quinta-feira, agosto 31, 2017

Treta da semana (atrasada): igualdades e confusões.

Aproveitando o final de Agosto, vou coçar esta borbulha mais uma vez. O debate à volta dos livros que a Comissão para a Igualdade de Género (CIG) recomendou que se retirasse do mercado trouxe à superfície muita confusão acerca da igualdade de género. Por sorte, Fernanda Câncio escreveu um bom catálogo dos erros principais nesta luta por uma igualdade mal definida.

Câncio começa pelas leis discriminatórias que havia há umas décadas. As mulheres tinham de pedir autorização aos maridos para viajar, os maridos geriam os seus bens, podiam ler a sua correspondência e assim por diante. É prova cabal de como o feminismo foi necessário. Mas parece confundir leis com opiniões. Eu tenho o direito legal de viajar sem pedir autorização à minha mulher. Mas a minha mulher tem também o direito de se divorciar de mim se não gostar da brincadeira. Câncio pergunta «Então o que é aquilo no artigo 13º da Constituição, sobre a interdição da discriminação com base no sexo, orientação sexual, etc?»(1). É apenas para impedir o Estado de legislar de forma discriminatória. Não é para impedir a minha mulher de se divorciar de mim se achar que os homens têm a obrigação de pedir autorização para viajar e eu não cumprir essa restrição. Desde que o feminismo ganhou a luta contra as leis discriminatórias tem andado a lutar contra opiniões discriminatórias. Essa confusão tira-lhe legitimidade porque quem não pode discriminar é o Estado. O indivíduo tem muito mais liberdade para o fazer.

Outra confusão é acerca da igualdade de género. Não faz sentido querer que os géneros sejam iguais porque o propósito dos géneros, enquanto identidade e construção social, é precisamente distinguir umas pessoas de outras. O que faz sentido é apenas a igualdade de direitos, e mesmo essa tem um significado restrito. Um direito é apenas um dever que outros têm para connosco. Como todos temos os mesmos deveres para com os outros independentemente de atributos como sexo, credo, raça ou orientação sexual, então todos temos direitos iguais. Mas no contexto desses deveres. Fora disso, a igualdade nem está garantida nem é expectável. Fora dessas obrigações, ninguém tem de me tratar como trataria a Sara Sampaio ou o Cristiano Ronaldo. Nem tem de me conceder as mesmas oportunidades, benesses ou favores que concederia à Sara Sampaio ou ao Cristiano Ronaldo. Desde que não viole as suas obrigações, pode discriminar pelo critério que quiser, seja pelos conhecimentos de bioinformática, pela beleza, pelo sexo, pela raça ou pela pontaria do remate. Discriminar é um direito sempre que não haja um dever de tratar todos por igual.

Outra confusão muito comum é entre normas e factos. Câncio menciona que a Constituição de 1932 discriminava contra as mulheres pelas «diferenças da sua natureza». Muita gente rejeita com veemência a possibilidade de haver diferenças biológicas entre homens e mulheres – apesar das evidências claras de que as há – com medo que essas diferenças “de natureza” justifiquem impor regras diferentes a homens e mulheres. É um medo disparatado. Ser diferente, mesmo por natureza, não implica ter menos direitos. Perante a lei, e apesar das nossas diferenças, eu, a Sara Sampaio e o Cristiano Ronaldo devemos ter exactamente os mesmos direitos. Câncio não parece cometer este erro de julgar que naturezas diferentes justificariam direitos diferentes. Mas a situação é outra quando Câncio defende que diferenças biológicas entre homens e mulheres não «justificam materiais didáticos diferentes para crianças entre quatro e seis anos, conforme sejam meninas ou meninos». Neste caso, não se está a inferir normas diferentes a partir de diferenças factuais. O que se está a fazer é a inferir que, se meninos e meninas têm preferências diferentes, quem vender brinquedos diferenciados vai ter mais lucro. Isto é perfeitamente justificado e deve ser o que acontece a menos que as empresas de artigos para crianças sejam todas geridas por parvos.

