domingo, junho 05, 2016

Treta da semana (atrasada): discriminação.

As nomeações para os Óscares* causaram polémica por só haver nomeados brancos. Racismo, protestaram muitos. Mas há mais discriminação nesses galardões. A mediana de idades dos homens que ganham o Óscar de melhor actor principal é 42 anos. A das mulheres é 33 anos (1). O prémio de melhor realização foi quase sempre para homens e o de melhor guarda-roupa para mulheres (2). E, se bem que a discriminação seja frequente, o seu repúdio é inconsistente. Segregar os Óscares conforme a raça seria certamente condenado como discriminação. Mas ninguém protesta contra os “Black Movie Awards”(3) ou estranha que se segregue alguns Óscares pelo sexo. Pior ainda do que estas inconsistências é a forma e o alvo das medidas contra a discriminação que, muitas vezes, criam problemas piores do que aqueles que pretendem resolver por não distinguirem entre a discriminação legítima e a discriminação ilegítima.

Todos nós discriminamos e todos temos o direito de discriminar. Concordando ou não com os critérios de outrem, aceitamos ser legítimo recusar ter relações sexuais com mulheres ou não querer namorar com ateus, por exemplo. Se a escolha é legítima, então discriminar é um direito qualquer que seja o critério. Como ninguém tem o dever de tratar todos por igual, até um racista homofóbico e machista tem direito de o ser em tudo o que disser respeito à sua liberdade pessoal, de consciência e de expressão. Só quando passamos para aquilo que se impõe aos outros, como leis, regras sociais ou tradições, é que esta discriminação se torna ilegítima.

Esta distinção importa porque é um erro cada vez mais comum combater a discriminação legítima das opções pessoais com medidas discriminatórias que, por serem impostas, carecem da mesma legitimidade. Por exemplo, um evento académico nos EUA foi cancelado porque as regras da universidade não permitiam que os convidados para o painel fossem todos do mesmo sexo. Eram designers de jogos, uma profissão com poucas mulheres e, apesar do organizador ter convidado uma mulher, ela acabou por não poder ir (4). É um exemplo de discriminação ilegítima criada para contrariar o que era legítimo. Relativamente poucas mulheres se interessam por informática, ainda menos por design de jogos e pouquíssimas se dedicam o suficiente a isto para se tornarem famosas. O que é pena mas resulta de uma cascata de escolhas pessoais legítimas. Em contraste, não é legítimo proibir eventos académicos em função do sexo dos participantes. O sexo é um atributo pessoal que a universidade não deve regular nem usar como discriminante. Ao descurarem a diferença entre a discriminação legítima das escolhas pessoais e a discriminação ilegítima das regras impostas criaram um mal pior do que aquele que queriam corrigir.

Além disso, a discriminação não é determinante para a legitimidade de um acto. Se é legítimo escolher livremente em quem votamos ou com quem saímos para jantar, é legítimo escolher pelo atributo que nos der na gana, seja a cor da pele, seja o sexo ou a profissão. Se a escolha é livre então qualquer critério é legítimo. Por outro lado, sendo ilegítimo espancar alguém com um barrote, tanto faz que seja por racismo, fúria ou para roubar dinheiro porque o mal principal está em bater na vítima com o barrote. As opiniões pessoais do agressor são secundárias.

Descurar isto tem consequências práticas e éticas. É menos provável que a polícia agrida uma pessoa branca do que pessoas de outras raças ou etnias. A maioria das vítimas de homicídios conjugais é do sexo feminino. Estas diferenças estatísticas levam muitos a classificar estes problemas como racismo ou “violência de género”. Mas não é esse o problema importante, até porque ninguém aceitaria como solução satisfatória a mera redistribuição das vítimas de forma a eliminar as diferenças estatísticas. O que importa é a violência e os homicídios, independentemente da distribuição numérica das vítimas, e isto não se resolve regulando as opiniões. Resolve-se mudando o comportamento, muito mais sensível a pressões externas do que as opiniões, que são notoriamente difíceis de alterar. É mais fácil convencer um vegetariano a comer bifes de cão do que convencer um racista a deixar de o ser. Além disso, todos temos direito às nossas opiniões mesmo que sejam repugnantes. Portanto, não é o racismo ou o machismo que temos de combater. É o homicídio, a violência e as normas injustas.

