quinta-feira, dezembro 31, 2015

Contra o naturalismo, parte 2.

O Domingos Faria argumenta, resumidamente, que se evoluímos por processos naturais então é improvável que tenhamos a capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras. Mas, se Deus nos criou e quis que tivéssemos essa capacidade, então já é certo que assim seja. Por isso, defende o Domingos, devemos concluir que Deus existe (1). Além dos problemas que referi no outro post (2), esta abordagem comete um erro estatístico frequente entre os defensores do sobrenatural. Robin Collins, por exemplo, como explica o Pedro Galvão (3), argumenta que um universo com as condições necessárias para que surja a vida é muito mais provável se Deus existir do que se Deus não existir e que, como temos de preferir a hipótese com maior verosimilhança, então Deus existe. O erro aqui é que maximizar a verosimilhança serve apenas para seleccionar hipóteses dentro de um mesmo modelo mas não, em geral, para seleccionar os modelos em si, o que exige considerar também os seus graus de liberdade. Infelizmente, explicar este erro exige remexer em alguns detalhes pouco apetitosos de análise estatística, pelo que aviso o leitor que queira prosseguir que o faz por sua conta e risco.

Vamos supor que atirámos uma moeda ao ar vinte vezes e marcámos com um 1 cada vez que calhou cara e com um 0 cada vez que calhou coroa. O resultado foi:
0 1 1 1 0 1 0 0 0 1 1 1 1 0 1 1 1 1 1 1
Um modelo possível para este processo é que a moeda tem uma probabilidade p de calhar cara, e de 1-p de calhar coroa. Deste modelo, podemos seleccionar hipóteses atribuindo valores ao parâmetro p e, para cada valor de p, podemos calcular a probabilidade de obter a sequência observada. A probabilidade dos dados assumindo a hipótese é a verosimilhança da hipótese e, pelo princípio da máxima verosimilhança, escolhe-se o valor de p que maximiza essa probabilidade. Neste caso, será p=0,7, que é a proporção obtida de caras. No entanto, mesmo maximizando a verosimilhança, a hipótese de que p=0,7 dá uma probabilidade de apenas 1 em 202255 de se obter exactamente aquela sequência de caras e coroas. Apesar de ser a maior, é ainda assim muito pequena.

Conseguimos uma verosimilhança máxima maior do que esta se assumirmos que, a cada lançamento, um duende invisível altera por magia a probabilidade da moeda cair cara, fazendo-a ser 1 ou 0 conforme quiser que calhe cara ou coroa. Desta forma, o modelo terá um parâmetro ajustável para cada lançamento, p1, p2, …, p20, e a hipótese de máxima verosimilhança será a que tem pn = 1 para cada lançamento que calhou cara e pn = 0 para cada lançamento que calhou coroa. Isto dá uma verosimilhança máxima de 100%, uma certeza absoluta e duzentas mil vezes maior do que a da hipótese de máxima verosimilhança dada pelo modelo anterior. No entanto, e espero que não surpreenda o leitor, o modelo do duende não é estatisticamente preferível ao modelo “naturalista”.

Seleccionar entre modelos não é como seleccionar hipóteses dentro de um modelo. Modelos diferentes têm espaços paramétricos diferentes e isto tem de ser descontado. O modelo do duende, por exemplo, permite hipóteses com verosimilhança maior simplesmente porque tem mais parâmetros para ajustar aos dados. Por isso, as hipóteses de máxima verosimilhança não servem, por si, para seleccionar entre dois modelos diferentes. Temos de comparar todas as hipóteses integrando a probabilidade dos dados por todo o espaço de possibilidades dos parâmetros (4). E, se fizermos isto, a evidência dada pelos lançamentos observados até favorece o primeiro modelo, mesmo apesar da verosimilhança da melhor hipótese do segundo ser duzentas mil vezes maior do que a da melhor hipótese do primeiro*.

A aplicação correcta destes métodos de análise estatística não suporta os argumentos probabilísticos em favor da existência de Deus. O modelo do deus omnipotente tem um espaço de parâmetros com infinitos graus de liberdade. Isto permite ajustar-se com grande verosimilhança a tudo e mais um par de botas mas, ao integrar as probabilidades por esse espaço imenso de parâmetros, o valor cai para zero. Como Hume já tinha dito, também a estatística moderna reitera que um modelo com milagres é um modelo para deitar fora.

