domingo, agosto 21, 2016

Treta da semana (atrasada): burkini.

A proibição do burkini em algumas praias francesas (1) suscitou uma onda de críticas por, alegadamente, atentar contra a liberdade das pessoas, ser racista e coisas assim. Se bem que me pareça uma medida pouco eficiente, exigindo demasiada fiscalização para tão pouco proveito, acho que as críticas falham o alvo por descurarem implicações importantes da vestimenta.

Por exemplo, Inês Ferreira Leite escreve que se «a proibição da burca ou burkini [fosse] questão de laicidade, então teríamos que proibir qualquer veste ostensivamente religiosa. Contudo, as freiras católicas não estão proibidas de usar o hábito [nem] os monges budistas [proibidos de usar] seus trajes laranjas»(2). Isto omite uma diferença importante. Mesmo entre os fiéis destas religiões, quem não quer ser freira nem monge veste-se como quiser. Mas se Leite for à Arábia Saudita, ao Irão ou ao Afeganistão, irá notar que no Islão as coisas são diferentes.

Leite propõe também que «não é proibindo manifestações religiosas que conseguimos domesticar uma religião organizada de modo a que esta possa conviver com a laicidade, o secularismo e a liberdade individual.» É verdade que proibir não serve para isto. Mas Leite está a assumir que o problema é com o Islão enquanto religião, no sentido moderno do termo. Hoje, pensamos na crença religiosa como algo pessoal, naturalmente separada do Estado e produto da liberdade de acreditar, ou não acreditar, no que cada um bem entender. Foi nisso que se transformou o cristianismo europeu, a muito custo e ao fim de séculos. Mas o Islão é uma religião à moda antiga. É uma mistura de crença religiosa e movimento político e a maioria dos muçulmanos não aceita a laicidade do Estado nem respeita a liberdade individual de crença. Uma católica vestida de freira mostra-me que devo ensinar a minha filha a pensar por si para não cair em contos do vigário. Mas uma muçulmana de niquab manifesta um ideal social e político que, se vingar, será imposto à minha filha e a todas as pessoas. É este o problema do burkini.

Também é popular alegar que proibições destas são islamofobia, discriminação e racismo. Racismo não é porque não depende da raça de ninguém. Mas é islamofobia e discriminação. No entanto, é justo discriminar contra quem quer coagir ou intimidar os outros. E se milhões de pessoas querem impor aos outros aquilo que julgam ser leis divinas, justifica-se ter medo. Eu tenho fobia do Islão como tenho fobia da dinastia Kim, da ditadura de Erdogan e do comunismo chinês. Não é por ser contra uma crença pessoal mas por ter medo que consigam impor essas coisas onde me faça diferença. Enquanto o Islão não se assumir consensualmente como opção pessoal permanecerá uma ideologia política perigosa, merecendo discriminação e fobia.

Finalmente, o argumento da liberdade. Leite aponta que é difícil dizer se as mulheres que andam de burka ou burkini o fazem por escolha livre, porque foram obrigadas ou porque foram condicionadas a vestir-se assim e traça um paralelo entre a burka e os saltos altos, operações plásticas e coisas que tais a que as mulheres se sujeitam por pressão social. Realmente, a “liberdade” de escolher tem que se lhe diga. Eu acho que uma saia deve ser mais confortável do que calças quando faz calor mas, sendo homem, sinto-me inibido de ir dar aulas de saia. Não sou muito livre nessa escolha. Mas entre a burka e os saltos altos há duas diferenças importantes. Primeiro, a mulher que usa saltos altos não o faz por convicção de ser um dever de todas as mulheres usar saltos altos. E, em segundo lugar, as mulheres que usam niquab, burkini e essas coisas fazem-no enganadas com a história de um deus que exige que se vistam assim. Há uma diferença fundamental entre escolher, mesmo que sob pressão, e ser vítima de fraude.

