há muitas possibilidades pelo meio.
Caro J.H.,
ResponderEliminarSe é ateu em relação a todos os deuses que se afirma existir, então é ateu.
Se é agnóstico em relação aos deuses dos quais nunca ouviu falar, bem, também eu. Desses não sei mesmo o que dizer.
Mas uma consciência cósmica podemos rejeitar com confiança. A informação não pode viajar mais rápido que a luz, e há partes do cosmos que já estão desligadas de outras, por isso nenhuma consciência pode abarcar todo o cosmos. Tanto quanto sabemos, mas, lá está, não é uma questão de certezas mas sim da confiança dos dados de que dispomos.
E discutir a crença em deuses não me parece uma tarefa inútil, pois este tipo de crenças está ligado a muitos problemas importantes nas sociedades modernas.
Fora de tópico.
ResponderEliminar"Pegadas comprovam que dinossauros nadavam"
aqui.
Os crentes são politicamente incorrectos (não respeitam outras crenças e acham que ser ateu também é uma crença), e os agnósticos são, como diz o Luís Rodrigues, ateus apaneleirados.
ResponderEliminarMas quem disse que para Descartes existia um sujeito? Descartes disse apenas que era uma coisa pensante. E se é uma coisa (que pensa) existe.
ResponderEliminarQuanto à questão do erro dele, não sei se reparou mas eu afirmei que o que ele pretendeu foi encontrar um fundamento para o conhecimento cientifico matematizado. Se você pôe em causa o principio dele (a razão como fundamento do conhecimento), pôe também em causa o que decorre desse princípio: a possibilidade de se conhecer a realidade.
E engana-se quando diz que para mim ou há certezas absolutas ou «certezas de nada». Não. É porque qualquer visão da realidade assenta numa determinada pré-compreensão, que o que se pode dizer é que o que existe são diversas crenças. As várias possibilidades a que você fez referência consistem nesta diversidade. Quem opõe a crença ao conhecimento objectivo é que está a estabelecer uma dicotomia e a considerar que só há «dois extremos».
Só que como eu disse, quem assim divide o pensamento, o que é pensado, tem determinadas ideias preconcebidas do que é a verdade, o que é compreender e o que é a realidade. Você considera que a verdade é a correspondência entre o pensamento e a realidade; considera que compreender consiste em representar o mundo; e considera que a realidade se identifica com uma representação objectiva criada pelo pensamento.
Mas há mais concepções daquilo que é a verdade, daquilo que é compreender e consequentemente daquilo que é a realidade. A sua concepção acerca do que estes são é tão legimita como outra qualquer, até porque nestes casos nem se pode servir da «superioridade» da(s) ciência(s) para demarcar a sua visão das outras. É que é a visão cientifica que pressupôe estas suas crenças e não o contrário. Estas suas crenças não são falsificáveis, não são cientificas; são simplesmente crenças.
Zé Carlos:
ResponderEliminarConsiderar verdadeiro aquilo que corresponde à realidade não é uma «crença como outra qualquer».
Só para dar um exemplo, duvido que discorde que é melhor que a seguinte alternativa: «Considerar verdadeiro aquilo que não corresponde à realidade».
Hum... Afinal esse tipo de crenças epistemológicas não são todas iguais...
Parece que há umas mais adequadas para interagir com o mundo que nos rodeia (a realidade) do que outras... Há umas produzem remédios e computadores, há outras que produzem rituais, etc...
Eu prefiro as primeiras.
Zé Carlos:
ResponderEliminar«Mas quem disse que para Descartes existia um sujeito»
Descartes. Chamou-lhe a coisa pensante, uma substância. Foi esse o grande erro do dualismo. O pensamento é algo que acontece, mas isso não justifica assumir uma coisa especial feita de pensamento (o tal que pensa e que é).
A crença é independente da realidade desta forma simples: dada uma proposição X, qualquer que seja X e como quer que seja a realidade, eu posso acreditar que X é verdadeira ou que X é falsa.