Outra confusão de Câncio é acerca das críticas à recomendação da CIG para que a Porto Editora não deixasse ninguém ter acesso a estes livros. Se bem que seja uma recomendação à editora, uma vez cumprida torna-se numa imposição a todos os potenciais leitores. Para ser realmente apenas uma recomendação, a CIG teria de recomendar às pessoas que não comprassem os livros. Dessa forma, cada um poderia decidir por si se seguia ou não seguia a recomendação. Mas se são retirados do mercado por recomendação do governo, o efeito é de censura: o leitor fica impedido de ler os livros que o governo julgou impróprios, quer concorde ou não com a recomendação. Ao contrário do que Câncio sugere, a crítica não é motivada pelo medo de que as crianças mudem de género por não terem livros azuis ou cor-de-rosa, que não me parece ser um medo muito comum. A crítica é motivada pela pretensão do governo de impedir a compra desses livros, uma ingerência ilegítima em decisões do foro pessoal.

O propósito da recomendação da CIG era mesmo impedir o acesso a esses livros para evitar “perpetuar estereótipos” que a CIG não aprova. O que nos traz ao maior defeito do politicamente correcto. Realmente, há ideias erradas. Há ideias más e prejudiciais. Há ideias que seria bom que todos rejeitassem. São muitas. Criacionismo, astrologia, que as vacinas causam autismo, quase tudo o que tem que ver com religião e carradas de outras coisas. Mas numa sociedade livre e justa, que respeite a liberdade de pensamento, só é admissível combater ideias pelo confronto com ideias melhores. Pela crítica aberta, pelo humor, pela ofensa livre e despudorada. Pelo diálogo. O politicamente correcto é um movimento autoritarista que não respeita o direito a uma opinião diferente e prefere mandar calar os outros em vez de persuadir pela razão. Mas este é um problema maior do que os livrinhos de passatempos e transversal a muitas outras lutas. Fica para outra oportunidade.

1- Fernanda Câncio, DN, Isto só lá vai com educação

quarta-feira, agosto 30, 2017

Treta da semana (atrasada): acreditar, mas em quê?

Daniel Dennett pediu uma vez a um colega turco que lhe escrevesse uma frase verdadeira em Turco mas sem lhe dizer o que significava. Dennett usa esta frase como um exemplo de uma crença peculiar: Dennett acredita que a frase é verdadeira, porque confia no colega, mas não acredita na frase em si porque nem sequer sabe o que lá está escrito. Por estranho que este tipo de crença pareça, é cada vez mais comum entre os crentes religiosos.

Acreditar em algo inteligível é mais satisfatório e, por isso, as crendices inteligíveis são mais populares. Há quem acredite em vidas passadas, que a personalidade de cada um depende da posição dos planetas, que os santinhos intercedem por nós, que temos energias positivas e podemos ver o futuro nas cartas e carradas de coisas assim. Sempre foi assim. Quem acreditava que um deus escaravelho fazia rolar o Sol pelo céu acreditava num disparate. Mas era um disparate que se percebia, tal como o disparate de acreditar que andar de joelhos em Fátima convence a mãe do criador do universo a meter uma cunha pelo fiel que assim se sacrifica.

No entanto, a crença inteligível não é ideal para a religião. Nunca foi, e agora ainda é menos. Primeiro, porque perceber uma ideia permite interpretá-la e preencher os detalhes com a imaginação de cada um. Daqui brotam muitas variantes como se nota, por exemplo, nas várias formas de venerar santinhos e na diversidade de santinhos venerados. Formalmente, a Nossa Senhora de Fátima é a Nossa Senhora de Lourdes e de muitos outros sítios. Mas, na imaginação dos crentes, são diferentes. Quem faz promessas à de Fátima é a Fátima que as vai pagar. Assim, as crenças inteligíveis tendem a fragmentar as religiões, por vezes de forma violenta. No século XVI, alguns cristãos dizerem que os homens só se salvam pela fé e que só a Bíblia é fonte de dogmas acabou por matar oito milhões de pessoas em século e meio de guerras*.