O racismo é um disparate. O machismo e o fascismo também. Mas nisto são como o criacionismo, a homeopatia ou a astrologia. Estas coisas merecem que lhes apontem defeitos, que as critiquem e até que as ridicularizem. Mas sempre reconhecendo o direito que cada um tem de se guiar pelos critérios que quiser em tudo o que lhe seja legítimo fazer. Seja a escolher o namorado, a votar para os Óscares ou a fazer comentários no Twitter, não podemos condenar quem pensa diferente só por não pensar como nós. O que temos de impedir é que imponham esses disparates aos outros. É quando o criacionista quer impingir as suas tretas aos miúdos na escola, ou o neonazi quer expulsar todos os estrangeiros, que temos de dizer não. Pensem o que quiserem, mas portem-se como deve ser. É essa linha que devíamos defender em vez de nos escandalizarmos com o racismo dos Óscares, os anúncios chineses (5) ou a “violência de género” no cartaz dos X-Men (6). Esta reacção exagerada contra quem não fez mal algum além de exprimir ideias que nos repugnam é meio caminho andado para a imposição de medidas discriminatórias, essas sim ilegítimas, como criminalizar actos inócuos (7) ou exigir quotas em função de raça ou sexo (8). Além disso, guiarmo-nos pelo politicamente correcto nestas coisas impede-nos de opor aquilo que realmente merece oposição, que são os casos em que a discriminação é imposta em vez de ser mera opção pessoal. As organizações religiosas são um exemplo monstruoso disso, afectando muitos milhões de pessoas desde a mais tenra idade e impondo aos seus membros regras que seriam crime em qualquer outra organização (9). Mas com isso poucos se importam, preferindo o combate vigoroso contra as nomeações para os Óscares ou os anúncios de detergentes.

* Sim, estou muito atrasado com isto. Não tem sido um semestre fácil e já ando a mastigar este post há carradas de tempo....

1- Wikipedia, List of Academy Award Best Actor winners by age e List of Academy Award Best Actress winners by age.
2- Wikipedia, Academy Award for Best Director e Academy Award for Best Costume Design
3-Black Movie Awards
4- HeatStreet, USC Cancels ‘Legends of the Games Industry’ Event for Not Including Women
5- YouTube, Racist Chinese detergent brand Qiaobi (俏比) ad
6- Hollywood Reporter, Rose McGowan Calls Out ‘X-Men’ Billboard That Shows Mystique Being Strangled
7- Por exemplo, colar fita cola em retratos é um “crime de ódio”, simplesmente porque os retratos eram todos de professores negros: Defaced photos of black Harvard law professors investigated as hate crime
8- Expresso: Governo exige quotas para mulheres nas empresas cotadas (mas só nos cargos de gestão; trabalhos que acarretem perigo ou que sejam especialmente desagradáveis, como em minas, construção civil ou manutenção de esgotos, podem continuar dominados pelo sexo masculino.)
9- Segundo o artigo 240º do Código Penal, quem «desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação [… por causa de …] raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género […] ou que a encorajem [e quem] Participar na organização ou nas atividades referidas [...] ou lhes prestar assistência, incluindo o seu financiamento; é punido com pena de prisão de um a oito anos.» Parece-me difícil defender que nenhuma organização religiosa cá em Portugal seja culpada de encorajar discriminação pela religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género.

17 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Ludwig,

    «Além disso, todos temos direito às nossas opiniões mesmo que sejam repugnantes.»

    «Não há machado que corte a raiz ao pensamento porque é livre como o vento». O direito às opiniões não equivale ao direito a emiti-las de qualquer modo, sem qualquer consequência. O facto de serem incoercíveis as nossas ideias e pensamentos, repugnantes ou não, não quer dizer que não devamos combater o que não nos agrada, incluindo aqui, obviamente, o preconceito e o ódio e a ignorância. Combater o racismo e o machismo, dependendo do modo como se combate, é combater a ignorância, o preconceito e o ódio.

    «O racismo é um disparate. O machismo e o fascismo também. Mas nisto são como o criacionismo, a homeopatia ou a astrologia.»

    O Ludwig falha sempre no alvo. Tinha que vir a generalização do costume. Se acreditas em alguma coisa...que não seja ateísmo...
    O Ludwig parte dos pressupostos que lhe convêm, mas isso é a maior batota.
    Gostava que começasse por demonstrar, aparte as filosofias do costume, as vantagens de ser ateu, para o ateu e do ateu para os outros. E, por outro lado, as desvantagens de ser criacionista, para o criacionista e deste para os não criacionistas.