Além disso, estes argumentos acerca da probabilidade de Deus tiram da estatística conclusões que esta nem pode dar. No exemplo deste post, mesmo que o resultado favorecesse o segundo modelo, só se poderia concluir que era preciso um parâmetro por lançamento. Nada se poderia concluir acerca de ser um duende, uma fada, um extraterrestre, o vento, ultra-sons ou infinitas outras coisas. Esta é outra diferença entre os modelos naturalistas e os que assumem entidades sobrenaturais. Os modelos naturalistas vão até onde se justifica ir com os dados disponíveis. A moeda tem uma certa probabilidade de calhar cara. Porquê? Não sabemos. Isso teria de se ver com outras experiências que não apenas contando caras e coroas. A física assume certas constantes universais. Porquê esses valores e não outros? É uma pergunta interessante mas é trabalho em curso. Em contraste, os modelos sobrenaturais presumem sempre muito mais do que aquilo que é justificável. O Domingos, por exemplo, não só conclui que a nossa capacidade de formar crenças metafísicas verdadeiras vem especificamente do deus cristão, mas propõe até detalhes como «se Deus existe e se a história cristã é verdadeira, então também é provável que Deus tenha criado pessoas humanas e não-humanas com livre-arbítrio [e] algumas pessoas, como Satanás, rebelaram-se livremente contra Deus e a partir de então causaram grande parte dos males que existem no mundo» (1). O termo técnico para isto é overfitting.

PS: Agora vou cortar pimentos, vestir a mais pequena e passar o resto da noite a comer. Continuamos em 2016. Bom ano novo para todos.

O factor de Bayes é de 1,27, em favor do primeiro, mas integrei o primeiro numericamente na folha de cálculo porque não estive para ver se havia solução analítica para esse integral. Por isso este resultado depende de não me ter enganado nas contas. No entanto, o que interessa aqui é a ideia geral e não o valor exacto.

1- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico
2- Contra o naturalismo.
3- Pedro Galvão, A Probabilidade de Deus: O Argumento da Afinação Minuciosa
4- Neste post uso o método do factor de Bayes, assumindo uma distribuição a priori uniforme para os parâmetros. Mas há várias maneiras de seleccionar modelos tendo em conta este problema do sobreajustamento aos dados devido a excesso de graus de liberdade. Se tiverem interesse nisto, há na Wikipedia uma lista: Model Selection.

quarta-feira, dezembro 30, 2015

Treta da semana (atrasada): salário mínimo.

Durante quase toda a história da nossa espécie, a população acompanhou os recursos. Quanto mais alimentos havia, mais pessoas nasciam e a vida continuava igualmente difícil para todos. Por isso, quase todos tinham de trabalhar, salvo uns poucos nobres e padres que viviam à custa dos outros. Depois da revolução agrícola e industrial, e de progressos na medicina, o crescimento populacional foi abrandando e a comida deixou de faltar. Em alguns sítios, pelo menos. Mas continuava a ser preciso o trabalho de muita gente para garantir energia, habitação, transporte e outras coisas importantes. A crescente complexidade destas cadeias de produção tornou o dinheiro indispensável para informar, de forma distribuída, acerca do trabalho que era preciso fazer em cada sítio e momento. Alguns países experimentaram centralizar todas essas decisões e só deu porcaria. Nestas circunstâncias, o salário mínimo fazia sentido. Porque, sendo necessário que (praticamente) todos trabalhassem para garantir o conforto colectivo, e sendo preciso dinheiro para coordenar todo esse trabalho, era inevitável que (praticamente) todos ganhassem o que precisavam para viver pela venda do seu trabalho. Como seria injusto alguém fazer a sua parte e, ainda assim, não ganhar o suficiente para viver com dignidade, instituiu-se o salário mínimo. Todos teriam de trabalhar mas todos ganhariam pelo menos esse salário.

Hoje a situação é diferente. Em vez de se usar o dinheiro para distribuir a alocação do trabalho necessário, cada vez mais é a necessidade de trabalhar que é aproveitada por quem pode comprar trabalho para o vender com lucro, muitas vezes prejudicando a sociedade. Por exemplo, há dias fui assistir ao concerto do Panda e dos Caricas. A minha filha gostou mas, com quatro anos, quase tudo lhe agrada. Se não houvesse Panda, Caricas e a publicidade associada, facilmente arranjava uma coisa mais barata para a entreter. E os artistas que montam o espectáculo também poderiam criar algo de maior valor cultural se não lhes instrumentalizassem o talento como meio de gerar lucros. Infelizmente, os artistas precisam de trabalhar para viver e, por isso, os principais beneficiários daquele trabalho acabam por ser uns poucos accionistas com dinheiro suficiente para fazer dessa necessidade um negócio.

Esta tendência é crescente. Cada vez é preciso menos pessoas para assegurar tarefas importantes que outrora ocupavam muita gente, como a agricultura e a indústria. Cada vez há mais pessoas a trabalhar apenas para fazer passar dinheiro de clientes para patrões, em tarefas socialmente irrelevantes ou mesmo prejudiciais. E cada vez há mais pessoas que nem conseguem vender o seu trabalho porque não há quem o queira comprar. Nestas condições, o salário mínimo como o garante de uma vida digna não faz sentido. Pior ainda, distorce o mercado de trabalho beneficiando os que têm pouco à custa dos que não têm nada. Numa economia onde a oferta de trabalho ultrapassa a procura, aumentar o preço mínimo do trabalho aumenta inevitavelmente o desemprego.