A outra desvantagem das crenças inteligíveis é serem vulneráveis aos factos. Isto é menos problemático quando abunda a ignorância. Quando ninguém sabia o que era a trovoada ou que existiam bactérias não era estranho acreditar que as doenças e os raios fossem castigo de Deus. Sem perceber de estatística também não se estranha a crença no poder da oração. Muitas crendices ainda sobrevivem em buracos no conhecimento. Mas esses buracos são cada vez menores e cada vez mais gente os vai tapando. Por isso, especialmente entre os crentes mais esclarecidos, as crenças inteligíveis tornaram-se indefensáveis. Deus passou de um ser poderoso a quem se podia pedir favores a um conceito abstracto e paradoxal.

Miguel Panão dá bons exemplos das dificuldades de ser um crente erudito. O conhecimento que tem obriga-o a trocar crenças inteligíveis por alegações incompreensíveis: «Eu estou cada vez mais convicto de que Deus não existe como todas as outras coisas neste universo existem, mas sim que Deus é existência. Ou seja, onde assenta todo e qualquer processo passível de existir, seja ele racional ou relacional.»(1) Não se percebe como Deus pode ser existência, problema que Panão admite logo a seguir: «Paradoxal. Falar de Deus é querer atingir o inatingível. O confronto com os paradoxos quando nos referimos a Deus podem ser uma causa para alguém iniciar um processo que acaba no ateísmo. Não porque Deus não exista, mas por ser difícil lidar racionalmente com os paradoxos que encontramos em Deus». Não é apenas difícil. É mesmo impossível. Não é por acaso que lhe chamam o mistério da fé. É que uma hipótese acerca de um deus, para não ser obviamente inconsistente com a realidade que conhecemos, tem de ser uma hipótese que ninguém possa compreender. Tem de ser uma frase em Turco que ninguém pode compreender. E nem há turco que a traduza.

Esta característica curiosa da fé erudita mostra que ninguém acredita em Deus. A maioria dos adeptos de cada religião tem uma crença menos sofisticada, menos reflectida, e acredita em deuses primitivos, daqueles que se zangam, que respondem a orações, a quem se pede favores e de quem se teme castigos. São crenças inteligíveis mas incompatíveis com o que sabemos da realidade. Não são o Deus dos crentes eruditos. E os crentes eruditos não acreditam em Deus porque, como Panão demonstra, acreditam que é verdade algo que não se compreende.

Este processo de perda de inteligibilidade da crença religiosa também contrasta com o que tem acontecido na ciência. A ciência aproveita a acumulação de informação acerca da realidade para aperfeiçoar teorias e tornar-se cada vez mais esclarecedora. As religiões ou ignoram essa informação e insistem em crenças inteligíveis mas obviamente disparatadas, ou então fogem dessa informação e refugiam-se em demagogia incompreensível. A tese de que ciência e religião se complementam como vias para o conhecimento é obviamente falsa. A primeira procura a compreensão. A segunda procura precisamente o contrário.

* Ou então foi por causa da manteiga. Mas vai tudo dar ao mesmo.

1- Miguel Panão, Única resposta à possibilidade de Deus

sexta-feira, agosto 25, 2017

Treta da semana (atrasada): mais do mesmo...

Eu ando a tentar escrever sobre outras coisas. Mas não me deixam.

