sábado, dezembro 31, 2016

Treta da semana (atrasada): razões.

No seu blog sobre ciência e fé, Miguel Panão estranha haver «quem pense que os que acreditam em Deus, em realidades espirituais, são pessoas irracionais que não pensam ou fazem uso da razão». Como prova aparente da racionalidade destas crenças, aponta «os diversos estudos, livros, revistas com arbitragem internacional, cursos universitários, doutoramentos, conferências internacionais, centenas de milhares de livros sobre ciência e religião.»(1)

O primeiro indício de irracionalidade está na deturpação daquilo que quer contrapor. O que está em causa não é se um crente é capaz de usar a razão. Ninguém está a dizer que Panão, os criacionistas ou os imãs são irracionais em tudo. Apenas que foi irracional adoptarem aquelas crenças específicas acerca dos deuses. E o segundo indício de irracionalidade está na inconsistência de critérios. Há muitos livros sobre o catolicismo, escolas católicas e artigos católicos. Mas também há muitas madraças e livros sobre o Islão e doutores dessas matérias. E escolas evangélicas e artigos sobre o “design inteligente”. Apesar de Panão não considerar isto evidência adequada da racionalidade do Islão ou do criacionismo evangélico, invoca-o como prova de que a sua crença é racional. Esta inconsistência é irracional. No fundo, o mais estranho aqui é a estranheza de Panão. Panão estranha que considerem irracional que ele faça aquilo que ele considera irracional nos outros.

Depois, o truque do “cientificamente”. «Se eu acredito que apenas se considera real o que posso testar cientificamente, então, há muita coisa que irei considerar como ficção, mesmo que não seja. Por exemplo, ter uma ideia. Por que razão é possível ter uma ideia?» O “cientificamente” dá ideia de que há diferentes formas de testar. Está será num laboratório, com instrumentos e bata branca ou algo assim. Mas o científico não é a forma de testar. É testar. Se inventamos uma hipótese e ficamos por aí, isso não é científico. Mas se a compararmos com alternativas e tentarmos encontrar as que melhor explicam o que nos intriga, então isso é científico. E é isso que nos permite concluir que as pessoas têm ideias e as torradeiras não: explica-se melhor o comportamento das pessoas assumindo que estas têm ideias mas assumir que as torradeiras têm ideias é desnecessário.

Outro truque é a mudança subtil da questão. Panão começa por falar no que se considera real e dá um exemplo: «Por exemplo, ter uma ideia.» Será que ter ideias é real? Claro que sim, todos sabemos que é, e saber que animais têm ideias e que estruturas neuronais estão envolvidas são áreas activas de investigação científica. Por isso, Panão tem de lhe dar um jeito: «Por que razão é possível ter uma ideia?». E aqui o leitor pensa “aha, isto a ciência não responde”. É claro que Panão também não tem resposta para isto, mas não importa. E de seguida baralha ainda mais: «Como justifico cientificamente ter uma ideia? E qual o método científico que me permite avaliar se o conteúdo dessa ideia a revela como uma ideia com conteúdo?» Além das perguntas serem confusas, o “cientificamente” e “científico” não estão lá a fazer nada. Sem essas palavras, as perguntas são exactamente as mesmas. No fundo, Panão está a dizer que queremos compreender como o cérebro funciona. É um objectivo meritório mas isso faz-se com ciência. Não se faz com criacionismo bíblico, nem com o Islão nem com o catolicismo.

Continuando nesta linha, Panão defende que não é “cientificamente” que sabemos o que é real mas sim pela experiência: «O crente em Deus faz uma experiência de Deus.» A experiência é um dos factores que temos de considerar para saber o que é real. Mas, para interpretar a experiência, temos de conjecturar. É isso que Panão faz quando especula que a sua experiência é “de Deus”. Conjectura. E o melhor método para avaliar conjecturas à luz da experiência chama-se ciência. A epilepsia é um bom exemplo. A experiência de um ataque epiléptico é de uma assustadora perda de controlo. Uma conjectura que pretendia explicar esta experiência era a de que demónios possuíam o corpo da pessoa. Graças a explicações melhores, que a ciência permitiu encontrar, hoje temos tratamentos mais eficazes do que o tradicional exorcismo. A “experiência de Deus” é análoga. A experiência em si é real, mas atribuí-la a um deus é mera conjectura, uma explicação fraca que pode ser substituída por explicações melhores que dispensam o sobrenatural. E é importante ter em conta que mesmo quem adora deuses que Panão considera não existirem relata exactamente as mesmas experiências. Se Panão fosse consistente nos seus critérios, isto bastaria para desconfiar das conclusões a que chega.

