quarta-feira, janeiro 23, 2008

Ah, "trouxe"...

O Bernardo Motta respondeu à minha crítica acerca do Cristianismo ter trazido a ideia que «o verdadeiro é o adequado ao real»(1). Na boa tradição teológica, o Bernardo esmiuça a palavra «trouxe», evita a questão e esquece as alegações que o Cristianismo teria também trazido a confiança nos sentidos, o amor pela investigação e conhecimento (em grego diz-se filosofia) e o «primado da razão» (2). Mas seja. Vejamos então o que diz o Bernardo.

«É certo que São Tomás [...] recuperou todas as coisas boas que o aristotelismo tinha, e também descartou as más.[...] Aristóteles nunca conheceu Cristo, mas amou a Verdade. E quem ama a Verdade acima de todas as coisas (rigorosamente acima de todas), ama a Cristo. Aristóteles não sabia nada de Cristo, mas amava-O sem o saber.»

Aristóteles afinal era mesmo Cristão. O Bernardo continua: «Dito por outras palavras, o cristianismo dos homens de fé não criou nada: Cristo é que criou tudo.» Eu diria ao Bernardo para não ser tão modesto acerca da sua criatividade. «A vasta obra de Aristóteles seduziu algumas mentes medievais persas, judaicas e islâmicas, que o traduziram e estudaram. Por via dos cordoveses do Al-Andaluz, sobretudo o judeu Maimónides e o muçulmano Averróis, mas sem esquecer o grande antecessor persa Avicena, a obra de Aristóteles entra “a matar” na Europa, primeiramente sob a forma de traduções em árabe, divulgadas a partir do Califado de Córdova. E o mérito da verdadeira redescoberta do aristotelismo [...] deve-se sobretudo [a] São Tomás».

Resumindo. Aristóteles diz que a verdade corresponde ao real, os muçulmanos e judeus preservam isso durante um milénio e reintroduzem as obras de Aristóteles na Europa. Conclusão? O Cristianismo trouxe a verdade objectiva para a Europa. Pena que a lógica tenha ficado pelo caminho...

Mas isto é pouco relevante porque quando Aristóteles definiu "verdade" como dizer que é aquilo que é e que não é aquilo que não é estava só a formalizar o que já todos sabiam. Sempre foi óbvia a falsidade de dizer que é aquilo que não é. E é absurdo que este conceito de verdade fosse desconhecido dos Celtas, dos Romanos pré-Cristãos, dos Gregos antes e depois de Aristóteles, dos povos nórdicos, de todos os povos da Europa que se foram convertendo ao Cristianismo e de todos os Cristãos antes de Tomás de Aquino. O Cristianismo não trouxe isto de lado nenhum. Isto já estava em todo o lado.

O Bernardo perguntou-me «se, quando tem amigos a jantar em sua casa, e algum traz uma garrafa de vinho, o Ludwig deduz imediatamente que o seu amigo seja produtor de vinho…». Não. Mas se o vinho já estava na minha cozinha* e ele diz que foi ele que o trouxe eu digo bebe mas é um copo e deixa-te de tretas.

* Vinho é improvável, que não bebo isso. Mas fui recentemente desencaminhado para os licores artesanais açorianos. Isso já é outra coisa.

1- 18-1-08, O que o Cristianismo nos trouxe.
2- Bernardo Motta, 23-1-08, O paradoxo do ateu.

10 comentários:

  1. Gostou desse assunto hein?

    Estou a achar que tens algum problema pessoal com o tema.

    Pense nisso ;)

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  2. Livra, que isto de tentar ser compreendido não é pêra doce...

    «Resumindo. Aristóteles diz que a verdade corresponde ao real, os muçulmanos e judeus preservam isso durante um milénio e reintroduzem as obras de Aristóteles na Europa. Conclusão? O Cristianismo trouxe a verdade objectiva para a Europa. Pena que a lógica tenha ficado pelo caminho...»

    Se calhar, não me expliquei. Que parte da lógica é que falha? A cadeia entre os muçulmanos e os europeus não existia em si mesma. Ou achas que sim?
    Os muçulmanos estudiosos de Aristóteles eram pessimamente mal vistos pela maioria do "establishment" intelectual europeu, maioritariamente neoplatónico (e obviamente, cristão). O que teria sucedido a essas belas obras aristotélicas se São Tomás não se tivesse dado ao trabalho de as "cristianizar" e mostrar aos seus congéneres cristãos que tais ideias não só não perigavam a doutrina, como lhe davam mais força?

    Sem São Tomás, se calhar ainda estariam em Córdova as estátuas em honra de Maimónides e de Averróis. Só por uma questão de homenagem aos antepassados. Mas duvido é que a Ciência moderna seria como é hoje...

    «Mas isto é pouco relevante porque quando Aristóteles definiu "verdade" como dizer que é aquilo que é e que não é aquilo que não é estava só a formalizar o que já todos sabiam.»