O que é preciso é admitir que os tempos mudaram e que a ideia tradicional de que se tem de trabalhar para viver já não faz sentido. Não pode ser assim porque nem sequer há trabalho remunerável para todos e, mesmo do que há, uma boa parte não tem utilidade para a sociedade, servindo apenas os interesses de uns em detrimento de outros. Por isso, a solução mais razoável é garantir um rendimento universal estável, igual para todos e que não dependa de conseguirem vender o seu trabalho no mercado. É preciso um rendimento básico incondicional (1).

Esta abordagem alternativa resolveria muitos problemas, como o estigma social e desincentivo ao trabalho associado a medidas avulsas para subsidiar os pobres apenas enquanto se mantiverem pobres, ou a incerteza que impede muita gente de ser criativa e empreendedora, algo praticamente vedado a quem não tenha uma fonte garantida de rendimento (ou familiares ricos). Contribuía também para tornar o mercado de trabalho mais eficiente. Trabalhar a tempo inteiro por €500 é diferente de trabalhar um dia por semana por €100. Vender um dia por semana até pode ser bom para quebrar a monotonia e sempre se ganha €100. Vender a semana inteira por €500, ainda por cima se o trabalho não tiver interesse, é algo que só se faz por necessidade. Um rendimento básico universal permitiria também que mais pessoas se dedicassem a trabalho socialmente benéfico mesmo que não remunerado. Começando logo por educar os filhos como deve ser. Ao obrigar toda a gente a trabalhar a tempo inteiro e condenar à miséria quem não o faz estamos a hipotecar as gerações futuras em troca de nada ou menos ainda.

Há apenas dois obstáculos a transpor para implementar o RBI. O menor dos dois é o financiamento. Deixo esse para outro post. O maior é a mentalidade. A situação corrente beneficia quem tem dinheiro para fazer negócio com a compra e venda do trabalho dos outros e muita gente julga ser justo que todos, excepto os ricos, tenham de vender o seu trabalho para sobreviver. Mas não há nada de justo nisto. Assim que um número suficiente de pessoas perceber que o direito a uma vida digna não deve depender da venda dessa vida a terceiros, o problema menor, de financiar um rendimento básico incondicional, será rapidamente resolvido. E penso que estamos muito mais próximos de o conseguir do que estávamos há seis anos, quando escrevi sobre isto pela primeira vez (2).

1- Que já começa a ser experimentado em vários países. Podem ver mais sobre isto em www.rendimentobasico.pt ou no Facebook (este, infelizmente, exige cadastro com o Zuckerberg para aceder à sua web privada).
2- Mercado de trabalho.

sábado, dezembro 26, 2015

Contra o naturalismo.

O Domingos Faria adaptou um argumento de Plantinga contra o ateísmo e o naturalismo. Se aceitamos que não há nada de sobrenatural, afirma o Domingos, temos de aceitar que evoluímos por selecção natural. Mas a selecção natural não favorece a formação de crenças metafísicas verdadeiras. Aliás, «as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados [referiam] seres ou eventos sobrenaturais que dado o ateísmo são crenças falsas»(1). Portanto, nós não devemos ter um mecanismo fiável para formar crenças metafísicas verdadeiras. Como o ateísmo e o naturalismo são crenças metafísicas e quem as aceitar tem de concluir que não tem um mecanismo cognitivo fiável para formar crenças metafísicas verdadeiras, então «o ateísmo é autoderrotante e, por isso, irracional».

Este argumento tem muitas falhas. Aplica-se igualmente ao Cristianismo, porque «as crenças metafísicas da maioria dos nossos antepassados» também terão de ser consideradas falsas se assumirmos o Cristianismo, dando origem ao mesmo problema com a agravante de levar muita gente inocente ao inferno. Também é incorrecto presumir que o naturalismo exige a evolução de Darwin. Há alternativas igualmente naturalistas, como a de Lamarck, às quais o argumento do Domingos não se aplica. O Domingos também assume que pode generalizar para todas as “crenças metafísicas”. Não me parece que possa. Escreve que «Por crenças metafísicas entendo as crenças sobre a natureza última da realidade, como sustentar que existem entidades universais ou, pelo contrário, que existem apenas particulares; como defender o niilismo mereológico ou, pelo contrário, o universalismo mereológico; como acreditar no naturalismo metafísico ou no seu oposto, entre outros.»(2) Crenças sobre a realidade última das coisas são abordadas pelo ramo da metafísica a que se chamava filosofia natural e que agora chama ciência. Estas têm consequências práticas. E mesmo que a capacidade de formar crenças verdadeiras acerca do niilismo mereológico seja irrelevante para o comportamento, a capacidade de avaliar alegações como “o grande Tongatonga no céu manda que me dês o veado que caçaste” tem consequências relevantes para a selecção natural.