Eu não acho que todos os crentes sejam irracionais. Pelo contrário. Alguns são tão racionais que me espanta serem crentes. Mas não há nada que se explique conjecturando deuses e “realidades sobrenaturais” que não se explique melhor ainda dispensando essas coisas e, se o objectivo for apurar a verdade, adoptar estas crenças é irracional. O que deve ser óbvio para crentes como Panão, perfeitamente capazes de perceber que os factores que invocam como justificação racional da sua crença são exactamente os mesmos que rejeitam como insuficientes para justificar as crenças dos outros. Isto e o cuidado que dedicam aos truques de retórica para fingir que há um método não científico de compreender a realidade, ou “as realidades”, sugerem que esta irracionalidade não é um mero lapso mas sim um acto deliberado. No entanto, chamar a isto irracional presume que o que importa é a verdade. Talvez não seja. O compromisso com uma crença religiosa afecta muito o ambiente social e até as oportunidades económicas do crente. Adoptar certas crenças, ou aparentar adoptá-las, pode trazer vantagens e renegá-las pode ter custos elevados. Assim, esta atitude até pode ser uma estratégia racional pelas vantagens que traz. No entanto, se for racional, não o será pelas razões que dizem fundamentá-las. A crença em Deus pode ser uma crença útil mas não é uma crença verdadeira.

1- Miguel Panão, Tanto tempo a discutir tão pouco…

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Ciência: 1, o propósito.

Quando se fala de ciência, seja no ensino seja em obras de divulgação, a ênfase é quase sempre no conhecimento que a ciência produziu. É indiscutivelmente útil conhecer o que a ciência produz mas enfatizar o produto em detrimento do método – que quando é ensinado é quase sempre como uma lista de regras para memorizar – dificulta a compreensão do mais fundamental, que é o processo em si. Por isso, muita gente acaba com uma ideia confusa daquilo que é a ciência. Com a minha característica falta de modéstia, queria dedicar uns posts a colmatar esta lacuna dando uma ideia mais clara do que é a ciência e de como funciona. Vou começar pela sua função e enquadramento na restante actividade humana.

A ciência é uma ferramenta. E a melhor maneira de compreender uma ferramenta é perceber para que serve e não serve. Todos os mamíferos conseguem aprender pela experiência. Aprendem a caçar, a partir nozes, a atar os cordões dos sapatos ou a escrever com o teclado, por exemplo. Mas este conhecimento fica implícito na organização das redes de neurónios e não pode ser transmitido, pelo menos enquanto não inventarmos tecnologia que o permita. Cada um tem de o obter por experiência própria. Este tipo de conhecimento está fora do âmbito da ciência. É útil para lidar com equipamento complexo e fazer experiências no laboratório mas não é com este conhecimento implícito que a ciência trabalha.

A representação simbólica é diferente. Permite inventar uma história, pô-la em palavras e enfiá-la pelos olhos do outro até ao cérebro. Isto pode ser usado para imensas coisas. Para procurar narrativas belas ou inspiradoras temos a poesia e a literatura. Para enganar os outros, convencendo-os de que temos poderes especiais ou que conhecemos gente importante, temos astrologias, religiões, teologias e afins. Podemos usar símbolos para fazer política, para reivindicar, para ameaçar, para prometer e o que mais a imaginação permitir. E, no meio disto tudo, podemos também supor que seres racionais, por muito diferentes que sejam em gostos e crenças, poderão partilhar representações simbólicas para concordar sobre muita coisa em virtude simplesmente da sua racionalidade. Isto importa porque essas representações simbólicas racionalmente válidas permitem ultrapassar qualquer divergência subjectiva entre seres racionais. A procura por essas representações racionalmente válidas chama-se filosofia.