    «As organizações religiosas são um exemplo monstruoso disso, afectando muitos milhões de pessoas desde a mais tenra idade e impondo aos seus membros regras que seriam crime em qualquer outra organização (9). Mas com isso poucos se importam, preferindo o combate vigoroso contra as nomeações para os Óscares ou os anúncios de detergentes.»

    Os poucos que se importam, quem são? Os ateus? Venha daí a ética e respetiva fundamentação. Ficamos à espera. Afinal há esperança!

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    1. «as vantagens de ser ateu, para o ateu e do ateu para os outros»

      serem menos passíveis de se converterem a cultos suicidas e há estudos que demonstram que os ateus são mais altruístas, então essa é mais uma plausível vantagem.

      «E, por outro lado, as desvantagens de ser criacionista, para o criacionista e deste para os não criacionistas.» - viverem na ignorância (por escolha própria) e serem apontados como ignorantes e ridículos e uma piada até mesmo entre outros religiosos. Viverem com medo do fogo do inferno (alguns), etc. Além de que o extremismo religioso pode levar a problemas de saúde mental e até à impossibilidade de obter tratamento médico.

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    2. E pior ainda, pode levar a que os filhos que são praticamente obrigados a serem da mesma religião não obtenham tratamento médico. Quanto aos outros criacionistas, desinformam os outros e põem macaquinhos na cabeça de crianças inocentes.

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    3. MissAtheist32,

      Esses seriam alguns dos pontos que alguns religiosos refeririam aos ateus, como problema dos ateus.
      Não confundas criacionista com todo e qualquer indivíduo que diz ter uma religião, nem ateu com todo e qualquer indivíduo que se diz não crente.
      Ainda assim, o ateu também pensa "dentro da caixa do ateísmo".
      Até porque o ateísmo não tem a ver com a ciência, mormente com os esquemas modernos da astrofísica, geologia, cosmologia, biogenética, etc..
      Já quanto ao criacionismo (não confundir com religião, ou religiões), refere-se às origens do Universo e do Homem englobando vastos problemas de física, cosmogonia, filosofia, teologia e o próprio evolucionismo.
      Num plano científico, não há oposição entre o criacionismo e o evolucionismo, entendido este como o processo ou um dos modos da criação.

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    4. Os religiosos mais fundamentalistas são criacionistas (pode haver ou não excepções).
      Eu nem sequer falei em ciência relativamente ao ateísmo, mas sim, os ateus tendem a ser cientificamente letrados.
      Quanto a isto: «Esses seriam alguns dos pontos que alguns religiosos refeririam aos ateus, como problema dos ateus. » - Pois, mas sem qualquer base na realidade.

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    5. P.S. Eu falava dos criacionistas bíblicos, criacionistas propriamente ditos.

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    6. Quanto aos outros, estão a iludir-se a eles mesmos sem quaisquer evidências.

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  3. Presumo ser muito difícil a quem não aceita (ou a quem foi incutido que não é bom aceitar) o ateísmo, compreender o que realmente significa o 'pensar fora da caixa da religião'.

    Pessoalmente gostaria de ter um maior apreço pelos pensadores e decisores religiosos, observando as suas decisões em prol do livre pensamento, da liberdade de escolha e expressão...

    Como seria um mundo em que as religiões colocassem a possibilidade dos seus seguidores exercerem a sua fé de maneira semelhante à ciência, mais ou menos como quem formula uma hipótese perante uma dúvida, questão ou sugestão que lhes é feita por intermédio de simples evidências?

    "Hum, a evidência da adaptação e evolução das espécies é plausível? Vou investigar e tomar as minhas próprias conclusões." (É apenas um exemplo ficcionado para tentar ilustrar melhor a minha ideia.)

    Em vez de "Irmãos, não acreditem no que lá fora se diz! A única verdade de que necessitamos está escrita no nosso "livro sagrado" e não precisamos procurar mais!"

    Provavelmente, ninguém cala o líder religioso porque ele próprio sabe que pode falar o que muito bem entender ao abrigo da liberdade de expressão, mesmo que muitos dos seus seguidores sejam assim levados a agir segundo a forma influente de falar do líder.

    Quem se atreve a mandar calar (com força de lei) o líder religioso?