Mas estes problemas são pouco interessantes, pois derivam apenas da ênfase que o Domingos dá ao exercício retórico da argumentação em detrimento da capacidade de explicar. Os dois que foco a seguir são mais interessantes. O primeiro é um erro sobre a evolução de mecanismos cognitivos. O Domingos escreve que «se a evolução seleciona comportamentos adaptativos e se as crenças metafísicas em geral não tendem a causar qualquer comportamento [...] então a verdade ou falsidade das crenças metafísicas parece ser irrelevante ou invisível à seleção natural.»(2) Isto é falso porque “crenças metafísicas” inclui crenças com consequências comportamentais. Mas vou aceitar, por hipótese, que possa ser verdade para uma certa definição de “crença metafísica”. Mesmo que formar crenças metafísicas verdadeiras não tivesse sido directamente seleccionado durante a evolução, isto não exclui a possibilidade de ter havido pressão selectiva para formar os mecanismos que nos dão essa capacidade. Consideremos, por exemplo, a capacidade de construir aviões a jacto. É evidente que o sucesso reprodutivo dos nossos antepassados não esteve relacionado com a construção de aviões a jacto. Mas conseguimos construir aviões a jacto porque temos capacidades cognitivas mais gerais que, essas sim, estiveram sob pressão selectiva positiva. A capacidade de resolver problemas, criar representações simbólicas ou aprender por imitação, por exemplo. Esta última é especialmente relevante para o problema que o Domingos apresenta.

Um papagaio imita sons mapeando o que ouve para uma sequência de vocalizações. É um mecanismo neuronal complexo mas muito rígido. O que ouve é o que diz. Quando um antepassado nosso aprendia a caçar com o seu pai, também tinha de imitar. Mas o mecanismo de imitação dos humanos é muito diferente. O pai evitou pisar aqueles galhos secos, encostou-se àquela árvore uns minutos, deu uma volta maior para ficar de frente para o vento antes de se aproximar da presa e coçou o nariz quando passou perto daquela pedra branca. O filho, imitando, aprendeu a evitar os galhos secos e aproximar-se da presa contra o vento. Mas não aprendeu a coçar o nariz ao pé das pedras brancas nem a descansar só encostado àquela árvore. Porque, ao contrário do papagaio, o humano cria modelos mentais explicativos que permitem compreender e seleccionar os elementos a aprender. Foi assim que o filho conseguiu distinguir entre o que era relevante para a caça e o que não interessava. Este mecanismo, obviamente sob pressão evolutiva, favorece a formação de crenças verdadeiras porque são estas que tendem a dar as melhores explicações e os filtros mais úteis. Está longe de ser infalível, dependendo muito das circunstâncias e da informação disponível, mas é razoável assumir que, nas condições certas, temos uma capacidade cognitiva fiável para formar crenças verdadeiras até acerca de algumas questões que o Domingos considere metafísicas.

Finalmente, o Domingos ignora o trabalho que se faz em ciência para ultrapassar as limitações das nossas capacidades naturais. A evolução não nos dotou de mecanismos fiáveis para detectar bandas de absorção nos espectros de estrelas ou modelar reacções enzimáticas. Nós é que construímos, passo a passo e peça a peça, instrumentos de medição, métodos, sistemas de representação quantitativa e imensas outras coisas para colmatar as lacunas que a biologia deixou. Da invenção da linguagem à mecânica quântica, os mecanismos ao nosso dispor têm evoluído imenso, por um processo análogo, mas diferente, daquele da evolução biológica. É a combinação dessa maquinaria tecnológica e conceptual com os mecanismos cognitivos que a natureza criou que nos permite avaliar o mérito relativo das várias explicações e concluir, de forma fiável, que os sobrenaturalismos são um disparate e que o naturalismo é a melhor opção.

1- Domingos Faria, A irracionalidade do ateísmo.
2- Domingos Faria, Argumento contra o Naturalismo Metafísico

quinta-feira, dezembro 24, 2015

Treta da semana (atrasada): alternativa superior.

Foram submetidos à Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior 16 pedidos para acreditação de licenciaturas em medicinas alternativas. Isto é uma treta e estes cursos serão, como diz o David Marçal, «licenciaturas em banha da cobra.»(1) O David aponta também o perigo desta legislação dividir «as instituições de ensino entre as que se dispõem a ensinar falsa ciência e as que não»(2) cedam à pressão de angariar alunos sacrificando a sua integridade. Partilho desta posição e das preocupações do David. Mas, especialmente porque concordo com o que o David defende, tenho de obstar à forma como o justifica. Um problema, aliás, que já arrastamos há algum tempo.