Esta procura abrange muitos tópicos, desde a linguagem em si ao significado da nossa existência e ao que devemos fazer com a nossa liberdade. No meio disto tudo, estão as representações simbólicas que nos informam acerca da realidade. É um caso particular de racionalidade, tentar distinguir o possível do impossível, explicar o que aconteceu e acontece e prever o que irá acontecer. O ramo da filosofia que procura estas conjecturas chama-se ciência. Antes de continuar, ressalvo que não pretendo delimitar estes conceitos à faca. Não me interessa saber a temperatura exacta em que o chá quente passa a morno ou a fronteira exacta onde acaba a ciência e começa o resto. O que importa é ter uma ideia clara do fundamental.

E o fundamental é tão importante que o vou repetir: a ciência é o ramo da filosofia que procura descrições correctas da realidade. Devido ao enorme sucesso desta ferramenta, muita gente procura buracos onde possa esconder as suas crendices do escrutínio da ciência. Mas perceber o fundamento da ciência confere imunidade imediata ao truque das restrições arbitrárias. Isso é filosófico e não científico; a ciência só lida com a realidade material; ou com padrões que se repetem; ou o que pode ser medido; o que é natural; o que se faz no laboratório e assim por diante. É tudo treta. A ciência é a ferramenta para seleccionar as melhores descrições da realidade. É uma tarefa filosófica, pela sua racionalidade, e esta ferramenta serve para qualquer pretensão de descrever o que quer que seja da realidade. É essa a sua função. Não vem com buracos para deixar passar deuses, energias espirituais ou forças astrológicas.

É importante perceber também que a ciência não lida directamente com a realidade. O que seria impossível, pois qualquer tentativa de perceber a realidade depende do que se conjectura para interpretar o que se experiencia. A matéria prima da ciência são estas conjecturas. Os modelos, as hipóteses, as teorias, as explicações. É isso que a ciência produz, avalia e selecciona. É verdade que isto exige obter informação acerca da realidade, o que obriga a fazer experiências. Mas este é um detalhe técnico. Se os resultados de todas as experiências já estivessem registados bastaria consultar o registo. Se um computador simular reacções nucleares com rigor não é preciso rebentar bombas para testar uma hipótese. E se houvesse robôs que fizessem as experiências bastaria mandá-los trabalhar e recolher os resultados. O que já se faz, só que com bolseiros em vez de robôs. Por enquanto, ainda são mais baratos. O trabalho experimental tira teimas e inspira ideias novas mas a ciência não é recolha de dados. É o trabalho intelectual – filosófico – de explicar os dados.

A ciência não é um conjunto arbitrário de regras. É uma ferramenta. Quando a faca está romba, afia-se. Se a lâmina se parte põe-se uma mais forte. É a função que define a ferramenta e é assim que a ciência tem sido forjada, com o propósito de construir uma representação correcta da realidade. Foi isso que a tornou, e ainda a está a tornar, no melhor método para seleccionar as peças correctas, encaixá-las nos sítios certos e remover os escombros de tudo o que não se aguenta. Naturalmente, isto assusta quem prefere casas de chocolate e faz de conta. Infelizmente para esses, a ciência não tem rival na produção de conhecimento acerca da realidade. Mas explicar porquê será tarefa para outros posts.

sábado, dezembro 24, 2016

Treta da semana (atrasada): igualdade e liberdade.

If liberty means anything at all, it means the right to tell people what they do not want to hear. (George Orwell)

Isabel Moreira escreveu que quem julga «que a liberdade de expressão não deve ter limites» não pode ser de esquerda porque, para a esquerda, «o princípio da liberdade articula-se com o princípio da igualdade» (1). Infelizmente, tem razão. A esquerda está cada vez mais dominada pela sanha quase religiosa de reprimir qualquer expressão incómoda. Moreira assegura-nos que «A esquerda não defende que se cale quem diz uma frase que desagrada, só se cala o que é crime». Mas é fácil perceber a vacuidade desta ressalva quando se considera exemplos como a alteração ao artigo 170º do código penal. Este agora pune com um ano de cadeia quem «importunar outra pessoa» com propostas de teor sexual. Não é preciso ameaçar, coagir ou sequer constranger. Basta importunar. Ao contrário do que Moreira alega, estão mesmo a criminalizar frases que desagradam.

