domingo, julho 24, 2016

Treta da semana (atrasada): Foi Deus.

Treta da semana (atrasada): Foi Deus. Questionando os métodos de datação da geologia, o Mats relata que as pegadas humanas na praia de Nahoon foram datadas em 1964 pelo carbono 14 e que, mais tarde, outro método deu um resultado diferente (1). Mas não explica que a rocha é permeável ao carbono atmosférico e que só combinando técnicas recentes, como a datação por luminescência, é que se conseguiu uma estimativa fiável (2). O truque é apontar um erro já corrigido como prova de que a ciência é falível mas não reconhecer a enorme vantagem que há em corrigir erros. É um truque infantil e aborrecido mas, subjacente ao disparate, há um problema mais fundamental e interessante.

A compreensão explícita, aquela que podemos partilhar com outros, exige modelos. Exige alguma representação simbólica daquilo que queremos compreender, seja um mapa, um diagrama, expressões algébricas ou uma narrativa, por exemplo (3). O modelo do Mats diz que a praia de Nahoon, e tudo o resto, tem dez mil anos. O primeiro modelo dos geólogos apontava para trinta mil e o mais recente para cento e vinte mil anos. Apesar dos criacionismos serem mais pobres em detalhe e poder explicativo, tentam representar aspectos da realidade da mesma forma como a ciência o faz. Com modelos. A grande diferença surge quando os modelos falham.

A datação original da praia é inconsistente com os dados de que dispomos. O modelo criacionista também. Mas enquanto o Mats está convencido de que o seu livrinho é «a Infalível Palavra Daquele que estava lá»(1), a ciência é feita por quem admite que pode falhar e quer corrigir os erros que venha a cometer. Por isso, além de modelos, a ciência tem teorias.

Uma teoria não é uma mera descrição daquilo que é. É um esquema mais abstracto, mais abrangente, que relaciona parâmetros para descrever o que pode ser e o que é impossível. É maioritariamente contrafactual. A teoria da relatividade não diz como é o nosso sistema solar. Entre outras coisas, diz como podem ser os sistemas solares, dos quais o nosso é apenas um exemplo. A teoria da evolução não diz como surgiram os coelhos. Diz como umas espécies podem dar origem a outras espécies. E assim por diante. No sentido rigoroso de teoria como um esquema para gerar modelos, as teorias são algo que só a ciência tem. E são ferramentas muito poderosas para identificar e corrigir erros.

Quando confrontados com o problema da datação da praia, os geólogos não ficaram perdidos. Porque tinham teorias. Em vez de terem apenas um modelo de como as coisas são, tinham esse modelo inserido numa compreensão mais profunda daquilo que é possível e foi isso que permitiu corrigir o modelo. Desenvolveram técnicas melhores, recalcularam os parâmetros procuraram um outro ponto, mais adequado, no espaço de possibilidades que a teoria permitia. E mesmo quando as teorias falham, por não admitirem modelos correctos, essa procura pelas relações abstractas que separem o possível do impossível permite aos cientistas substituir as suas teorias sem guerras, cismas ou condenações por heresia. Se há erros, corrigem-se.

O criacionista não pode fazer isto porque não tem qualquer esquema orientador que lhe indique o que há de alterar. O livrinho só diz que o deus fez assim e assado. Se o livrinho erra, ou o criacionista finge que não errou ou finge que não é isso que está no livro. Os criacionistas evangélicos, como o Mats, seguem a primeira via. Teimam que o livrinho é a verdade infalível e que é a ciência que está errada. A ciência, dizem, serve para fazer reactores nucleares, transplantes de coração ou pôr sondas em Marte. Mas para saber a idade de uma rocha tem de ser com o livrinho porque que a ciência só dá erros. Os criacionistas católicos, por seu lado, preferem a alternativa. Dizem que o Génesis é uma metáfora, sem explicar que raio de metáfora é aquela, e que ciência é muito boa mas... (agitando as mãos) Deus, e tal… Não querendo um modelo errado mas também não tendo como o corrigir, acabam por fazer a barba só com a espuma. Pincelam, esfregam, enxaguam e deixam tudo na mesma.

Para podermos compreender a realidade precisamos de modelos. Mas não basta ter modelos. Não basta dizer “é assim”. É preciso manter esses modelos encaixados em teorias que distingam entre o que pode ser e o que não pode ser, e com detalhe suficiente para poder ajustar os modelos, corrigir erros e até substituir essas teorias se necessário. É por isto que o criacionismo religioso é fundamentalmente incompatível com a ciência. A hipótese de tudo ter sido criado por um ser inteligente, se bem que seja quase certamente falsa, até podia ser verdadeira. Mas a opção metodológica de ter um deus como explicação última estraga tudo.