O David descarta estas alternativas porque «não têm fundamento científico» e por «não conseguirem apresentar provas da sua eficácia e segurança.»(2) No debate com o acupunctor Duarte Ramada Curto, o David insiste também neste critério: as medicinas alternativas não são conhecimento científico porque não estão comprovadas (3). Esta justificação fragiliza a posição que defendemos e cria uma confusão acerca do que é a ciência. Em primeiro lugar, o argumento do David parece um argumento de autoridade porque apresenta como pressuposto que a validade das terapias depende de serem ou não científicas. Como a maioria das pessoas imagina que a ciência é coisa de nerds no laboratório e a ciência é exímia a minar autoridades, incluindo a sua própria, esta justificação não serve. É fácil contrapor que os cientistas também se enganam e que a ciência não é critério para tudo.

A insistência no «apresentar provas» ou nas «experiências científicas, descritas de modo transparente, para que vários grupos de investigação possam confirmar ou refutar os resultados» permite ao vendedor da banha de cobra resolver o problema apresentando também as suas “provas” e “experiências científicas”. É uma inevitabilidade estatística que, dado um número suficiente de experiências, alguma calhe suportar a tese desejada. Qualquer que seja a tese. Se for disparando até acertar no alvo não precisa pontaria. No debate, o David referiu as meta-análises à literatura, mas invocar isso perante a afirmação cabal da outra parte de que tem as provas e experiências científicas exigidas acaba por ser pouco persuasivo.

Acima de tudo, a distinção que o David propõe entre ciência e o resto dá uma impressão enganadora. Cada uma das alegadas alternativas, quer terapias como homeopatia ou acupunctura quer, num âmbito mais alargado, coisas como a teologia ou a astrologia, limita-se uma linha de inferências que parte de certas premissas e segue numa direcção bem definida. Os homeopatas assumem que a diluição melhora as propriedades do medicamento, os astrólogos assumem que os astros nos influenciam de certas formas, e assim por diante. Quando se rejeita isso por alegar não cumprirem critérios de cientificidade, dá-se a ideia de que a ciência é apenas mais uma linha destas que se distingue das restantes somente por ter outras premissas e seguir numa direcção diferente. E isto é falso.

A ciência é uma abordagem que fomos aperfeiçoando, e continuamos a aperfeiçoar, para seleccionar entre todas as premissas e direcções de inferência aquele sub-conjunto que encaixa melhor, explica melhor o que observamos e permite prever com mais fiabilidade o que ainda não observámos. Para isso, a ciência tem de abarcar todas as alternativas. A hipótese de que a diluição extrema melhora a qualidade terapêutica é cientificamente admissível, tal como a hipótese contrária, ou a hipótese de que a íris revela todas as doenças do corpo, que Vénus influencia o namoro, que há vida depois da morte ou que um ser inteligente criou todo o universo. A ciência tem de trabalhar com todas estas ideias, e muitas outras, porque o objectivo é encontrar a melhor rede consistente de explicações. Nisto, o que importa não é tanto as “provas” ou “experiências científicas” de cada uma, isoladamente, mas sim como encaixam no puzzle e como permitem construir uma representação detalhada e esclarecedora da realidade.

É incorrecto explicar que se rejeita tretas por não estarem provadas ou por falta de "experiências científicas". Há muitas conclusões cientificamente fundamentadas que dispensam tais coisas. Que o Pai Natal é fantasia, por exemplo, ou que Afonso Henriques não era extraterrestre. Mesmo as que se submete a experiências, são aceites ou rejeitadas pela consistência com outras explicações e pela preponderância das evidências. Não é o resultado de uma “experiência científica” que determina isto. Por exemplo, ainda que um teste de atribuição aleatória com dupla ocultação indicasse que a cura cármica da Maria Helena curava o cancro, justificava-se exigir mais trabalho de confirmação e compreensão dos mecanismos antes de receitar a terapia aos pacientes (4).

É um disparate reconhecer cursos superiores destas coisas. Serão mesmo licenciaturas em banha da cobra. Mas o problema não está na falta de provas ou de experiências científicas. Se fosse assim, só agora é que se começaria a falar sobre o bosão de Higgs nos cursos de física. O problema é que homeopatetices e aldrabapuncturas são ramos soltos que nem encaixam entre si nem são compatíveis com a árvore de conhecimento que estamos a cultivar. E neste corpo de conhecimento, consistente e muito mais vasto, há alternativas superiores a quaisquer “terapêuticas não convencionais”. É por isso, pelo que já sabemos de genética, microbiologia, química e medicina, que será um disparate formar terapeutas em especulações disjuntas acerca de energias bloqueadas, forças misteriosas e tretas afins em vez de lhes dar uma formação sólida e consistente com tudo o resto que já sabemos.

1- Expresso, Medicinas alternativas a caminho do ensino superior.
2- noticias magazine, Instituições de ensino inferior
3- Renascença, A medicina alternativa funciona ou é pseudociência?
4- Maria Helena, Cura Cármica

segunda-feira, dezembro 21, 2015

O terror da cópia.