Dois equívocos alimentam esta cruzada do politicamente correcto. O primeiro é a confusão entre a liberdade de exprimir opiniões e tudo o que se faça com palavras. É como limitar a liberdade de fazer bricolage porque não se quer deixar matar pessoas à martelada. Matar pessoas não é bricolage. E fazer denúncias falsas, cometer fraude, ameaçar ou coagir não é apenas exprimir uma opinião. Não é por usar o mesmo martelo que se deve pôr tudo no mesmo saco. O equívoco desfaz-se percebendo que a liberdade de expressão é a ausência de restrições impostas em função da opinião que se quer exprimir. Pode-se restringir por outras razões. Gritar “Fogo!” num recinto cheio de gente pode ser proibido por razões de segurança. Escrever um livro sobre a vida íntima de alguém pode ser proibido por respeito pela privacidade dessa pessoa. Mas não se justifica proibir a expressão de uma opinião apenas pela opinião em si.

O outro equívoco está no «princípio da igualdade». No seu sentido histórico, este é o princípio de que todos são iguais perante a lei. Mas esse princípio já está inscrito na nossa lei, é consensual em todo o espectro político e não justifica limitar a liberdade de expressão. Também não faz sentido exigir igualdade entre as pessoas porque somos todos diferentes. Cada indivíduo é único e diferente dos demais. E não existe um dever de tratarmos todos por igual. Nem Moreira tem o dever de me tratar como se eu fosse pai dela nem eu tenho o dever de a tratar como se fosse minha mulher. As relações humanas são discriminatórias por natureza e, na nossa esfera pessoal, todos temos o direito de discriminar pelas razões que quisermos. O único princípio de igualdade que faz sentido é o que fundamenta a igualdade perante a lei: todos devem ser igualmente livres, qualquer que seja a sua raça, sexo, orientação sexual ou opinião.

Este equívocos são fundamentais para esta retórica que tem capturado a esquerda. Por exemplo, «A esquerda, por definição, não absolutiza a liberdade em qualquer dimensão – e por isso também não o faz na liberdade de expressão – porque isso é a base da exploração dos mais fracos, das mulheres, dos pobres, dos negros». Mantendo uma noção confusa de liberdade de expressão, junta-se tudo no mesmo saco e até se faz parecer racional medidas como condenar alguém à prisão se a proposta pela qual importunou foi de teor sexual. Invoca-se a exploração das mulheres e a opressão dos mais fracos e, no meio da confusão, não se percebe onde uma coisa acaba e outra começa. Mas uma reflexão mais cuidada revela que o cu não é as calças. Explorar e oprimir não são o mesmo que exprimir opiniões e punir quem priva os outros da sua liberdade não exige punir quem diz o que pensa. Também é falsa a dicotomia proposta entre igualdade e liberdade de expressão. Pelo princípio da igualdade, todos devemos ser igualmente livres independentemente de quem somos ou do que pensamos. Daqui segue trivialmente que a liberdade de dizermos o que pensamos não deve depender daquilo que pensamos. E isso é a liberdade de expressão.

Escreve Moreira que «Se achas mesmo que a liberdade de expressão não deve ter limites e que não devemos ceder à autocontenção do discurso, és de direita, sabias?» A “autocontenção”, sendo auto, não me preocupa. Cada um que faça o que quiser da sua. O que me preocupa é que contenham a opinião dos outros. O princípio da igualdade não diz que temos de ser todos iguais, nem que temos de ter todos a mesma opinião nem que temos de gostar todos por igual de todos os outros. O princípio da igualdade é que não devemos negar liberdades em função daquilo que alguém seja ou pense. Isto vale para o homossexual e para o homófobo, para a feminista e para o machista, para os racistas, os liberais, os de esquerda e direita e até para a Isabel Moreira que acha que ninguém pode ser de esquerda se discordar dela. Todos devem ser igualmente livres de dizer o que pensam. Mas nenhum deve poder calar os outros.