A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) recomendou que a Porto Editora retirasse do mercado dois livros de passatempos para crianças entre os quatro e os seis anos de idade. Um é azul, tem piratas e robôs e é vendido para meninos. O outro é cor-de-rosa, tem princesas e culinária e é vendido para meninas. A CIG recomendou retirá-los do mercado porque «Esta editora, ao optar por lançar duas publicações com atividades que diferenciam cores, temas e grau de dificuldade para rapazes e raparigas, acentua estereótipos de género que estão na base de desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens.»(1)

Nas competições desportivas segrega-se atletas pelo sexo e os estereótipos de género associam às mulheres menor desempenho na maioria dos desportos. E, nestas competições desportivas, nota-se que o desempenho das mulheres é inferior. A metodologia da CIG recomendaria terminar a segregação sexual no desporto para não perpetuar este estereótipos que “estão na base” das diferenças de desempenho, para as mulheres finalmente se revelarem iguais aos homens no desporto. A imbecilidade disto é óbvia porque não é a segregação sexual e os estereótipos que causam as diferenças de desempenho. Pelo contrário, são consequência dessas diferenças.

Imaginemos que recuávamos 3.5 milhões de anos e observávamos uma família de Australopithecus afarensis, nossos antepassados ou perto disso, para perceber a origem destas diferenças. Julgando pelo seu dimorfismo sexual e pelo comportamento de outros primatas, machos e fêmeas teriam papeis sociais diferentes e evidentes logo na infância. Os jovens machos passariam mais tempo em brincadeiras agressivas de dominância e competição, e as jovens fêmeas mais tempo a aprender a cuidar dos mais pequenos imitando as fêmeas adultas. Os machos adultos teriam o papel de defender o grupo, especialmente contra machos de outros grupos, e as fêmeas adultas cuidariam das crias. Isto não teria “por base” estereótipos de género mas resultaria de especializações biológicas seleccionadas por optimizarem o sucesso reprodutivo. Ao fim de 3.5 milhões de anos disto não é surpreendente que homens e mulheres não tenham o mesmo desempenho desportivo.

Estas diferenças físicas não são dissociáveis das diferenças de preferências e comportamento. Não era por pressão cultural que as jovens fêmeas de Australopithecus afarensis aprendiam a cuidar das crias e os jovens machos lutavam uns com os outros. Era porque sentiam diferente afinidade por actividades diferentes, fruto de pressões selectivas que favoreceram esses comportamentos. Hoje, também essas preferências se manifestam no desporto. Mesmo com as mulheres só competindo com mulheres, ainda assim há mais homens a praticar desporto e a diferença é maior nos desportos mais competitivos. E começa logo na infância, com os rapazes muito mais predispostos a organizar competições desportivas (2).

Muita gente rejeita a explicação evolucionária alegando que as diferenças não podem ser só biológicas. É uma falsa dicotomia. Num animal como nós, o cultural e o biológico interagem e reforçam-se mutuamente. Por exemplo, o tamanho dos nossos maxilares e os problemas com os dentes do ciso são efeitos biológicos da inovação cultural que foi usar o fogo para processar alimentos. As diferenças biológicas entre os sexos também causam pressões sociais diferentes. Milhões de anos de vantagem reprodutiva para as fêmeas que escolhiam os machos vencedores resultou em preferências femininas que motivam os homens a competir e vencer, reforçando a tendência masculina para a competição. Daqui vem o estereótipo do homem valer pelo seu sucesso no desporto, nas artes ou na acumulação de dinheiro e poder. Por outro lado, o sucesso reprodutivo dos nossos antepassados masculinos dependeu mais de investir em mulheres férteis, capazes de criar filhos e que lhes dessem confiança na paternidade. O resultado é que os homens não se sentem especialmente atraídos por campeãs nem é provável que considerem a directora da empresa mais atraente do que a secretária trinta anos mais nova. O estereótipo da mulher ideal como jovem, bonita, maternal e fiel é apenas um esboço grosseiro destas preferências e não a sua causa.

