sexta-feira, março 10, 2017

Treta da semana (atrasada): a palestra.

Alguns alunos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) tinham pedido uma sala para uma palestra. Seguindo o que parece ser o procedimento normal, dirigiram-se à associação de estudantes (AEFCSH), que encaminhou o pedido ao conselho pedagógico e este reservou a sala. Dias antes do evento, a AEFCSH decidiu retirar o pedido por razões como a de que «estas pessoas não deveriam ser toleradas porque não respeitam os mais básicos princípios de respeito e democraticidade, já que os seus ideais políticos são orientados em torno de princípios fascistas»(1). O director da FCSH acabou por cancelar ou adiar a palestra por estar «em causa a segurança do acontecimento». Isto por alegadas ameaças cujo teor não consegui apurar, mas «O diretor da faculdade acredita que o alvo das ameaças não era Jaime Nogueira Pinto»(2). De seguida, o PNR manifestou-se e alguns simpatizantes alegadamente ameaçaram membros da AEFCSH (3). Naturalmente, nenhuma destas organizações assume responsabilidade por actos individuais e facilmente sacodem a água do capote. Entretanto, o PNR e a Nova Portugalidade, o grupo que promovia a palestra, aproveitam a publicidade (4).

Há duas lições importantes a retirar daqui. A primeira é a de que não se deve combater ideais fascistas com métodos fascistas. Se alguém quer defender imbecilidades, o melhor é deixá-lo falar. Veja-se, por exemplo, o efeito salutar dos tweets do presidente Trump ou dos comentários criacionistas aqui neste blog. A coisa mais inteligente que os anti-fascistas podiam ter feito seria ir à palestra, anotar cuidadosamente as opiniões de Nogueira Pinto e mostrar a toda a gente o que os fascistas defendem. Nestas coisas não há melhor antídoto do que luz e ar fresco. Em vez disso, caíram que nem patos na jogada dos fascistas. Deram mais visibilidade ao movimento, mais legitimidade à luta dos “patriotas portugueses” e uma valiosa oportunidade de gerarem simpatia pela sua ideologia sem terem sequer de dizer que ideologia é essa. Como a intolerância dos senhores da AEFCSH a “estas pessoas” não tem eficácia nas urnas, impedir as pessoas de saber, pela boca dos próprios, o que estes movimentos defendem arrisca a criar surpresas desagradáveis nas eleições. É muito mais fácil simpatizar com um Nogueira Pinto que foi impedido de falar do que com um Nogueira Pinto que se ouviu falar.

A outra lição é mais fundamental. É a da necessidade de ter ideias claras acerca das liberdades das pessoas e da legitimidade de entidades como a FCSH e a AEFCSH policiarem opiniões. Este problema está minado de chavões como o do “discurso de ódio”, e pregões como o de que a liberdade de opinião não é a liberdade de fazer tudo, que só servem para criar confusão e justificar decisões arbitrárias. É preciso desarmar estas armadilhas. Quando defendemos a liberdade de crença religiosa não estamos a dizer que o crente pode fazer tudo. Não pode fazer sacrifícios de pessoas ou animais nem procissões com música às duas da madrugada. O que estamos a defender é simplesmente que instituições que lidam com o público, seja uma universidade, seja uma repartição de finanças ou uma pastelaria, não podem discriminar pessoas em função da sua crença religiosa. As pessoas podem fazê-lo. Qualquer um de nós é livre de não casar com ateus, bloquear cientólogos no Facebook ou recusar-se a abrir a porta a testemunhas de Jeová. Mas uma associação de estudantes não pode tratar pessoas de forma diferente em função da sua crença religiosa, qualquer que seja a crença religiosa. Isto não quer dizer que não possa discriminar em função de outras coisas. Se a crença religiosa proíbe o crente de tomar banho, a associação de estudantes pode invocar a saúde pública e o mau cheiro como justificação para não autorizar reuniões dessa seita. Mas não pode fazê-lo pela crença em si.

É este o princípio fundamental da liberdade de expressão. Seria legítimo da AEFCSH negar sala para uma actividade que tivesse fins comerciais, que pusesse em perigo a segurança dos alunos, que perturbasse as aulas, que constituísse um crime e imensas outras coisas que poderiam justificar essa recusa. Mas a AEFCSH não tem legitimidade para negar sala a alguém só porque «os seus ideais políticos são orientados em torno de princípios fascistas», exactamente como não teria legitimidade para negar sala a alguém por ser judeu, ou do Benfica, ou homossexual. Antecipando o espantalho, não estou a afirmar que isto seja tudo a mesma coisa. O que estou a afirmar é muito mais restrito do que isso. É simplesmente que o colectivo de associados de uma associação de estudantes, enquanto tal, não tem legitimidade para discriminar pessoas em função de atributos pessoais como as suas convicções políticas ou religiosas.