Eu não sei se é boa ideia proibir o burkini e até sou contra proibições que não sejam bem justificadas. Mas é errado apresentar este problema como uma ingerência na liberdade religiosa ou no direito de escolher o que se veste. O burkini foi claramente concebido para se distinguir dos fatos de mergulho que os surfistas usam e das toucas de borracha dos nadadores. Está feito para dizer “Islão!” a qualquer pessoa que olhe. E este Islão não é uma religião no sentido moderno de opção pessoal que cada um pode ter ou não ter conforme queira. É uma ideologia política medieval que executa apóstatas, prende ateus e castiga mulheres que não se vistam segundo as regras da religião. Por isso, proibir o burkini na praia é uma decisão que regula como se pode promover publicamente uma ideologia política. Para mais, contrária aos princípios que regem a nossa sociedade. É análogo a proibir que se ande na praia com suásticas na camisola ou com bandeiras a dizer que os homossexuais merecem o inferno. Se bem que proibir estas coisas seja ineficaz para combater tais ideologias, também não restringe nada que caiba inteiramente na esfera das liberdades pessoais e pode ser uma forma razoável de gerir um espaço público que a maioria das pessoas quer politicamente neutro. Não quer dizer que seja sensato proibir o burkini. Admito que até possa ser asneira. Mas é neste contexto da regulação do activismo político num espaço público que esta proibição deve ser criticada. Em vez de se fingir que, numa religião como o Islão, estes preceitos são vividos apenas como uma escolha pessoal.

1- The Guardian, Nice becomes latest French city to impose burkini ban
2- Capazes, Quão livre é ser livre?

segunda-feira, agosto 15, 2016

Treta da semana (atrasada): Expulsar o Quintino.

É quase unânime a condenação de espectáculos de tortura animal como as lutas de cães. Mas muitos consideram a tourada excepção porque é tradição e assim. É consensual que quem aluga quartos pode escolher os inquilinos. À volta de cada faculdade há dezenas de anúncios de quartos e residências para alugar apenas a raparigas. Ninguém se opõe. Mas quando numa pousada pediram aos homossexuais que não fizessem reservas foi imenso o clamor contra o crime hediondo de discriminação. Apesar dos ideais de igualdade e liberdade terem permitido um grande progresso social nos últimos séculos, ainda há muitos buracos por onde a indignação arbitrária se infiltra. O resultado pode ser caricato como a invasão de feministas a uma barbearia (1), mais sério como condenar à prisão trolhas que formulem propostas de teor sexual (mas não prostitutas, evidentemente) e até, se as coisas correm mesmo mal, meter um Khomeini ou Erdogan no poder. O caso Quintino Aires é mais ridículo que trágico mas ilustra como a arbitrariedade da indignação é inimiga da justiça.

Quintino Aires disse na TVI que «a maioria (dos ciganos) vive dos subsídios, ou trafica droga e não trabalha» (2). Para muitos, é inadmissível dizer tal coisa. Ou até pensá-la. Milhares assinaram uma petição que, inventando o crime opinião racista, exige «o afastamento definitivo deste senhor da TV»(3). Terá Aires passado os limites da liberdade de expressão?

Não. Em rigor, não há limites para a liberdade de expressão. Se queremos que todos sejam igualmente livres e tão livres quanto isso permita, temos de garantir a cada um o máximo de liberdade compatível com liberdades equivalentes para todos. É isto que resolve o problema de um acreditar que quem rejeita Jesus merece arder no inferno, outro achar que isso é disparate e um terceiro defender que os dois vão para o inferno porque não seguem Maomé. Qualquer um pode achar que as tatuagens são feias, que o sexo anal é nojento ou que o boxe é um desporto estúpido. Basta que ninguém pique, enfie ou esmurre contra a vontade do outro e, sobretudo, que não tente enviar terceiros para o inferno antes do tempo, para não haver problema em respeitar por igual a liberdade de todos acreditarem e exprimirem as suas crenças. Esta ideia é tão importante que a sua adopção ou rejeição é a principal diferença entre sociedades onde vale a pena viver e sociedades de onde mais vale a pena sair. É por isso que a liberdade de expressão, enquanto tal, não merece limites.

