sábado, julho 31, 2021

Crianças de alta competição.

Um post de Joana Amaral Dias chama atenção para o problema de Leonor Baptista, uma ginasta de 11 anos, pelas minhas contas (1), que «foi campeã nacional este ano, [...] Tem declaração da federação atestando “atleta de elevado potencial desportivo" [e] treina cinco horas por dia» (2). Por isso, defende Dias, devia ter um lugar na escola Filipa de Lencastre, que fica perto de sua casa. Dias lamenta também que o Estado não apoie a Leonor, que «o desporto que deveria estar no nervo da educação, que é tão importante para a coesão nacional, é assim tratado. As crianças, que são o nosso futuro, desprezadas. Portugal mata o sonho e a realização dos mais novos, desportistas ou não» e assim por diante. Eu acho que todas as crianças deviam ir para escolas próximas de suas casas, dentro do possível, mas discordo que o Estado discrimine crianças pelo "potencial desportivo" ou incentive que as treinem para alta competição.

A prática moderada de desporto é saudável mas o treino de alta competição não visa a saúde dos praticantes. Visa maximizar o desempenho dos atletas na competição. É para ganhar medalhas. Isto não é apropriado para crianças, cujo desenvolvimento pode ser prejudicado pelo treino excessivo e demasiado especializado. Além disso, o dever do Estado é incentivar todas as crianças à prática saudável de desporto e não o treino intensivo de algumas seleccionadas por clubes ou federações pelo seu potencial para ganhar. É uma falácia justificar o treino de alta competição de algumas crianças invocando que o desporto traz saúde a todos.

A competição cria conflitos de interesse entre o atleta e pessoas e instituições envolvidas na sua formação. Se bem que isto seja mais notório nas competições de topo, que geralmente (mas nem sempre) envolvem adultos, seria ingénuo assumir que as crianças que participam em torneios nacionais ou internacionais não estão sob pressão para ganhar. Ou que os treinadores e clubes não estão sob pressão para maximizar o número de troféus que os atletas conquistam*.

Isto é evidente nos argumentos pelos incentivos ao treino de alta competição. Não defendem o desporto pela saúde das crianças. Isso seria exigir aulas de natação para crianças com peso a mais, por exemplo. O que exigem é o treino de crianças com "potencial desportivo" para glória do clube, federação e país. É para "ganharmos" medalhas. Esta instrumentalização dos atletas é admissível com a Patrícia Mamona ou o Jorge Fonseca porque são adultos e sabem no que se estão a meter. Se querem ganhar medalhas e os portugueses querem sentir vicariamente que também ganham, todos beneficiam se o Estado ajudar. Mas com crianças é diferente.

O fabrico de ganhadores é muito ineficiente e as crianças não só são incapazes de avaliar adequadamente o custo de dedicarem anos a treinar cinco horas por dia como não conseguem perceber quão improvável é terem os benefícios com os quais são aliciadas. Se lhes mostram o exemplo da Sunisa Lee vão ficar maravilhadas com o seu percurso e motivadas a imitá-la no esforço e dedicação. Se lhes elogiarem o talento vão ficar convencidas de que podem chegar onde Lee chegou. Mas não vão perceber que por cada Sunisa Lee há centenas de crianças que sacrificaram o mesmo mas nunca chegaram às medalhas. Ou até sacrificaram mais em lesões e outros problemas. Não podemos assumir que uma criança que entra aos sete ou oito anos neste processo o faz de forma voluntária e consciente. Pelo contrário. O mais provável é que vá ao engano, com ilusões irrealistas acerca do seu percurso e empurrada por interesses que não são necessariamente os seus. Sem garantia que o sacrifício é voluntário e consciente não é aceitável que o Estado incentive a transformação de crianças em ganhadores de medalhas.