Eu não sei que ameaças levaram o director da FCSH a cancelar ou adiar a palestra. Parece-me injusto que a resposta a ameaças seja prejudicar os ameaçados, mas desconhecendo os detalhes abstenho-me de opinar acerca disso. Mas sei que, na reunião da AEFCSH, esta associação tomou colectivamente a decisão de discriminar contra certos alunos simplesmente por causa das suas convicções políticas. Isto não só é uma patetice enorme, se queremos impedir o avanço de ideologias extremistas, como viola o dever que esta entidade tinha de respeitar a liberdade de opinião, de convicção política e de partilha de ideias de todas as pessoas que foram afectadas.

Nota: parece que a maneira como escrevi isto sugere que a Nova Portugalidade ou o JNP são fascistas. Não faço ideia se são ou não. Até me parece que “fascista” é mais um termo depreciativo que se atira aos outros mas que ninguém admite ser. A minha intenção era defender algo que me parece válido mesmo que a acusação seja verdadeira. A verdade da acusação em si não é relevante para este propósito.

1- Acta da RGA, cujo link agora não encontro mas acho que foi pelo Facebook: AEFCSH – UNL 5 Março, 18:48
2- TSF, Universidade Nova de Lisboa cancela conferência de Jaime Nogueira Pinto
3- Notícias ao Minuto, Associação de Estudantes da FCSH denuncia ameaças da extrema-direita
4- Ver, por exemplo, os screenshots aqui: Maria Vieira e a NP

8 comentários:

  1. It smells like godel. Hitler e trump falaram todo o caminho para o poder.

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  2. João C,

    Trump tem pouco poder, pelo menos por enquanto, e o poder que Hitler arranjou não foi com palestras e comícios.

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  3. Ludwig:

    Discordo que o Trump tenha pouco poder no momento presente. Não tem poderes de ditador, mas é presidente num regime presidencial, se bem que democrático, do país mais influente do planeta. Ele pode começar guerras, nomear ministros que não acreditam na ciencia, etc... Que precisa uma pessoa para tu considerares que tem poder?

    Quanto a Hitler, sem contar com o Mein Kampf, que não é falatório mas está enquadrado no tipo de exposição que está em causa, existem uma série de discursos que ele faz (inclusivé um num tribunal em que está a ser julgado) que lhe vão criando a imagem e promovendo a sua ascensão. Da wikipédia: "pponents of Hitler in the leadership had Hermann Esser expelled from the party, and they printed 3,000 copies of a pamphlet attacking Hitler as a traitor to the party.[88][b] In the following days, Hitler spoke to several packed houses and defended himself and Esser, to thunderous applause. His strategy proved successful, and at a special party congress on 29 July, he was granted absolute powers as party chairman, replacing Drexler, by a vote of 533 to 1.[89]

    Hitler's vitriolic beer hall speeches began attracting regular audiences. He became adept at using populist themes, including the use of scapegoats, who were blamed for his listeners' economic hardships.[90][91][92] Hitler used personal magnetism and an understanding of crowd psychology to his advantage while engaged in public speaking.[93][94] Historians have noted the hypnotic effect of his rhetoric on large audiences, and of his eyes in small groups.[95]^^

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  4. Caro Ludwig,

    Nada a ver com o post em questão, mas como não sei como/por onde proceder para perguntar-lhe isto, deixo aqui mesmo. O senhor conhece o sítio www.evo.bio.br? Se sim, o que pensa sobre as idéias do autor? Se já leu alguma coisa deste sítio, concorda com o que leu?

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  5. *Site ou sítio, não sei como dizem aí em Portugal (sou do Brasil), hehe. :)

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  6. Olá Paulo,

    «O senhor conhece o sítio www.evo.bio.br?»

    Não conheço, não. Vou dar uma olhada se tiver tempo.

    Mas, entretanto, não me chames “senhor” que me faz sentir velho :)

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  7. Olá Ludwig,

    Obrigado por responder à minha pergunta. Recomendo dar uma olhada no site quando puderes, então.

    E fica registrado que não voltarei a chamá-lo de ''senhor'' (foi apenas com intenção de ser respeitoso que o fiz). :)

    Obrigado pela atenção.

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