quinta-feira, julho 28, 2016

Treta da semana (atrasada): Sexualização.

Silvana Lima é a melhor surfista do Brasil e foi duas vezes vice-campeã do mundo. Apesar disso, como não é “bonitinha”, não consegue patrocínios (1). A sexualização feminina é muito comum. Enfatiza-se atributos que estimulam a atracção sexual no sexo oposto e usa-se esses atributos para avaliar as mulheres. As mini-saias das jogadoras de ténis, as poses sugestivas das raparigas nos anúncios e a atenção dispensada à roupa da ministra ilustram esta prática que muitos dizem ser machista. Ironicamente, o machismo está no diagnóstico.

A atracção sexual é um impulso irracional que nos chega, como muitos impulsos, pela eliminação gradual das linhagens com menos descendentes. A selecção natural. E o factor mais importante no sucesso reprodutivo de um homem é o acesso sexual exclusivo a mulheres férteis. Todos os outros factores só serão relevantes se o homem ultrapassar este primeiro obstáculo. Por isso, a atracção sexual masculina orienta-se por critérios relativamente simples. Por um lado, o aspecto físico da mulher, que permitia, até à cosmética moderna, avaliar a sua idade e fertilidade. Por outro lado, atributos e circunstâncias que maximizem a sua fidelidade sexual. Este aspecto é menos óbvio mas crucial na diferença entre o mero estímulo sexual e a atracção sexual. É a diferença entre ver pornografia e ficar apaixonado. Até recentemente, o homem só podia confiar que os filhos eram seus se garantisse que a mulher não tinha relações sexuais com outros homens. E isso é mais fácil se a mulher for dependente do homem, se for sua subordinada, precisar da sua protecção e essas coisas que inspiram tantos romances baratos.

Antecipando os comentários indignados, devo frisar que estes impulsos não são boa receita para uma vida feliz. Mas a evolução rege-se por uma álgebra simples: os nossos antepassados foram tendencialmente os que mais sucesso reprodutivo tiveram e nenhum dos nossos antepassados falhou na tarefa de se reproduzir. A felicidade, a realização pessoal e o prazer de uma relação duradoura entre iguais nunca entraram nessa equação. Não recomendo que se guiem por estes critérios mas é importante perceber a origem destes impulsos para compreender a sexualização das mulheres e por que Lima, apesar de ser campeã (ou por causa disso), é sexualmente menos atraente do que uma rapariga “bonitinha” que não faça nada de jeito.

Mas esta parte é trivial. Toda a gente sabe o que os homens procuram quando pensam com a extremidade errada. O que falta é fazer o mesmo exercício da perspectiva das mulheres. Constituem metade dos nossos antepassados e os seus critérios de selecção sexual foram tão importantes como os dos homens. Mas são diferentes. O acesso sexual exclusivo a homens férteis e jovens não contribui para o sucesso reprodutivo da mulher. Espermatozóides há muitos. O que a mulher tem de optimizar é o retorno do investimento, e custos de oportunidade, de nove meses de gravidez e uns anos de amamentação. Para isso, tem de obter os recursos necessários para criar os filhos e maximizar as vantagens que os seus filhos terão para sobreviver e reproduzir-se. Começando pelos genes do pai, que convém serem jeitosos. Isto exige avaliar o seu aspecto, da largura dos ombros à firmeza dos glúteos e simetria facial, mas também outros atributos. Destreza, sentido de humor, personalidade, capacidade de expressão e imensas coisas. Procurar um parceiro com genes bons é uma tarefa mais complexa do que procurar uma parceira jovem e fértil.

Além disso, os filhos também herdam os recursos e o estatuto dos pais. É isto que motiva os homens a investir nos filhos que julgam serem seus mas, como o sucesso reprodutivo dos homens é dominado pela necessidade de garantir o acesso sexual exclusivo a uma mulher fértil, tudo o resto fica em segundo plano nos seus impulsos de atracção sexual. A mulher, tendo pouco a ganhar em aturar vários homens e mais vantagem em convencer um a investir nos filhos dela, está sob pressão para encontrar o melhor*. Ele pesca à rede; ela com o arpão.

Por isso é que se vende cerveja com jovens bonitas de biquíni mas não se vende cápsulas de café com homens de cuecas. Para o café é preciso um George Clooney. Não é novo mas tem bons genes, estatuto e recursos. Considerando os critérios de atracção sexual das mulheres, percebe-se como toda a carreira do George Clooney contribuiu para o sexualizar. Os papeis de galã ou herói, a fama, os prémios, o dinheiro que ganhou, tudo isso acresce à sexualidade considerável dos seus genes e torna-o, enfim, num George Clooney.