Um leitor que assina Asterixco criticou o meu post sobre o bloqueio de sites porque defende a legitimidade e o respeito pelos monopólios dos autores (1). Os seus comentários ilustram bem como o apoio a este sistema assenta numa compreensão defeituosa do problema. Logo a começar pelo pseudónimo. Presumo que o leitor não tenha pago licença à Éditions Albert-René para divulgar uma criação derivada de obras detidas pela editora. E concordo que seria absurdo ter de o fazer. Mas, para concordarmos nisto, temos de abandonar a ideia de um “direito de autor” abstracto que justifique quaisquer restrições. Em vez disso, temos de reconhecer que o direito de gerir um negócio não permite violar direitos de terceiros. É por isso que o direito da editora a fazer negócio não pode impedir o leitor de assinar comentários com o pseudónimo que entender. Uma vez arrumado esse espantalho do “direito de autor” omnipotente, é fácil perceber também que o direito ao negócio não justifica restringir o acesso a sites na Web, proibir a troca de ficheiros ou impedir que as pessoas usem o seu equipamento, em suas casas, como bem entenderem.

Mas Asterixco levantou um ponto concreto que merece ser descascado em mais detalhe. «A pirataria [...] causa desemprego e precariedade […] por exemplo na área do áudio visual, já que em muitos casos a venda de cópias ou os direitos pela reprodução das mesmas é o único meio de subsistência.» Refere também um “estudo” da MPAA segundo o qual «só no Brasil se perderam 90 mil postos de trabalho devido à pirataria, para alem de 976 milhões de reais perdidos em impostos». Antes de mais, é preciso notar que estas contas são uma aldrabice. Essencialmente, estas estimativas equivalem a um restaurante contabilizar como prejuízo o valor comercial de todas as refeições que as pessoas do bairro comam em casa, usando depois esse número para estimar quantos postos de trabalho haveria se todas essas refeições fossem comidas no restaurante aos preços que o restaurante quisesse cobrar. Dá valores impressionantes mas que não querem dizer nada.

É preciso também apontar a circularidade do raciocínio aqui implícito. Copiar, por si, é um acto legítimo. É a copiar que aprendemos a falar, a vestir, a escrever, a cozinhar e até a criar. E prejudicar um negócio por não comprar é igualmente legítimo. É até parte fundamental do mercado livre e do capitalismo, porque favorecer quem oferece os melhores produtos ou serviços implica deixar falir o resto. Mas, neste caso, a perda de negócio é apresentada como uma injustiça, em vez de um direito do consumidor gastar o dinheiro noutras coisas, porque é causada pela “pirataria”, que se presume ser uma cópia ilegítima. No entanto, quando se tenta averiguar porque é que a cópia do CD é ilegítima quando a cópia de expressões algébricas, números, linguagem, receitas e imensas outras coisas é legítima, a justificação acaba por dar a volta e chegar ao ponto inicial. Estraga o negócio. Ou seja, é ilegítimo copiar só porque quem copia não compra e é ilegítimo não comprar só porque quem não compra copia. Afinal, a causa não causada não é Deus. É o copyright.

Mas vamos pôr de lado a aldrabice contabilística e a petição de princípio para focar o que realmente se passa. Se é fácil copiar então há menos disposição por parte do comprador para pagar pela cópia. Este problema ocorre sempre que a tecnologia facilita algo que anteriormente era difícil e que, por isso, perde valor como negócio. Aconteceu com quem vendia gelo ou água da fonte. Aconteceu com quem vendia legumes na rua, com sapateiros, e alfaiates, e amoladores. Aconteceu com quem vendia o seu trabalho na agricultura, quando lavrar, semear e colher era difícil. Só em Portugal, perdeu-se milhões de empregos na agricultura por causa da mecanização. Fazendo as contas como Asterixco propõe, a pior “pirataria” será lavrar a terra com o tractor.

O problema daqueles para quem «a venda de cópias ou os direitos pela reprodução das mesmas é o único meio de subsistência» é o mesmo problema que tantos enfrentaram quando a tecnologia tornou o seu produto extremamente barato. Um problema que nunca se resolveu com legislação ou proibições, apesar de se ter tentado*. Uma solução é fazerem como faz quem vende iogurtes. O iogurte também é fácil de copiar. Basta misturar em leite morno e esperar. Por isso, quem quer fazer negócio da venda do iogurte, vende-o suficientemente barato para não compensar o trabalho de copiar. É esta a razão do sucesso de serviços de streaming e subscrição ou de modelos de negócio como o YouTube. São convenientes e suficientemente baratos para valer a pena. Em alternativa, podem esquecer a abordagem de ganhar pela cópia – copiar é algo que todos podem fazer, pelo que é mau negócio – e passar a cobrar pelo que fazem e que mais ninguém faz. Pelo serviço de criar algo novo. Se são bons artistas e capazes de criar obras únicas que as pessoas desejem, cobrem por isso que a criatividade não se consegue copiar.