As «desigualdades profundas dos papéis sociais das mulheres e dos homens» resultam da interacção de factores biológicos e culturais que se influenciam mutuamente há muitas gerações. É um sistema adaptável mas, nos países mais desenvolvidos, estas desigualdades são cada vez mais reflexo de escolhas diferentes e não de imposições injustas. Por exemplo, enquanto na Nigéria 41% dos empreendedores são mulheres, nos EUA só 10% são mulheres e no Reino Unido são apenas 5.7% (3). Enquanto que nos EUA, onde nem sequer há licença de maternidade obrigatória, a probabilidade das mulheres chegarem a lugares de direcção nas empresas é apenas 15% menor que a dos homens, nos países nórdicos essa diferença chega aos 63%. Quanto melhores as condições oferecidas às mulheres, e melhor a segurança social, menos do seu tempo as mulheres querem vender (4). Os estereótipos não são a causa disto. São apenas um reflexo destas correlações. Querer reduzir estas diferenças retirando de circulação livros que “acentuam estereótipos de género” é como combater a obesidade eliminando livros com receitas de doces.

NOTA EXTRA: Foi muito criticada a diferença de dificuldade entre os livros por reforçar o estereótipo de que as meninas são menos inteligentes. Isto é parvoíce por duas razões. Primeiro, esse alegado estereótipo é fictício. Não há uma crença generalizada de que as meninas entre os 4 e os 6 anos são menos inteligentes do que os rapazes entre os 4 e os 6 anos. E, em segundo lugar, «No conjunto das 62 actividades propostas, existem seis cuja resolução é mais difícil no livro dos rapazes e três que apresentam um grau de dificuldade superior no das meninas.»(5). Se alguma coisa esta diferença pequena demonstra é que tiveram o cuidado de equilibrar a dificuldade das actividades entre os dois livros que, sendo para crianças dos 4 aos 6 anos, têm de cobrir uma gama bastante grande de capacidades.

1- CIG, NOTA À COMUNICAÇÃO SOCIAL
2- Time, The Scientific Reason Men Like Sports More Than Women
3- How we made it in Africa, African female entrepreneurs fighting their way to the top
4-Epicenter, The Swedish Gender Equality Paradox
5- Público, Livros de exercícios diferentes para meninos e meninas. Serão elas mais limitadas?

quarta-feira, agosto 16, 2017

Treta da semana (atrasada): politicamente correcto.

Há uns anos, muitos muçulmanos manifestaram-se contra as caricaturas de Maomé. Apregoavam o castigo divino, e exigiam o castigo terreno, dos hereges que fizeram esses bonecos. Há uns anos um grupo de terroristas muçulmanos assassinou desenhadores por causa dos tais bonecos. O politicamente correcto condena o terrorismo islâmico mas não condena o discurso de ódio dos muçulmanos. E acho bem. Não é justo punir alguém por sentir o que sente ou por dizer que o sente. Condenar o terrorismo não implica condenar pessoas pelos seus sentimentos ou discurso.

Mas a liberdade de expressão não isenta ninguém de críticas e odiar quem faz caricaturas não é mais legítimo do que odiar quem odeia caricaturas. A liberdade de sentir e falar deve ser igual para todos e inclui a liberdade de criticar as crenças hediondas do Islão e até de odiar essas crenças e quem as adopta. Mas isto o politicamente correcto proíbe, apesar da “islamofobia” ser o mesmo que as crenças e ódios dos muçulmanos. É inconsistente, arbitrário e hipócrita defender umas liberdades condenando outras equivalentes; proteger sensibilidades de uns desprezando as de outros; e condenar uns ódios, permitir outros e até promover alguns com orgulho, como o ódio aos fascistas. O critério do politicamente correcto não deve nada à justiça nem à decência: se lhes afaga os gostos é permitido; se lhes corre contra o pêlo tem de ser proibido.