    Que já todos sabiam?
    Dizer que uma coisa é o que é, e não é o que não é, é apenas afirmar a "não-contradição", condição essecial para a coerência.

    Nada disto tem a ver com a noção filosófica de Verdade. Que se apoia, é certo, no que o Ludwig escreveu, mas tem mais qualquer "coisinha", porque o Ludwig não destaca o carácter único da visão aristotélico-tomista: a "adaequatio", a "adequação". Quando falo em definição de verdade, não me refiro apenas ao uso da não-contradição, ou aos princípios axiomáticos da lógica: falo na adequação!

    Após Descartes, basicamente, o conceito de verdade como adequação morreu para toda a filosofia moderna, menos para as ciências empíricas. Curiosamente, muitos filósofos da modernidade, apesar de darem largas à imaginação em novas definições para o conceito de verdade, mantêm que em Ciência a verdade deve ser entendida como adequação.

    No entanto, não posso deixar de te perguntar, Ludwig: tens assim tanta certeza de que todos vêem a verdade como a adequação ao real? Não tens amigos cartesianos, schopenauerianos, hegelianos, nietzschianos?

    Na filosofia moderna, apenas me recordo do Tarski, e da corrente moderna da hermenêutica, como exemplo de um pensamento filosófico moderno que ainda concebe a verdade como adequação...

    Eu sei que és um homem de Ciência, e felizmente os homens de ciência concebem quase sempre a verdade como adequação ao real. Mas olha que isso não é nada certo no campo da Filosofia ou da Epistemologia: atreves-te a que um filósofo moderno te atire com um calhamaço de Kant, de Nietzche, ou ainda do Husserl, à testa...

    «O Cristianismo não trouxe isto de lado nenhum. Isto já estava em todo o lado.»

    Esta tua afirmação, Ludwig, é totalmente falsa. Há muito trabalho académico em termos de História da Ciência que refuta o que afirmas. Estou presentemente a compilar algum material e voltarei à questão mais tarde.

    À tua saúde! ;)

    Bernardo

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  3. Tiago,

    Chama-se diálogo. Não é problema. É a solução.

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  4. Bernardo,

    A verdade como adequação estava já esboçada em Platão, tal como Aristóteles. A definição que Tomás de Aquino erroneamente atribuiu a Isaac Israeli era na verdade a de Carneades, um céptico do século II AC.

    Mas isto na filosofia, onde há muito debate até hoje. Mas nota que o debate é acerca de definição de verdade. Na prática, o critério de adequação é óbvio e universalmente aceite, mesmo sem uma definição formal. Ninguém com um minimo de sanidade considera verdadeiro "está sol" quando está a chover a potes.

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  5. Ludwig,

    O diálogo assume que ambos os lados sofrerão mudanças ao longo do mesmo. Ao final de um diálogo nem você nem o outro são mais os mesmos.

    Mas a sua sequência mais parece monólogo porque tem mudado pouco ou quase nada.

    Se o problema é pessoal seu, a solução já lhe foi ditada aqui e acolá. Se fosse diálogo estaria aprendendo.

    Tiago

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  6. Aviso já que não tem nada a ver, mas alguém aqui vai gostar de ver isto:

    http://www.ted.com/index.php/talks/view/id/196

    ;)

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  7. Tiago,

    «O diálogo assume que ambos os lados sofrerão mudanças ao longo do mesmo. Ao final de um diálogo nem você nem o outro são mais os mesmos.»

    Não. O diálogo assume que ambos os lados estão dispostos a mudar de opinião. Eu estou disposto. Mas se mudo ou não de opinião depende do que me apresentarem ou eu descobrir no decurso do diálogo.

    Nada que tenha sido aqui apresentado mostrou uma relação causal entre o cristianismo e a ideia que "está a chover" só é verdade se estiver a chover.

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  8. Ludwig,

    Meu ponto não é que o cristianismo seja causa de X ou Y ou que o não-cristianismo seja a causa de X ou Y.

    Pelo contrário: estou a mostrar que ambas afirmacões (dentro dos limites observáveis) são irrelevantes.

    Está tão preso ao seu monólogo que não enxergou nem o outro lado do diálogo. Já lhe falei isso: coloca uma venda nos olhos na mesma medida que os fanáticos religiosos colocam nos seus.

    Seu mérito em criticá-los fica assim muito reduzido.

    Tiago

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  9. Tiago,

    Deixaste de parte o mais importante. O meu argumento aqui é que o cristianismo não trouxe a ideia que é verdade uma afirmação que corresponda à realidade. Não estou a dizer que foi o não-cristianismo que trouxe isso. Estou a dizer que isso já cá estava antes do cristianismo e sempre esteve.

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  10. Ludwig,

    E nesse ponto concordamos!

    Tiago

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