O problema é que dizer palavras tem outros efeitos além de exprimir uma ideia. São esses efeitos que podem violar liberdades importantes e justificar restrições. Por exemplo, exprimir a ideia de incendiar a embaixada de Israel, em abstracto, é perfeitamente legítimo. Fi-lo aqui agora mesmo sem infringir liberdade alguma. Mas gritar “vamos incendiar isto tudo!” durante uma manifestação neonazi à porta da embaixada já tem o efeito previsível de infringir liberdades mais importantes do que a liberdade de gritar isso, dessa forma, nessa altura. Portanto, se bem que a liberdade de exprimir ideias não mereça limite, a liberdade de agir pela palavra tem de ser limitada para respeitar o princípio de que todo devem ter as mesmas liberdades.

Sendo assim, é fácil perceber que o critério para julgar as palavras de Aires não pode ser o quanto desagrada a ideia subjacente. Deve ser apenas que efeito que as suas palavras possam ter em liberdades tão ou mais importantes que a liberdade dele de dizer o que pensa. E não parece haver tal efeito, porque a liberdade de não se sentir ofendido com o que outros dizem não se aproxima sequer, em importância, da liberdade de dizer o que se pensa mesmo que ofenda.

O mesmo não se pode dizer dos peticionários. Toda a gente tem o direito de dizer mal de Aires, de deixar de ver os programas onde ele comente e de dizer aos responsáveis pela programação que não verão mais televisão enquanto o Aires lá aparecer. Por sua vez, quem dirige a TVI tem o direito de não querer lá mais o Aires. Mas quando se organiza gente para exigir que se expulse o Quintino Aires da televisão, esse acto pretende ter um efeito que já interfere com as liberdades de terceiros. Com a liberdade do Quintino Aires aparecer na televisão, com a liberdade de quem dirige a TVI decidir quem convida para comentar e com a liberdade dos portugueses que gostem de ver o Quintino Aires na televisão e que, independentemente do seu mau gosto, também são gente e também merecem respeito.

A quem quer suspender os princípios da igualdade e liberdade neste caso porque o Quintino fez algo chocante, apresento este outro caso. Na Coreia do Sul, uma actriz de videojogos publicou uma foto vestindo uma camisola onde se lia «as raparigas não precisam de um príncipe». É uma camisola vendida por um grupo feminista polémico na Coreia e a foto levou a imensos protestos de jogadores exigindo que a actriz fosse despedida. Foi despedida (4).

Eu defendo que qualquer actriz tem o direito de usar qualquer camisola, que qualquer jogador tem o direito de jogar, ou não jogar, qualquer jogo por quaisquer razões, mesmo machistas, e que os produtores dos jogos têm o direito de contratar quem quiserem. Mas quando se exige algo não se está apenas a exprimir uma opinião. Mesmo quando essa exigência não tenha a força da lei, visa subordinar as liberdades à mera opinião de quem o exige. E isso pode ser tão injusto quanto incitar a turba a incendiar a embaixada. É isso que me parece imoral no que fizeram na Coreia e no que estão a tentar fazer ao Quintino. Não é pelo mérito ou demérito das opiniões de cada um, do Quintino, dos seus críticos, da actriz ou dos jogadores machistas. É imoral porque exigem que a sua opinião conte mais do que a liberdade dos outros.

1- Observador, Barbearia que proíbe entrada a mulheres invadida em protesto feminista
2- Sábado, Quintino Aires em polémica de "extrema gravidade" com etnia cigana
3- Petição Pública, Afastar Quintino Aires da TV
4- BBC, South Korea gaming: How a T-shirt cost an actress her job