A preocupação principal do politicamente correcto também é absurda. A reacção à violência em Charlottesville é um bom exemplo. Manifestantes armados de extrema direita intimidaram as pessoas. Houve violência, terrorismo e mortes. Mas, para Isabel Moreira, o problema é terem permitido uma manifestação nazi por «uma "liberdade de expressão" nova, a que ganhando nos mata»(1). Parecem julgar que as ditaduras fascistas, nazis e comunistas do século XX surgiram por um excesso de liberdade de expressão. Obcecado com o discurso, o politicamente correcto é cego à causa principal do autoritarismo. A economia. Para perder a democracia basta repartir a riqueza de forma injusta e tirar aos que estão pior qualquer possibilidade de justiça sem rebentar tudo. Foi isto que deu vitória ao Trump e ao Brexit e faz crescer os nacionalismos que ameaçam a União Europeia. Mas o politicamente correcto não quer saber de políticas fiscais, da gestão financeira ou do desemprego causado pela automatização. O que importa ao politicamente correcto é calar quem diz coisas feias.

Além disso, o politicamente correcto é racista, sexista e xenófobo. Não segue linhas tradicionais, mas o fundamental está lá. Quem não é politicamente correcto tem de ser silenciado. Veja-se o caso recente na Google. Não é a xenofobia corriqueira da nacionalidade ou da cor de pele mas é a mesma ideia de que “os outros” têm menos direitos que “nós” porque são diferentes. Não têm sequer o direito de falar. E o politicamente correcto está sempre contra o homem branco pelo seu sexo e pela sua cor, quaisquer que sejam as circunstâncias. Fernanda Câncio escreveu que «o que torna o acontecimento de Charlottesville tão aterrador não é o acontecimento em si. É o contexto. E o contexto é o de um discurso, cada vez mais insistente - incluindo em Portugal -, que garante que o "politicamente correto" e a luta pelos direitos das minorias constituem um ataque à liberdade e aos direitos "da maioria branca".»(2) O problema não é respeitar os direitos das minorias. O problema é a desigualdade de direitos. Um negro pode dizer nigga; um branco não. Ao branco é proibido “apropriar-se” da cultura dos outros mas qualquer um pode usar fato e gravata. Uma mulher pode dizer que não gosta de homens baixos mas se um homem diz que não gosta de mulheres gordas é culpado de “body shaming”. E assim por diante, tudo com a desculpa de que o homem branco é sempre privilegiado e por isso merece menos direitos que os outros.

Eu sou homem, sou branco e, admito, sou privilegiado. Se tivesse nascido cigano ou descendesse de africanos provavelmente não estaria onde estou. Mas a razão principal é económica. A minha família sustentou-me enquanto eu estudava, um privilégio que muitos não têm. Muitos ciganos, muitos imigrantes, mas muitos brancos também. Há muitos pastores, jornaleiros, desempregados e sem abrigo a quem ser homem branco não deu qualquer privilégio que se compare ao privilégio económico dos defensores do politicamente correcto. Não é mandando calar essa gente pelo seu alegado privilégio que os vamos convencer a receber refugiados, a promover a igualdade e a respeitar os direitos das minorias. O politicamente correcto quer apagar o populismo inflamatório da extrema direita com mangueiradas de gasolina.

Temos de combater o racismo, o sexismo, o nacionalismo e a xenofobia. Temos de acabar com a discriminação injusta que rouba liberdades a muita gente. Temos também de lutar contra as superstições absurdas e malévolas que muitas religiões propagam. Mas esta luta tem de admitir sempre o diálogo. Não pode admitir a violência, incluindo a violência contra nazis ou fascistas, que o politicamente correcto aplaude. O terrorismo islâmico é culpa dos terroristas muçulmanos e não dos muçulmanos todos, tal como o terrorismo na Irlanda era culpa dos terroristas católicos e não dos católicos todos. Da mesma forma, o terrorismo dos racistas e nacionalistas é culpa dos terroristas e não dos racistas e nacionalistas todos. Uma opinião não se transforma em terrorismo só porque nos mete nojo. O diálogo tem de estar aberto a todos. Todos devem poder criticar, satirizar, ridicularizar e até ofender e todos temos de saber lidar com opiniões que nos desagradam (3). O politicamente correcto é o contrário disto. O politicamente correcto quer ser ditador do discurso, proibindo e autorizando opiniões em função de caprichos infantis e excluindo muita gente do diálogo. Mas a única alternativa ao diálogo é a violência. Se não aprendermos a conversar como adultos isto vai dar para o torto e o maior obstáculo a essa maturidade é a birra constante do politicamente correcto.