Para ligar a crença à realidade é preciso um esforço adicional. Ou alterando a realidade, dentro dos limites das nossas capacidades. Ou então pela dúvida, que nos permite alterar as crenças para que concordem com a realidade.
Tudo o que eu sei são crenças, pois claro. Não posso dizer que sei aquilo em que não acredito -- isso seria contraditório.
Mas o importante é que eu duvido das minhas crenças (e das dos outros, como penso ser óbvio neste blog ;)
Parece-me que você está a confundir o sujeito entendido como um individuo com o sujeito do conhecimento. É este, e não o primeiro, que existe para Descartes. Acerca dos indivíduos, como disse Descartes, não se podem ter certezas, pois podem ser autómatos. É o sujeito do conhecimento que é uma substância. E como esta palavra indica, esta substância é o que está subjacente à possibilidade do conhecimento, e da ciência moderna, para Descartes.
ResponderEliminarOra, isto pode ser (e foi) contestado, mas quem o faz tem necessariamente que rever a sua concepção do que é o conhecimento, do que é a realidade e do que é a verdade. Será que afinal a base das crenças cientificas do Ludwig não é a razão, mas sim a emoção? Ou talvez a cultura popular? Ou certos valores? Ou as opiniões da maioria? Se Descartes está errado a concepção do mundo do Ludwig está errada, a sua concepção de que as crenças se distinguem em objectivas e subjectivas está errada.
Ao contrário do que defendeu no seu post, você não pretende seguir o conselho de Bohr. Porque você permanece fixado na crença de que a verdade é a correspondência entre as ideias, ou as proposições, e a realidade. Só que a verdade também pode ser entendida como o consenso, com a coerência, como perspectiva, como utilidade, como processo, como desocultamento, etc, etc. Assim, pode-se afirmar que você tem crenças de que não duvida. Aliás, acerca da proposição de que a verdade consiste nessa correspondência não se pode dizer se é verdadeira ou falsa. Porque, por mais esforço que você faça, só através da suposição de que há uma meta-realidade é que você conseguiria fazer com que essa crença encontrasse algo com que concordasse. E daí que surja a questão do que é a realidade (e com isto estou também a responder ao Vasco). De acordo com o comentário do Vasco já tem que ser aquilo que é útil, aquilo que serve para alguma coisa. Ou seja, a verdade como correspondência passa a estar subordinada à verdade como utilidade (para não dizer que está subordinada às suas preferências).
Em suma, você pensa que rejeita o dualismo cartesiano, mas não o faz, pois recupera-o na sua concepção de verdade: de um lado está a razão, e do outro está o mundo, sendo que a verdade seria a relação de correspondência estabelecida entre os dois, entre as tais duas substâncias distintas; numa palavra, entre o sujeito e o objecto do conhecimento. A verdadeira rejeição do dualismo cartesiano passa pela superação da distinção entre o que é objectivo e subjectivo.
«Porque você permanece fixado na crença de que a verdade é a correspondência entre as ideias, ou as proposições, e a realidade. Só que a verdade também pode ser entendida como o consenso, com a coerência, como perspectiva, como utilidade, como processo, como desocultamento, etc, etc. Assim, pode-se afirmar que você tem crenças de que não duvida. »
ResponderEliminarHá aqui uma confusão.
Não é uma questão de crença dizer que a verdade é a correspondência com a realidade.
É um questão de linguagem. "Verdade" é uma palavra, e nós usamos essa palavra para nos referirmos à correspondência com a realidade.
Para nos referirmo, por exemplo, ao consenso, usamos outra palavra: "consenso".
Aquilo que eu acredito - isso já é crença - é que a verdade é útil.
É bom conhecermos o mundo como ele é.
Mas esta crença não é infundada. Há boas razões para considerar que temos vantagem em acreditar que o mundo é como é, em vez de acreditar que é como gostarísmo que fosse, por exemplo.