    No dia em que isso ocorrer, todos estaremos muito pior, mas ainda bem que nos é dado o direito de criticar e contrapor esse tipo de pensamento.

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    1. Vitor,

      Diz: "Quem se atreve a mandar calar (com força de lei) o líder religioso?"

      O caso é mais grave, quando temos líderes que incentivam os seus seguidores a desrespeitar a lei (e por isso nunca a podem levar a sério), como é o caso das testemunhas de Jeová. A ideia deles parece ser, que uma vez que o reino celeste está a chegar, não precisamos de poderes mundanos, logo, o melhor é não reconhecer as autoridades mundanas.

      Por outro lado, temos o caso dos muçulmanos, que acreditam que o Corão é a palavra ("ipsis verbis") de Deus, logo, o seu conteúdo é perfeito (um ser perfeito não pode gerar imperfeição), e por isso a lei corânica ("sharia") é perfeita e muito melhor que qualquer sistema de leis humano.

      Como fazer essa gente cumprir uma lei que não aceita? Eu não sei responder.

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  4. Não percebo bem para quem se dirige o post, mas alguns dos argumentos parecem um bocado ao lado. Primeiro, as criticas mais sólidas em relacao aos oscares não assentaram nessa argumentação superficial que apresentas, mas sim referenciam as nomeações como mais um reflexo de uma industria muito dominada por homens brancos e com pouquíssimas pessoas negras ou não-brancas em posicoes de destaque. Também essa comparação entre oscares e black movie awards... parece algo do calibre de: "entao e ninguem faz uma marcha pelo orgulho hetero?!" A mesma coisa para a linha de raciocínio de aplicar que a "discriminação a nivel pessoal é admissivel" quando falamos do evento que espelha o funcionamento de umas das indústrias culturais mais poderosas e influentes do mundo, e nao da votacao que o clube de cinéfilos do bairro organiza. E depois ha todo um nivel de complexidade sobre o racismo, o sexismo, e a forma como eles sao legitimados e propagados pelas estruras sociais e culturais, ou marcados por percepções erroneas que é ignorado em favor de uma especie de "é a opiniao das pessoas - preocupem-se é com os crimes" que só tem sido desmentido por tudo o que sao movimentos sociais dos ultimos 100 anos. mas essa também é a visao classica dos privilegiados, e nao muito distante das estruturas conservadoras e reaccionárias que a religião tem produzido ao longo dos tempos.

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  5. O que os biólogos observam aqui e agora é que os seres vivos estão gradualmente perder genes e a informação neles contida, ainda que isso permita a adaptação e a especiação dentro de um mesmo género.

    Colocam-se, por isso, importantes questões à teoria da evolução:

    1) Como é que as bactérias terão supostamente evoluído para bacteriologistas perdendo genes ao longo de milhões de anos?

    2) Como e de onde surgiram os genes iniciais?

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    1. Criacionista,

      A sua ignorância em relação aos mecanismos da evolução é gritante.
      Na primeira questão, parte do princípio que a evolução não prevê a criação de novos genes, o que é claramente errado (ver por exemplo aqui). Depois, ignora como a evolução funciona: o acumular de alterações produz o que vemos agora, não é necessário magia.

      Na segunda questão, usa a falácia do "deus dos buracos": porque não sabemos, logo Deus. Muito fraco. Podemos não ter a certeza de como foi, mas sabemos de vários processos para explicar a origem dos genes e das moléculas com autoreplicação, como o ADN e o primo ARN. É só pedir ao google. De qualquer forma, à velocidade com que a ciência tem evoluído, estou confiante que em breve seja mais um assunto arrumado: a ciência também evoluiu com o acumular de informação. E sim, por vezes é mais útil deixar cair o lastro, como ocorreu nos últimos 200 anos ao deixar a superstição para trás.

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    2. Mais um post relacionado com a duplicação de genes e a respectiva importância para a evolução: http://phys.org/news/2016-06-gene-crucial-evolution-eyesight.html

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    1. Criacionista,

      Eu confesso-me um optimista irrevogável :)
      Mas este link é uma lástima, ainda pensei ter lá algo de jeito. Fica para outra vez.
      Acha mesmo que usar o velhos argumentos, "a Bíblia, blá blá blá" e "a evolução é só uma teoria blá blá blá" consegue mesmo justificar alguma coisa. Muito mau para alguém que se tanto em conta.
      Em resumo: nada de novo na frente ocidental.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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