Seja como for, o negócio de vender cópias é apenas isso. Um negócio. Não é arte, não merece protecção e não confere direitos especiais. Asterixco diz que o mercado não funciona se «a oferta é copiada e entregue à borla à procura». É verdade. É por isso que a tabuada do ratinho já não dá grande lucro. Mas isso é um problema de mercado e não um problema legal. Proibir a partilha de ficheiros com os computadores para proteger a venda de cópias de músicas é tão absurdo como proibir as contas com o telemóvel para proteger a venda de tabuadas.

* Um exemplo disto foi o Red Flag Act de 1865, que obrigava os automóveis a circular sempre precedidos de um homem, a pé, empunhando uma bandeira vermelha. Julgavam os empresários dos caminhos de ferro que esta lei iria garantir-lhes os lucros no negócio dos transportes.

1- Treta da Semana: conduta errónea.

domingo, dezembro 20, 2015

Treta da semana (atrasada): mérito e rigor

Algumas justificações para manter os exames da quarta classe são tão vagas que nem são inteligíveis. Acusar que é facilitismo acabar com estes exames não diz nada se não se aponta o que é que se quer dificultar e qual a vantagem em dificultá-lo. Especialmente tratando-se da passagem entre a quarta classe e o preparatório, que não se esperaria difícil. Alegar que os exames contribuem para a qualidade do ensino também só faria sentido se explicassem como. Se o efeito for pressionar os professores a preparar melhor os alunos para os exames o resultado provável será análogo ao que a Volkswagen fez com os testes de emissões.

A tese de que os exames são um «instrumento aferidor e regulador»(1) é mais concreta mas pouco plausível. Segundo a Sociedade Portuguesa de Matemática, «É indispensável que continuem a existir instrumentos que permitam a aferição externa dos conhecimentos e capacidades»(2) e «se por [esses instrumentos] ocorrer alguma distorção no trabalho letivo é essa distorção que deve ser corrigida». Mas a única forma de corrigir a distorção causada pelos exames contarem para a nota é os exames não contarem para a nota. Substituí-los, por exemplo, por provas de aferição. Além disso, a capacidade de memorizar as repostas certas para os exames de Matemática ou Português não é importante para prever o sucesso da criança no ciclo preparatório. O mais importante é que aprenda na primária a comportar-se adequadamente nas aulas e a estudar, e é isso que deve contar para decidir se transita para o ciclo preparatório.

De entre as objecções à eliminação dos exames da quarta classe, há duas que me parecem especialmente más pela facilidade com que podem enganar. Uma é a de que os exames da quarta classe são uma forma justa de reconhecer o mérito, ou demérito, das crianças. Paulo Rangel até escreveu que «É hipócrita a ideia de que os exames são socialmente injustos» e que «Nem a vida nem a competição internacional – vinda dos países de leste ou do extremo oriente – se compadecem com esta “infantilização” do discurso» (3). Isto faz algum sentido com adultos. No entanto, crianças de nove anos não saem da quarta classe directamente para o mercado de trabalho; tratá-las como crianças não as infantiliza mais do que realmente já são; e o resultado que têm nos exames é produto quase exclusivo de factores que as crianças não controlam e pelos quais não são responsáveis. Por isso, é disparatado e injusto avaliar a aptidão da criança de nove anos para começar o ciclo preparatório com o mesmo tipo de testes com que se avalia quem quer entrar para a universidade ou concluir uma licenciatura.

Mas o pior chavão é o do rigor. O termo implica exactidão, que é a propriedade de uma medida ficar consistentemente próxima do valor que mede, coisa que os exames não fazem. São medidas precisas que fascinam os burocratas da certificação porque reduzem algo complexo, como o conhecimento, a um valor com ar sério. Este aluno teve 83% e o outro só 78%. Impressionante. Mas a precisão é enganadora. Bastava o exame ter sido feito noutro dia, avaliado por outra pessoa ou o enunciado ter sido outro para o resultado ser muito diferente.

Este é um problema que enfrento no final de cada semestre. Por exigência burocrática, tenho de avaliar cada aluno com um número inteiro de 0 a 20. Para isso, faço tabelas precisas com os critérios de avaliação de cada pergunta dos testes e cada item dos trabalhos. Tudo até às décimas. Mas apenas porque tenho de poder explicar a cada aluno de onde vem a nota e para garantir critérios uniformes. Isto não tem nada que ver com rigor porque medir o conhecimento do aluno com um só número exige uma data de simplificações arbitrárias para combinar os vários aspectos desse conhecimento. Por isso, aquele 16 poderia, com igual legitimidade, ter sido um 18 ou um 14 se eu tivesse ponderado os vários factores de forma diferente. Acresce a isto a incerteza da medição, que depende de muitos factores circunstanciais alheios ao conhecimento – uma dor de barriga no dia do exame pode valer mais do que qualquer pergunta no enunciado – e o resultado final é um número preciso mas sem rigor. E se é assim no ensino superior, em que se avalia adultos em disciplinas bem circunscritas, muito pior será na quarta classe com o objectivo principal de avaliar se a criança está pronta para o ciclo seguinte.