Mesmo que o universo tivesse sido criado por um ser inteligente, ainda assim seria preciso teorias que descrevessem os limites e mecanismos dessa criação. Só neste contexto se consegue corrigir erros, ajustar modelos e compreender cada vez mais. Mas o criacionismo religioso não é compatível com isto*. Qualquer que seja o modelo proposto – um universo com dez mil anos, um Génesis metafórico ou o que calhar – o criacionismo religioso não pode apoiá-lo em teorias inteligíveis. Em vez disso, o fundamento do modelo tem de ser um deus misterioso que se revela aos sacerdotes e que os demais têm de aceitar pela fé. Senão ninguém compra a religião. Esta abordagem é a antítese da ciência. Não permite progresso no conhecimento, nem correcção de erros nem qualquer compreensão fundamentada. Permite apenas ao criacionista teimar no que é obviamente falso ou limitar-se a proferir inanidades.

* A teologia medieval parece ter reconhecido este problema e tentado resolvê-lo formulando teorias acerca daquilo que Deus poderia fazer, não poderia fazer ou teria de fazer. O resultado, no entanto, foi mais absurdo do que esclarecedor.

1- Mats, Os “métodos de datação” evolucionistas funcionam?
2- De 124 mil anos, mais coisa menos coisa: Jacobs, Roberts, 2009. Last Interglacial Age for aeolian and marine deposits and the Nahoon fossil human footprints, Southeast Coast of South Africa. Quaternary Geochronology, Volume 4, Issue 2, Pages 160–169
3- Para mais sobre isto, recomendo os livros Scientific Perspectivism (Giere) e Understanding Scientific Reasoning (Giere, Bickle e Mauldin).

3 comentários:

  1. Ludwig,

    Em geral concordo, mas iria mais longe.
    Sempre me intrigou qual a alternativa criacionista para os métodos de datação? A resposta é sempre 10 mil anos? Como é que eles calculam esse tempo? Como é que eles conseguem provar a um hindu (que usa conceitos de tempo muito longos - ver por exemplo aqui: Maha-Manvantara = 311.04 biliões de anos (1 bilião = 1 milhão de milhões), muito mais do que a idade estimada do Universo).
    O interesse está em que o criacionista diz "a Bíblia..." e o hindu ou um religioso de outra fé responde "nós não reconhecemos a Bíblia...".
    Sem um kernel para controlar os semáforos, temos dead lock certo. A ciência fornece esse controlo, mantendo o distânciamento das culturas e das crenças pessoais.

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  2. Ludwig,

    «Em vez disso, o fundamento do modelo tem de ser um deus misterioso que se revela aos sacerdotes e que os demais têm de aceitar pela fé. Senão ninguém compra a religião. Esta abordagem é a antítese da ciência. Não permite progresso no conhecimento, nem correcção de erros nem qualquer compreensão fundamentada.»

    Deus é misterioso, assumidamente misterioso pelos sacerdotes e profetas... Independentemente, porém, da utilização da religião como instrumento de manipulação e de opressão e de obscurantismo...não deixa de ser surpreendente e "incrível" que a mensagem desse Deus, contrariamente aos sacerdotes que se fazem passar por deuses, seja tão condenatória destes mesmos sacerdotes e tão claramente libertadora. E, no que toca a modelos de compreensão e de vida, não há apenas modelos científicos, que essa mensagem (Evangelhos) não é nem pretende ser. Há modelos de humanidade e de santidade, que a ciência, por seu turno, não pretende ser e que os Evangelhos nos propõem para a compreensão da pessoa do homem, de cada um de nós e de todos, não tanto como objetos de conhecimento, mas sobretudo como sujeitos de ação e de responsabilidade. Aqui, o homem é o centro, não como objeto de observação e de análise, mas como sujeito, agente, com valor humano, pessoal, mérito ou demérito, como critério e juiz e vítima e responsável...

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  3. os quatro evangelhos,foram escolhidos e impostos como religião de estado ptfascínora Konstantino,imperador romano,de origem croata. Escolhidos entre muitos.Este assassino de massas ,quep residiu ao concílio de Niceia sem sequer ser baptizado,está canonizado,pois então !

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