Eu sou mais de esquerda do que de direita porque o valor que dou à liberdade não é compatível com a injustiça económica que a direita implicitamente apoia e defende. Mas esta confusão que Moreira propaga troca a liberdade por uma ideia absurda de igualdade que, na prática, só serve para perseguir os hereges. Muita gente vai nisto por arrasto, levada por esta retórica alarmista que pinta como opressão o respeito pela liberdade do outro. Mas quem lidera a moda deve fazê-lo de propósito e com consciência do mal que está a fazer. Parece-me difícil não perceber estes erros quando se pensa no assunto. O problema é que esta mentalidade de indignação, revolta e vitimização é uma forma fácil de ganhar apoio político. A tentação para se aproveitarem disto é demasiado grande.

1- Expresso, Sabias que és de direita?

sexta-feira, dezembro 23, 2016

Computadores e trabalhadores.

Em 1997, o Deep Blue derrotou Kasparov. Foi a primeira vez que um computador derrotou um mestre de Xadrez a este nível. Em 2016, o AlphaGo derrotou Lee Sedol, um dos melhores jogadores mundiais de Go. Outra estreia mas, para muitas pessoas, foi mais do mesmo. O Pedro Romano deve ser uma dessas pessoas. Acerca do efeito potencial da inteligência artificial no emprego, Romano afirma que podemos «excluir da nossa lista de preocupações prementes o risco de uma sociedade sem empregos» e que a tese de estarmos «a viver uma era de inovação nunca vista, que vai causar conturbações sociais enormes» é incompatível com a tese de que «estamos num período de estagnação» económica, porque «Se cada pessoa produz mais, então […] cada pessoa pode também consumir mais»(1). Está enganado.

O Deep Blue usava uma tabela de parâmetros criada pelos programadores para avaliar as jogadas. Os valores eram ajustados por análise estatística de jogos passados mas os factores a avaliar – controlar o centro, perder um cavalo e assim por diante – foram fixados pelos programadores. Por isso, o Deep Blue era um computador que jogava Xadrez. O AlphaGo avalia cada jogada com uma rede neuronal treinada com um conjunto de partidas de Go sem qualquer especificação prévia sobre o que é importante. O AlphaGo não é um computador programado para jogar Go. É um computador programado para aprender a partir de exemplos.

Tecnologicamente, isto é muito diferente do que aconteceu até agora. Romano admite que «em prazos mais curtos – e o ‘curto’, neste caso, pode bem ser 10 ou 20 anos – é perfeitamente possível que se notem efeitos no mercado laboral» como consequência de inovações tecnológicas. Mas diz ser errado supor «que há um número fixo de postos de trabalho [porque] a procura adicional gerada pelo aumento da produtividade [...] vai implicar um aumento do emprego noutros novos sectores.» Ou seja, 10 ou 20 anos depois de se automatizar uma tarefa, uma nova geração de trabalhadores aprende a desempenhar outras tarefas, ainda não automatizadas. Mas se dez anos era um prazo curto no tempo do Deep Blue, no tempo do AlphaGo é uma eternidade. A mesma tecnologia que permite ensinar* o computador a jogar Go também permite ensinar a conduzir um automóvel, a atender clientes no restaurante ou a cobrar produtos na caixa do supermercado. Os humanos demoram 10 a 20 anos a adaptar-se e aprender novas profissões. Os computadores demorarão 10 a 20 dias. Ou 10 a 20 horas. E isto em qualquer tarefa que possa ser aprendida a partir de exemplos.