O azar da Silvana Lima não foi as mulheres serem sexualizadas no desporto. São, mas, no desporto, os homens são-no ainda mais. A competição desportiva é toda ela um exercício de sexualização masculina. Competem para ver quem é melhor, mais rápido ou mais forte. Os vencedores ganham fama, fortuna e, naturalmente, por muito feios que sejam, namoradas lindíssimas. Para grande inveja dos outros homens, tão obcecados pelo desporto como as mulheres pela moda e cosmética. E exactamente pelas mesmas razões: as preferências sexuais do sexo oposto. O azar de Lima foi ser excelente em algo que sexualiza os homens.

A sexualização é ubíqua. É motor da moda, da publicidade, do desporto, do cinema, e até do capitalismo. O que leva tantos homens a dedicar tanto da sua vida a lutar por mais dinheiro do que conseguem gastar é evidente quando se vê as mulheres que casaram com o Donald Trump. A treta é ver a atracção sexual apenas da perspectiva masculina e julgar que só as mulheres são sexualizadas. As preferências sexuais das mulheres também contam e, para bem ou para mal, determinam muito do comportamento dos homens e do valor que a sociedade lhes atribui.

* Pode ir buscar bons genes a um lado e recursos e estatuto a outro. É uma estratégia mais comum do que muitos homens julgam. Mas tem riscos, porque essa opção também criou uma pressão selectiva nos homens para reagirem violentamente a essas situações. Por isso, em geral, a melhor estratégia reprodutiva para as mulheres tende a ser ter todos os filhos do mesmo pai.

1- DN, Melhor surfista do Brasil não arranja patrocínio: "Não sou bonitinha"

domingo, julho 24, 2016

Treta da semana (atrasada): Foi Deus.

Treta da semana (atrasada): Foi Deus. Questionando os métodos de datação da geologia, o Mats relata que as pegadas humanas na praia de Nahoon foram datadas em 1964 pelo carbono 14 e que, mais tarde, outro método deu um resultado diferente (1). Mas não explica que a rocha é permeável ao carbono atmosférico e que só combinando técnicas recentes, como a datação por luminescência, é que se conseguiu uma estimativa fiável (2). O truque é apontar um erro já corrigido como prova de que a ciência é falível mas não reconhecer a enorme vantagem que há em corrigir erros. É um truque infantil e aborrecido mas, subjacente ao disparate, há um problema mais fundamental e interessante.

A compreensão explícita, aquela que podemos partilhar com outros, exige modelos. Exige alguma representação simbólica daquilo que queremos compreender, seja um mapa, um diagrama, expressões algébricas ou uma narrativa, por exemplo (3). O modelo do Mats diz que a praia de Nahoon, e tudo o resto, tem dez mil anos. O primeiro modelo dos geólogos apontava para trinta mil e o mais recente para cento e vinte mil anos. Apesar dos criacionismos serem mais pobres em detalhe e poder explicativo, tentam representar aspectos da realidade da mesma forma como a ciência o faz. Com modelos. A grande diferença surge quando os modelos falham.

A datação original da praia é inconsistente com os dados de que dispomos. O modelo criacionista também. Mas enquanto o Mats está convencido de que o seu livrinho é «a Infalível Palavra Daquele que estava lá»(1), a ciência é feita por quem admite que pode falhar e quer corrigir os erros que venha a cometer. Por isso, além de modelos, a ciência tem teorias.

Uma teoria não é uma mera descrição daquilo que é. É um esquema mais abstracto, mais abrangente, que relaciona parâmetros para descrever o que pode ser e o que é impossível. É maioritariamente contrafactual. A teoria da relatividade não diz como é o nosso sistema solar. Entre outras coisas, diz como podem ser os sistemas solares, dos quais o nosso é apenas um exemplo. A teoria da evolução não diz como surgiram os coelhos. Diz como umas espécies podem dar origem a outras espécies. E assim por diante. No sentido rigoroso de teoria como um esquema para gerar modelos, as teorias são algo que só a ciência tem. E são ferramentas muito poderosas para identificar e corrigir erros.

Quando confrontados com o problema da datação da praia, os geólogos não ficaram perdidos. Porque tinham teorias. Em vez de terem apenas um modelo de como as coisas são, tinham esse modelo inserido numa compreensão mais profunda daquilo que é possível e foi isso que permitiu corrigir o modelo. Desenvolveram técnicas melhores, recalcularam os parâmetros procuraram um outro ponto, mais adequado, no espaço de possibilidades que a teoria permitia. E mesmo quando as teorias falham, por não admitirem modelos correctos, essa procura pelas relações abstractas que separem o possível do impossível permite aos cientistas substituir as suas teorias sem guerras, cismas ou condenações por heresia. Se há erros, corrigem-se.