Esta minha posição tem beneficiado de algumas críticas que me fizeram. Uma é a de ser paternalista. Admito que sim mas proponho que o paternalismo é inteiramente justificado em questões com impacto na vida de crianças tão jovens. Outra é que a alta competição incentiva crianças a praticar desporto, o que é saudável. A essa crítica contraponho que a alta competição não incentiva as crianças a praticar desporto de forma saudável. Será melhor usar outros incentivos. Finalmente, há o testemunho seleccionado de pessoas que devem o seu sucesso ao treino de alta competição ou que competiram e correu tudo bem. O problema desses exemplos é o enviesamento. O enviesamento na amostragem, por seleccionar em retrospectiva os casos mais convenientes, e o enviesamento pessoal análogo a quem defende o direito de dar palmadas aos filhos porque também levou e não lhe fez mal nenhum. Se uma criança treina cinco horas por dias dos 8 aos 18 anos e mais tarde perguntarmos se valeu a pena, é de esperar alguma resistência à conclusão que mais valia ter dado prioridade à brincadeira e outras coisas. Estas críticas não resolvem o problema fundamental: enquanto é de louvar a dedicação extrema do medalhado adulto, o mesmo sacrifício vindo de uma criança de 8 anos, ou 11, ou 15, deixa a dúvida se será realmente voluntário ou se a criança está a ser manipulada contra os seus interesses por quem quer medalhas e glória. Esse risco é suficiente para justificar a mesma prudência com que lidamos em geral com tudo o que afecta as crianças.

Se uma criança quer passar cinco horas por dia a fazer ginástica, defendo que seja livre de o fazer. Se a querem treinar para ganhar medalhas, seria bom mitigar o risco da criança se sacrificar por interesses de terceiros e em detrimento dos seus mas não sei como regular esta forma de trabalho infantil. O que me parece claro é que o Estado não deve incentivar que façam isto às crianças com "elevado potencial desportivo". Não só porque o incentivo à prática de desporto devia ser para todos, e para que praticassem desporto de forma saudável, como também porque incentivos ao treino de competição iriam agravam riscos já significativos para crianças, que por serem especialmente vulneráveis são quem o Estado tem maior obrigação de proteger.

* Os meus filhos mais velhos participaram em competições quando eram pequenos. Não era alta competição. Nem perto disso. Mas mesmo assim a pressão de pais e treinadores sobre as crianças era tão grande, tão ridiculamente grande, que eu disse aos meus filhos que o importante no desporto não é vencer mas sim humilhar completamente o adversário. Os meus perceberam que era piada mas temo que para muitos era a sério...

1- Venceu na categoria de infantis em 2018 e na de iniciados em 2019, GCP, campeões
2- No Facebook

10 comentários:

  1. Lembra-me o caso de um amigo que, não tendo notas para entrar em Medicina Veterinária, em Vila Real, se alistou nos Comandos, em Lamego (pela proximidade geográfica). Entrou, assim, no curso que desejava pelas vagas que existiam para estes profissionais. Isto faz-nos pensar na Lei de Campbell, "The more any quantitative social indicator is used for social decision-making, the more subject it will be to corruption pressures and the more apt it will be to distort and corrupt the social processes it is intended to monitor." Suponho que estas vagas procuravam responder ao problema das "oportunidades", procurando incentivar os militares a estudar. Em vez disso, teve o efeito contrário: encorajar os estudantes a serem militares :)

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  2. Não poderia estar mais de acordo! A este respeito veja-se a recomendação 1292 (1996) da Assembleia parlamentar do Conselho da Europa que, infelizmente, não teve grande saída...

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  3. úçtimo comentário no último post dum blog com 15 anos

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  4. Liga-te a Ludwig Krippahl no Facebook
    ou não

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  5. liga não,Segundo o CIAT, nestes dois países, as temperaturas vão aumentar cerca de 2ºC, até 2050, o que tornaria a colheita do fruto quase inviável. O cacau precisa de clima tropical e húmido, além de temperaturas em torno de 20ºC.

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