quarta-feira, janeiro 30, 2019

Privilégio de homem branco.

Várias vezes me imputaram este privilégio para refutar algo que eu defendia. Por exemplo, quando discordei de uma formação exclusiva para crianças de um sexo, por ser contra a discriminação sexual no ensino público, a primeira resposta que recebi foi a acusar-me do privilégio de ser homem branco. Outro exemplo foi a propósito de um debate sobre o activismo online. O painel era composto só por homens e algumas pessoas queixaram-se da falta de “representatividade”. Quando apontei que não faria sentido seleccionar ou excluir pessoas pelo sexo para debater esse tema – talvez fizesse se o debate fosse sobre disfunção eréctil ou licenças de parto – novamente a conversa começou com o tal privilégio de homem branco. Um traço comum é a irrelevância da acusação. Nada do que defendi nessas ocasiões teria mais fundamento se eu tivesse nascido mulher negra. Mas, além desse defeito óbvio, o alegado privilégio tem outros problemas mais relevantes.

Primeiro, presume que é melhor ser homem do que ser mulher. Normalmente, dizem que é porque os homens ganham mais, há mais homens em lugares de poder e as mulheres têm mais medo de andar sozinhas. Ou algo assim. Além de ser suspeitosamente focado em aspectos muito estreitos da vida humana, mesmo assim a asserção é questionável. Os homens ganham mais, em média, sobretudo porque as mulheres reduzem o trabalho que vendem para fora do agregado familiar quando têm filhos (1). Mas o facto de ser o homem, em média, a trazer mais dinheiro para a família não significa que seja só o homem a usá-lo. Do divórcio dos Bezos ao número de lojas para mulheres nos centros comerciais, parece-me haver muitos indícios de que os homens não saem financeiramente beneficiados desta colaboração. Além disso, são também os homens que fazem quase todos os trabalhos perigosos e mais desagradáveis (2). Também a preponderância de homens nos lugares de topo é acompanhada pelo domínio masculino no outro extremo. Nas prisões, entre os sem-abrigo e suicidas há muito mais homens do que mulheres. E se bem que muitas mulheres digam ter mais medo de andar sozinhas, o facto é que a maioria das vítimas de crime violento é do sexo masculino. Em média, a vida dos homens é mais perigosa. Entre agressões e acidentes, apesar de nascerem mais meninos que meninas, a partir dos 30 anos as mulheres já estão em maioria. A esperança média de vida de um homem português é inferior à de uma mulher na Turquia enquanto que a esperança média de vida de uma mulher portuguesa é dois anos e meio maior do que a de um homem no melhor país para os homens, que é a Suíça (3). Eu gosto de ser homem. Não me safava bem como mulher. Mas a ideia de que há vantagem em ser homem em países como o nosso é absurda.

Com a cor é diferente. Os humanos têm uma forte tendência para formar grupos e, com isso, uma disposição para distinguir entre “nós” e “outros”. Como a cor da pele é uma característica tão saliente, o racismo é um problema tramado e ter a cor da maioria poupa muitas chatices. Mas a cor de pele é apenas uma de muitas características que usamos para discriminar. Os ciganos romenos são brancos e não são particularmente privilegiados por isso. A cor da pele também tem adiantado de pouco aos judeus. Por outro lado, ter pele escura é um problema menor que os outros correlacionados por razões económicas e sociais. Enquanto os “brancos” em Portugal estão mais distribuídos por todos os níveis socio-económicos, os “pretos”, se bem que etnicamente e culturalmente muito diversos, são tendencialmente pobres. Muito pobres, porque são quase todos refugiados de situações extremas de miséria ou seus descendentes directos. Eu tive a sorte de nunca passar fome, de crescer numa família estável com pai e mãe, de morar numa casa e ter onde estudar. Viver assim com pele escura faria pouca diferença. E se tivesse crescido numa barraca, fosse para a escola com fome e a minha família fosse o gang da rua ser branco não me tinha adiantado de nada. No meio disto tudo, não é à cor que devo o que sou.

Mas o problema principal do “privilégio de homem branco” é a ideia de que é um privilégio. Um privilégio é uma vantagem injusta concedida a uns em exclusão de terceiros. É receber dinheiro do Estado por pertencer à família real. É entrar para um cargo por cunha ou por quotas. É aquilo que só é vantagem para uns porque outros não o têm. Eu tive muita sorte na minha vida mas crescer num ambiente saudável, ter acesso a educação e não ser espancado pela minha raça são direitos. Não são privilégios. É claro que quando me acusam do “privilégio” de ser homem branco não me estão a culpar por ter nascido como nasci ou por não ter passado fome. A acusação vem da ideologia identitária que ignora a pessoa como indivíduo e a vê apenas como elemento de um grupo. Nesta, o que importa são as estatísticas e não o que acontece a cada um. O meu “privilégio” vem do grupo em que me colocam, pela cor e sexo, ter estatísticas mais favoráveis quando contamos ministros, juízes ou milionários. É esse o “privilégio” que partilho com o trolha, o pastor e o reformado que janta chá e torradas porque a reforma não lhe dá para mais.