Romano também erra na estimativa do efeito económico do aumento de produtividade. Até certo ponto, um aumento de produtividade leva a melhores ordenados, mais consumo e mais emprego. Mas só até certo ponto. Uma pessoa que ganha um milhão de euros por mês não consome o mesmo que mil pessoas a ganhar mil cada uma, e esse efeito já se faz sentir. Escreve Romano que «não há sinal visível de progresso tecnológico acelerado nas estatísticas. Por que digo isto? Porque a produtividade em praticamente todo o mundo desenvolvido tem vindo a cair ao longo das últimas décadas e está hoje mais ou menos estagnada.» Isto é exactamente o que se espera se Romano não tiver razão e a automatização crescente estiver mesmo a prejudicar esta economia baseada na venda de trabalho. O Facebook, por exemplo, tem cerca de mil milhões de utilizadores, dezassete mil milhões de dólares de negócio anual e apenas doze mil empregados. O sucesso do Facebook depende da selecção criteriosa daquilo que cada utilizador vê mas, sem aprendizagem automática, isto iria exigir centenas de milhares de empregados para monitorizar os feeds de tantos utilizadores. Nessas condições, essa gente toda a trabalhar para o Facebook daria um empurrão grande à economia. Mas a automatização permite dispensar esses empregados, trocar trabalho por capital e acumular lucros em offshores. É por isso que os indicadores económicos não reflectem o enorme sucesso de empresas de alta tecnologia como a Microsoft, Amazon, Apple, Google e Facebook. Os rendimentos milionários dos accionistas não têm o mesmo efeito que teriam repartidos em salários.

A aplicação desta tecnologia a novas áreas de negócio é apenas o início. A aplicação a negócios já estabelecidos, como a restauração, venda a retalho ou transportes, vai demorar um pouco mais porque exige investimento e, em alguns casos, legislação. Mas é inevitável e será num prazo muito mais curto do que os tais 10 a 20 anos. Economicamente, este aumento de produtividade vai concentrar ainda mais a riqueza e agravar a tendência, que já se sente, para uma economia com menos transacções e mais dívidas e manipulação financeira. Uma economia frágil, sem crescimento real e que beneficia uma minoria cada vez mais pequena. E, tecnologicamente, esta inovação não é igual ao que aconteceu no passado porque não se trata de automatizar uma ou outra tarefa específica. O que se automatizou foi a capacidade de aprender e isso permite substituir os trabalhadores humanos não só em quase tudo o que fazem agora mas também em quase tudo que possam vir a fazer.

Isto não é necessariamente uma coisa má. Mas exige repensar a economia e abandonar a ideia de que o rendimento da maioria tenha de vir da venda do trabalho. Porque, em breve, o trabalho humano deixará de ter valor comercial. Como o dinheiro é um veículo importante de informação, que cada um pode usar para indicar as suas preferências, teremos de continuar a distribuí-lo e a manter a economia a funcionar. Mas essa distribuição não poderá ser pela venda de trabalho.

* Termos como “ensinar” e “aprender” sugerem alguma consciência da parte de quem aprende. Mas, neste contexto, uso-os apenas conforme a definição operacional de Mitchell: um sistema aprende se melhorar o seu desempenho numa tarefa conforme lhe fornecemos exemplos.

1- Pedro Romano, Robôs a roubar empregos

quinta-feira, dezembro 22, 2016

Treta da semana (atrasada): O chato.

Estreei-me em discussões pela Internet em 1996, em listas de correio electrónico. Dez anos depois comecei este blog. O formato mudou mas o fundamental manteve-se: trocas de opiniões entre estranhos unidos pelo interesse em certos temas. Durante estes vinte anos de conversas fui criticado, troçado, e até insultado – se bem que este último somente na forma tentada – por pessoas que discordavam de mim. Faz parte do jogo, é saudável e estas reacções até servem como indicador da pontaria. Quanto mais perto do alvo mais ruidoso tende a ser o protesto.

Em 2010 meti-me também no Facebook e, esporadicamente, noutras “redes sociais”. Mas, nos primeiros anos, foi apenas para colar as ligações aos posts do blog. Só recentemente é que comecei a fazer no Facebook o que sempre tinha feito pela Internet, que é trocar opiniões sobre temas que me interessam. Estava à espera do mesmo resultado. Gente que concorda, gente que discorda, gente que barafusta, desconversa, insulta, enfim, toda a diversidade de reacções a que já me tinha habituado. O que não estava à espera era de ser bloqueado por ser chato.

Não foi surpreendente em todos os casos. Por devaneio de algum algoritmo fui temporariamente membro de um grupo que discutia a terrível conspiração dos «rastos químicos» e como “eles” usam aviões comerciais para espalhar produtos tóxicos com um propósito indeterminado mas consensualmente pérfido. Conhecendo a mentalidade dos conspiracionistas, não estranhei a rapidez com que fui banido. Mas, noutros casos, foi inesperado. Várias pessoas me bloquearam por divergências de opinião em discussões sobre ética, igualdade de direitos e liberdade de expressão, temas nos quais supunha que esta reacção fosse menos normal. Foi sempre quando discordavam de mim e sempre justificando o bloqueio por eu ser chato.