1- (Facebook) 13 de Agosto, 3:12
2- DN, A casa dos nazis
3- Um bom exemplo aqui: German town tricks neo-Nazis into raising thousands of euros for anti-extremist charity

quinta-feira, agosto 10, 2017

Treta da semana (atrasada): a premissa.

James Damore, um engenheiro da Google, partilhou internamente com os colegas a sua opinião de que, apesar de existir sexismo e de ser contra o uso de estereótipos, «Quando abordamos o problema da desigualdade de representação numa população, temos de considerar diferenças nas distribuições ao nível da população» e propôs que parte das diferenças na distribuição de homens e mulheres em diferentes cargos se deve a diferenças biológicas entre os sexos (1). Por isso, defendeu que é errado tomar medidas discriminatórias para aumentar a representatividade feminina em certas áreas e que deve haver uma discussão aberta acerca das causas das diferenças sem moralizar a “diversidade” como um fim em si mesmo e sem reprimir opiniões contrárias. Confirmando pelo menos parte do problema, pouco depois foi despedido (2).

Uma alegação bastante criticada foi a de que as mulheres têm menos capacidade para resolver problemas de informática ou liderar projectos de engenharia. Também duvido disso. Damore aponta que as mulheres são mais colaborativas e «demonstram mais interesse em pessoas» enquanto os homens se interessam mais por coisas. É uma simplificação grosseira, mas aproximadamente correcta (3). No entanto, esta diferença pode ser até uma vantagem na organização de equipas, um aspecto fundamental de qualquer projecto de engenharia. Além disso, até aos anos 80 a proporção de mulheres na informática cresceu a par com as outras áreas, chegando aos 35% antes de começar a cair conforme a informática deixou de ser uma disciplina académica para se tornar numa profissão de engenharia bem remunerada (4). Isto sugere que a diferença não está na capacidade das mulheres. Em geral, exceptuando tarefas fisicamente exigentes, ou tarefas que já existam há milhões de anos, como cuidar de crianças pequenas, o trabalho remunerado é demasiado diferentes daquilo para o qual evoluímos para esperar diferenças de capacidade entre homens e mulheres. Onde é de esperar diferenças significativas é nas preferências. Homens e mulheres não querem as mesmas coisas.

Mesmo que não houvesse qualquer outra diferença biológica, uns terem útero, engravidarem e amamentarem enquanto outros só têm espermatozóides torna muito assimétrica a relação entre pessoas destes grupos. Os que têm menos para contribuir estão sob uma pressão maior para competir por recursos que os tornem mais atraentes. Prolongue-se isto por muitos milhões de anos e o resultado é o dimorfismo sexual evidente na nossa espécie. Os homens não são maiores e mais musculados só porque calhou. Esta diferença resulta de milhões de anos de competição violenta entre machos por causa das fêmeas e é irracional assumir que isto não tenha causado diferenças de comportamento e preferências. Irracional, mas conveniente.