Este absurdo é ainda mais nefasto do outro lado. Os problemas da mulher que não tem dinheiro para alimentar os filhos ou do negro que tem de enxotar as ratazanas da barraca não se resolvem com “representatividade” ou “diversidade”. Podemos manipular as médias dos grupos privilegiando alguns indivíduos com quotas (isso sim é privilégio) mas o indivíduo não é a média nem um representa outro só porque têm a mesma cor ou genitais. A treta do “privilégio de homem branco” é mais um sintoma de como a esquerda se está a perder na obsessão por grupos e “identidades”. As medidas em que se tem empenhado, como quotas de género nas empresas e no Parlamento, censurar opiniões que ofendam quem pertence a certos grupos ou fiscalizar estereótipos nos livros de actividades, servem para manipular estatísticas e aparências à custa dos direitos individuais e sem adiantar de nada a quem precisa de ajuda. Depois admiram-se que os pobres votem à direita sem agradecer esta luta pelas estatísticas dos grupos.

1- Vox, A stunning chart shows the true cause of the gender wage gap
2- Mark Perry, ‘Equal pay day’ this year is April 12; the next ‘equal occupational fatality day’ will be in the year 2027
3- Wikipedia, List of countries by life expectancy

2 comentários:

  1. «Os homens ganham mais, em média, sobretudo porque as mulheres reduzem o trabalho que vendem para fora do agregado familiar quando têm filhos (1)»

    Isto é óbvio, mas está dito de uma forma neutra: "as mulheres reduzem o trabalho". A questão aqui é que há um factor de imposto, i.e, as mulheres *têm* de reduzir o trabalho (partindo da assunção que um casal quer ter filhos). Logo há uma assimetria aí. É uma assimetria devido à biologia, portanto inerente à espécie humana, é certo, mas isso tem consequências.

    Vamos excluir os argumentos que alegam que os homens tratam mal as mulheres, e, tal como diz o link da Vox que referiu, limitar-nos à questão de ganhos (ou perdas de ganhos) relacionados com a maternidade. A consequência maior é que em termos comparativos, a mulher fica temporariamente fora do mercado de trabalho mais tempo que o homem e logo, em média, mais prejudicada na carreira. Assim mais o é, quantos mais filhos o casal tiver e quanto mais generosa for a política de maternidade de um país, pelo menos em termos nominais de duração das licenças de maternidade.

    Além disso há um aspecto cultural: por exemplo, em países com licenças de maternidade longas, há ou não pressão social para as mães aproveitarem a licença e ficarem em casa a tomar conta das crianças seja ela explícita (uma boa mãe toma conta dos filhos!) ou implícita (i.e., permeia a cultura)?

    Queira-se ou não, isto é um factor de diferença entre os sexos. «Mas a ideia de que há vantagem em ser homem em países como o nosso é absurda.» – em termos de carreira, não, não é absurdo; e a carreira é algo que ocupa um lugar fundamental na vida das pessoas. Além disso, esta diferença tem consequências que extravasam a carreira de um indivíduo, mas ajudam, por exemplo, a promover sociedades com mais homens em lugares de topo por isso ser uma consequência da penalização na carreira das mulheres. Sim, é certo que alegar que a mulher vai poder beneficiar os ganhos financeiros do marido (ou antes, do casal) é uma verdade, mas com isso não ganha currículo. Os ganhos podem ser distribuídos pelo casal, mas não o resto, já que uma carreira não é simplesmente o valor do salário – neste caso, quem é que está a “ser suspeitosamente focado em aspectos muito estreitos da vida humana”?

    Pode argumentar que “os homens não saem financeiramente beneficiados desta colaboração”, mas usar o divórcio dos Bezos ou o número de lojas femininas nos centros comerciais é um argumento algo insincero, não? (no último caso, porque até é bem possível que os donos dessas lojas sejam homens e estejam a beneficiar da apetência das mulheres para comprarem, portanto eles mesmos terem criado maior número de lojas para mulheres). E claro também se pode alegar que há diferenças entre os sexos noutros domínios, é certo, e que isso também pode ser injusto, como por exemplo os suicídios, ou a violência, como diz no texto. É verdade que há mais homens em profissões perigosas, mas não há nenhum imperativo biológico que obrigue os homens a fazerem estes trabalhos (e com alguns listados no link é difícil dizer se é “nature or nurturing”, como o caso de pilotos ou condutores de camião).

    A questão é que a maternidade é um aspecto fundamental para a vida dos humanos e não há grandes opções que possam ser feitas: um casal não pode decidir que seja o homem a dar à luz, e mesmo que fique com alguma porção da licença de maternidade, voltamos à questão da pressão social. Talvez no ambiente liberal já seja aceitável um pai ser “doméstico”, mas não é algo aceite de forma generalizada. Quanto disto é natureza humana, quanto é fruto de séculos de uma determinada organização social?

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  2. Numa sociedade como a nossa, o "privilégio" poderia, no máximo, ser entendido como a dificuldade extra que um cidadão de pele escura possa ter em determinados passos da vida em sociedade: um arrendamento de um imóvel, uma concessão de crédito, uma entrevista de emprego.

    Nada disso se resolve com políticas identitárias, obviamente.

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