A explicação mais óbvia é a de que sou mesmo chato. Talvez o contexto das discussões anteriores tivesse disfarçado o defeito por restringir o diálogo a quem estava interessado. No Facebook, onde muita gente só quer pôr fotos do gato, receber likes ou ouvir um ámen, a minha insistência em dissecar alegações pode incomodar. Mas esta explicação, se bem que provavelmente correcta, parece-me incompleta. Se fosse só defeito meu esperava ser bloqueado numa diversidade maior de circunstâncias e não apenas quando discordo de certas pessoas nestes temas em particular.

Outro factor relevante pode ser a arquitectura do Facebook, que encoraja cada um a isolar-se de tudo o que o possa incomodar. Noutros meios, quando encontramos algo desagradável, mudamos de canal, pousamos a revista ou vamos a outro site na Internet. Mas isto não dá jeito a quem vende publicidade. Por isso, o Facebook tem mecanismos sofisticados que seleccionam o que agrada a cada visitante, maximizando o tempo de cada visita. O bloqueio dos chatos é parte integrante deste mecanismo e, no fundo, é uma extensão legítima do direito de não se dedicar atenção ao que não agrada. Infelizmente, a forma como isto está implementado esbate a diferença entre não dar atenção e reprimir.

Além dos efeitos nefastos do isolamento e enviesamento em meios como o Facebook, que muito longe de uma rede social são veículos de venda de publicidade, a opção de silenciar com um clique encoraja uma atitude repressora de quem se julga no direito de calar o que lhe desagrada. Um exemplo extremo disso aconteceu-me com o Daniel Cardoso, doutorado em Ciências da Comunicação e activista em «Poliamor e questões de género e LGBTQI.»(1). Afirmou Cardoso, numa troca de impressões no Facebook, que a minha postura é uma vergonha para a academia portuguesa e que a minha visibilidade é um atraso para os direitos humanos em Portugal. Como nunca sei se as conversas no Facebook são públicas, perguntei se isto era um desabafo privado ou se era uma posição que Cardoso assumia publicamente e, nesse caso, que eu poderia citar. A resposta foi que assumia publicamente o que dizia de mim mas que me proibia de o citar. Como é óbvio, não há qualquer legitimidade ética em proibir-me de citar o que dizem publicamente de mim, uma arrogância especialmente estranha vinda de alguém que diz valorizar uma boa postura académica. Respeitei esta proibição de Cardoso, parafraseando em vez de citar, apenas para dar este exemplo. Na prática, Cardoso não tem sequer poder para me coagir a respeitar o que ele manda. Mas isto é enquanto houver poucos Cardosos. Legítimo ou não, se houver muitos Cardosos, facilmente tornarão crime tudo aquilo que lhes desagrada, como já vão fazendo com piropos, “microagressões” ou “discursos de ódio”.

Esta vontade de silenciar os chatos é preocupante, e não apenas por eu ser um dos visados. É má ideia porque, se bem que a maioria do que os chatos dizem não sirva para nada, todos os contributos para o progresso social começam por incomodar. No início, são sempre propostos por chatos. O fim da escravatura, o voto para as mulheres, o casamento homossexual. São diamantes raros no meio de muito rebotalho mas se deitamos fora tudo o que chateia perdemos o mais precioso que temos, que é a capacidade de melhorar. Além disso, é injusto silenciar alguém só porque incomoda. Não me refiro ao botão de “desamigar”, que cada um deve ser livre de decidir onde gasta o seu tempo. Mas há cada vez mais confusão entre não querer ouvir e não deixar dizer. Se proliferarem os Cardosos vamos voltar ao tempo dos castigos por heresia, o que além de injusto é socialmente atrofiante. E, infelizmente, há muito capital político a tirar dessa cruzada. Mas isso fica para um próximo post.

1- Daniel Cardoso, Activismo