O criacionista não pode fazer isto porque não tem qualquer esquema orientador que lhe indique o que há de alterar. O livrinho só diz que o deus fez assim e assado. Se o livrinho erra, ou o criacionista finge que não errou ou finge que não é isso que está no livro. Os criacionistas evangélicos, como o Mats, seguem a primeira via. Teimam que o livrinho é a verdade infalível e que é a ciência que está errada. A ciência, dizem, serve para fazer reactores nucleares, transplantes de coração ou pôr sondas em Marte. Mas para saber a idade de uma rocha tem de ser com o livrinho porque que a ciência só dá erros. Os criacionistas católicos, por seu lado, preferem a alternativa. Dizem que o Génesis é uma metáfora, sem explicar que raio de metáfora é aquela, e que ciência é muito boa mas... (agitando as mãos) Deus, e tal… Não querendo um modelo errado mas também não tendo como o corrigir, acabam por fazer a barba só com a espuma. Pincelam, esfregam, enxaguam e deixam tudo na mesma.

Para podermos compreender a realidade precisamos de modelos. Mas não basta ter modelos. Não basta dizer “é assim”. É preciso manter esses modelos encaixados em teorias que distingam entre o que pode ser e o que não pode ser, e com detalhe suficiente para poder ajustar os modelos, corrigir erros e até substituir essas teorias se necessário. É por isto que o criacionismo religioso é fundamentalmente incompatível com a ciência. A hipótese de tudo ter sido criado por um ser inteligente, se bem que seja quase certamente falsa, até podia ser verdadeira. Mas a opção metodológica de ter um deus como explicação última estraga tudo.

Mesmo que o universo tivesse sido criado por um ser inteligente, ainda assim seria preciso teorias que descrevessem os limites e mecanismos dessa criação. Só neste contexto se consegue corrigir erros, ajustar modelos e compreender cada vez mais. Mas o criacionismo religioso não é compatível com isto*. Qualquer que seja o modelo proposto – um universo com dez mil anos, um Génesis metafórico ou o que calhar – o criacionismo religioso não pode apoiá-lo em teorias inteligíveis. Em vez disso, o fundamento do modelo tem de ser um deus misterioso que se revela aos sacerdotes e que os demais têm de aceitar pela fé. Senão ninguém compra a religião. Esta abordagem é a antítese da ciência. Não permite progresso no conhecimento, nem correcção de erros nem qualquer compreensão fundamentada. Permite apenas ao criacionista teimar no que é obviamente falso ou limitar-se a proferir inanidades.

* A teologia medieval parece ter reconhecido este problema e tentado resolvê-lo formulando teorias acerca daquilo que Deus poderia fazer, não poderia fazer ou teria de fazer. O resultado, no entanto, foi mais absurdo do que esclarecedor.

1- Mats, Os “métodos de datação” evolucionistas funcionam?
2- De 124 mil anos, mais coisa menos coisa: Jacobs, Roberts, 2009. Last Interglacial Age for aeolian and marine deposits and the Nahoon fossil human footprints, Southeast Coast of South Africa. Quaternary Geochronology, Volume 4, Issue 2, Pages 160–169
3- Para mais sobre isto, recomendo os livros Scientific Perspectivism (Giere) e Understanding Scientific Reasoning (Giere, Bickle e Mauldin).

segunda-feira, julho 04, 2016

Treta da semana (atrasada): je suis...

Outro dia vi duas mulheres a beijarem-se e achei nojento. Não por serem mulheres, que até acho mais aprazível beijar mulheres do que homens. Mas uma delas estava a fumar e repugna-me beijar alguém com hálito de cinzeiro. Em defesa da minha tabacofobia, gostaria de dizer três coisas. Primeiro, não sou moralmente culpado por odiar tabaco. Talvez seja genético. Os genes para os receptores do olfacto variam de pessoa para pessoa e não tenho culpa se os que me calharam me fazem enjoar com este cheiro. Ou pode ser trauma de infância. Cresci numa casa de fumadores e numa época em que ninguém se ralava com quem não queria o fumo dos outros. Seja como for, o meu ódio pelo tabaco faz parte de mim não o posso desligar quando queira. Em segundo lugar, odiar tabaco e querer distância de quem fuma não me torna responsável se algum maluco matar fumadores. Odiar e matar não são a mesma coisa. E, terceiro, se bem que eu odeie o tabaco e outros gostem de fumar, podemos conviver perfeitamente uns com os outros. Basta que não fumem para cima de mim.