A premissa fundamental dos “estudos de género”, e que é heresia questionar, é a de que todas as diferenças entre sexos se devem à cultura*. Ponto. Isto permite isolar esta disciplina e ignorar a neurologia, a evolução, a fisiologia ou qualquer coisa que possa cheirar a biológico. O desinteresse em explicar a origem desses factores culturais (é cultural e pronto) permite também especular à vontade e escolher facilmente os alvos de indignação. Ao contrário da ciência, motivada pela curiosidade acerca da realidade, os “estudos de género” são motivados pela indignação perante a injustiça discriminatória. Com esta compartimentalização é fácil encontrar injustiças. Basta procurar estatísticas politicamente interessantes ignorando qualquer informação inconveniente. Por exemplo, os empregados da BBC com maiores salários serem maioritariamente homens (5) implica que a BBC está a discriminar (6). O facto de acontecer o mesmo no YouTube, sem salários nem empregados e onde cada um ganha conforme a popularidade dos seus vídeos (7), não é considerado relevante. Talvez seja prova de outra injustiça qualquer acerca da socialização das raparigas, da auto-confiança, do machismo ou o que calhe, mas tem de ficar separado da tese da discriminação salarial na BBC. Cortar a realidade e as explicações em pedacinhos independentes permite postular, caso a caso, os factores culturais que melhor correspondam às expectativas dos praticantes desta arte.

No entanto, por muito conveniente que esta premissa seja para os “estudos de género” e para as pessoas pagas para promover a “diversidade”, a premissa é falsa. A biologia também é importante. Entre muitos outros exemplos, isto é evidente em diferenças comportamentais em recém-nascidos (8), na diferente expressão e incidência de doenças mentais como o autismo (9) ou a depressão (10), e até na identidade de género. Muitas pessoas rejeitam o género em que foram socializadas, demonstrando cabalmente que a socialização e a “cultura” não explicam totalmente as diferenças comportamentais entre géneros. E a biologia sabemos de onde vem. Os homens têm mais motivação para competir por recursos e estatuto porque estes factores têm mais peso no seu sucesso reprodutivo do que no sucesso reprodutivo das mulheres. Isto explica porque é que os homens são maiores e fisicamente mais fortes, em média. E explica porque é que a desigualdade sexual em carreiras como construção civil ou engenharia é maior em países mais ricos, onde há mais liberdade de escolha. Explica porque é que há menos mulheres em certos cursos, em cargos de direcção, em trabalhos perigosos e porque é que as mulheres vendem menos horas do seu trabalho (11) e dedicam mais tempo à família. Até explica porque é que no YouTube há a mesma desigualdade de rendimentos que na BBC.

Os factores culturais também são importantes e há injustiças a combater. Mas é preciso reconhecer que, em média, homens e mulheres não querem as mesmas coisas. Temos de aceitar que há diferenças médias no equilíbrio entre o esforço que cada pessoa quer dedicar a competir por recursos e o tempo que quer reservar para si, para os amigos e familiares. Não podemos combater a injustiça obrigando as pessoas a comportar-se como se fossem todas iguais.

* Excepto órgãos sexuais, tamanho do corpo, forma do esqueleto, musculatura, mamas, barba e coisas igualmente irrelevantes. Mas de resto, é tudo 100% igual.

1- Gizmodo, Exclusive: Here's The Full 10-Page Anti-Diversity Screed Circulating Internally at Google [Updated]
2- Bloomberg, Google Fires Author of Divisive Memo on Gender Differences
3- Su, Rong, James Rounds, and Patrick Ian Armstrong. "Men and things, women and people: a meta-analysis of sex differences in interests." (2009): 859; e também Debra Soh, No, the Google manifesto isn’t sexist or anti-diversity. It’s science
4- Planet Money, http://www.npr.org/sections/money/2014/10/21/357629765/when-women-stopped-coding
5- BBC, BBC pay: Male stars earn more than female talent
6- Guardian, BBC accused of discrimination as salaries reveal gender pay gap - as it happened
7- Business Insider, These are the 18 most popular YouTube stars in the world — and some are making millions
8- Psychology Today, Sex-Specific Toy Preferences: Learned or Innate?
9- The National Autistic Society, Gender and autism
10 – Picinelli e Wilkinson, Gender differences in depression, The British Journal of Psychiatry Dec 2000, 177 (6) 486-492; DOI: 10.1192/bjp.177.6.486
11- Forbes, New Report: Men Work Longer Hours Than Women