Esta última condição tem uma característica importante. O equilíbrio óptimo entre posições antagónicas não depende da opinião de ninguém nem exige que alguém mude a sua. Quer se deteste ou adore tabaco, o melhor é permitir que cada um fume quando quiser desde que não obrigue ninguém a fumar. Isto é tolerância. A tolerância não exige amar ou abdicar do ódio. Não requer simpatia, concordância, apoio ou sequer respeito, aplicando-se mesmo ao que se despreza ou odeia. A tolerância está no equilíbrio que melhor concilia as diferentes opiniões. Precisamente para que ninguém tenha de abdicar da sua. Dizem que os direitos de cada um acabam onde começam os direitos dos outros. O tolerante compreende que os direitos de cada um só devem acabar exactamente onde começam os dos outros. Mesmo que sejam exercidos para algo tão repugnante quanto beijar a boca de alguém que fuma.

Este princípio não serve só para a tabacofobia. Deve aplicar-se a tudo, incluindo coisas como a homofobia ou o racismo. Porque a tolerância não é só para aquilo que é fácil de aceitar. É para que todos possam amar ou odiar o que quiserem, exprimir o que pensam e viver de acordo com o que sentem com a maior liberdade que seja possível conceder sem privar outros de liberdades equivalentes. É um problema objectivo e não depende do que nos agrada ou repugna.

O que me motivou a escrever isto foi a reacção ao massacre homofóbico em Orlando. Acerca do massacre não me ocorre nada que não seja óbvio. Mas muita gente apontou o problema errado. Só para dar dois exemplos, no site da ILGA afirma-se que «o ódio que esteve na base do atentado é insuportável» e pedem que «denunciem sempre» quaisquer manifestações de ódio(1); e o Daniel Oliveira escreveu que «[a] homofobia é o mais poderoso dos ódios» e que é falso que sejamos «tolerantes com a homossexualidade.»(2) Isto é errado porque o problema não está no ódio nem a homofobia é necessariamente intolerância. Matar pessoas por ódio homofóbico é tão intolerável como matar pessoas por religião, dinheiro, política ou capricho. Seria fraco consolo para as vítimas e suas famílias descobrir que, afinal, não tinha sido a homofobia a motivar Omar Mateen. O intolerável nisto é matar pessoas. É isso que passa a fronteira entre os direitos de um e os direitos dos outros. O ódio, a fé, a ganância e a sede de poder, por muito repugnantes que sejam, não são intoleráveis porque estão aquém dessa linha. O que cada um sente é um direito seu. Faz parte daquilo que a tolerância obriga a aceitar, quer se goste quer não.

Eu não sou Charlie. Admiro a coragem daquela malta e acho bem que gozem com quem se leva demasiado a sério, mas não gosto daqueles bonecos nem aprecio aquelas piadas. Também não sou gay, nem LGBT, nem Orlando. Não meto o bedelho na vida sexual dos outros nem conheço essa cidade. Não gosto de discotecas, odeio tabaco e repugna-me ainda mais a homofobia. Mas isso sou eu. Um mero ponto numa gama enorme de possibilidades. A tolerância não tem nada que ver com isto. Não tem que ver com o que me agrada, com os amigos que tenho ou com as experiências que tive. Tolerância é reconhecer que os direitos de cada um só devem acabar onde começam os direitos dos outros. E nem um milímetro antes. A fronteira tem de ficar exactamente ali, por muito nojo que me meta o que alguns fazem do seu lado.

É pela tolerância que condeno o homicídio e sou contra a venda de fuzis de assalto. Isso passa a linha. E é também pela tolerância que oponho esta cruzada contra o ódio. A homofobia pode resultar em intolerância se o homofóbico violar os direitos dos outros. Mas isso acontece também com o fumador ou com quem odeia tabaco. Aquém da linha, a homofobia é um direito como qualquer outro. Combater o que as pessoas são e tentar homogeneizar os seus valores é intolerância, porque falta ao dever de respeitar a liberdade de cada um; é ineficaz, pela dificuldade de mudar o que as pessoas sentem; e é contraproducente porque o ódio perseguido torna-se violento com mais facilidade do que o ódio que se pode assumir e exprimir livremente. Se me obrigassem a viver com fumadores e a fingir que não me importava teriam de ter muito cuidado cada vez que acendessem um cigarro.

A violência homofóbica é intolerável e deve ser combatida. Mas deve ser combatida com tolerância. O objectivo deve ser a coexistência pacífica e não a extinção. Os homofóbicos devem poder ser, sentir, e exprimir-se como quiserem sujeitos apenas ao dever, que todos temos, de não negar tais liberdades aos outros. Reprimir a homofobia apenas substitui uma intolerância por outra e piora o que já está mal. Por muito atraente que pareça, é o caminho errado.

1- ILGA, Orlando: contra o medo e os silêncio, o nosso orgulho e liberdade
2- Expresso, Eu fui Charlie e não sou gay?