Para haver rigor na avaliação era preciso adequar a precisão do resultado à precisão do método e incluir margens de erro. Eu conseguiria fazer uma classificação rigorosa se separasse os alunos apenas em três categorias, como insuficiente, adequado e excelente, e pudesse indicar para cada um se tinha ou não confiança nessa classificação. Dessa forma, a minha avaliação corresponderia consistentemente ao nível de conhecimento do aluno, a menos dessa margem de confiança explícita. Quando me obrigam a dar um número de 0 a 20 e a descurar as margens de erro sacrificam o rigor em favor de uma precisão enganadora. É como medir uma coisa com a mão e dizer que tem 4,38 palmos de comprimento. Isso não é rigor. É aldrabice. E avaliar um aluno da quarta classe com notas à centésima é ainda pior.

É verdade que, se fizermos a média de um número grande de alunos, as margens de erro estreitam parcialmente pela eliminação dos erros aleatórios. Isto permite provas de aferição agregadas para monitorizar o progresso médio dos alunos, se bem que sempre enviesadas pelas decisões arbitrárias dos avaliadores. Seja como for, não é rigoroso avaliar indivíduos com a precisão que se tem nestes exames. Essas avaliações individuais absurdamente precisas são só rigor a fingir e só servem para uns burocratas fazerem gráficos bonitos e enganarem os leigos.

1 - DN, Bandeira dos exames é a primeira a cair
2- DN, Sociedade Portuguesa de Matemática contra fim dos exames de 4.º ano
3- Público, Rumo ao facilitismo: rapidamente e em força!

terça-feira, dezembro 15, 2015

Dia mundial da filosofia.

A propósito do dia mundial da filosofia, fui convidado a dar uma palestra no Colégio Campo de Flores no passado dia 20 de Novembro (1). Aqui está o vídeo:


Link do vídeo

Aproveito para agradecer à Rita Duarte, pelo convite, e ao Colégio Campo de Flores por me ter recebido lá pela segunda vez. Também peço desculpa pelo “satisfactório” no quinto slide. Depois de ter passado o semestre a fazer slides em Inglês, não devia ter prescindido do corrector ortográfico.

1- Colégio Campo de Flores, Dia Mundial da Filosofia

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Treta da semana (atrasada)*: conduta errónea.

Em Julho, com a assinatura de um memorando, provedores de acesso à Internet e entidades gestoras de monopólios sobre bens culturais criaram um procedimento para «agilizar o barramento do acesso a sites com conteúdos piratas»(1). Agilizou ignorando empecilhos como o artigo 32º da Constituição, segundo o qual «O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso» e «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação». Para evitar este processo moroso, o Movimento Cívico Anti-Pirataria (MAPiNET) substitui juízes, advogados, prossecução, defesa e julgamento e decide sozinho quais os sites criminosos. A sentença também é única, como convém a sistemas “ágeis” de justiça, e é imediatamente executada pelos ISP que impedem o acesso a esses sites. Para sempre e sem direito a contraditório.

Chamam a isto “bloquear os sites” mas é uma expressão enganadora. Na verdade, os sites não são bloqueados. O que cada ISP faz é sabotar o serviço de resolução de nomes de domínio, um serviço pago pelos seus clientes como parte do pacote de acesso à Internet. A pedido do MAPiNET, os ISP impedem que esse serviço forneça os endereços de sites como o “tugaanimado.net”, por exemplo, onde criminosos expõem ligações para desenhos animados em Português. Ao sabotar um serviço pelo qual são pagos, os ISP levam alguns clientes a optar por um serviço de resolução de nomes (DNS) gratuito e que não esteja sabotado. Como o da Google, por exemplo. Para isto basta alguns conhecimentos rudimentares (2) ou ter um primo informático. E toda gente tem um primo informático.

Confrontado com a embaraçosa facilidade com que se neutraliza a marosca, Carlos Eugénio, secretário geral do MAPiNET, acusa de «conduta errónea» quem usar um DNS alternativo. Mais errónea ainda, parece, do que sabotar o serviço pelo qual as pessoas pagam. Alega também que «contornar o bloqueio de sites com conteúdos piratas é como ultrapassar os 120 Km/H quando se vê o sinal de limite de velocidade na estrada»(3), mas há diferenças importantes. Em 2014, os acidentes de viação causaram trinta e nove mil feridos e quatrocentos e oitenta e dois mortos (4), com o excesso de velocidade sendo a causa principal dos acidentes mais graves. Não encontrei estatísticas sobre o número de mortos e feridos causados por visitas ao site “tugaanimado.net” mas suspeito que seja significativamente inferior. Além disso, o limite de velocidade foi fixado na lei por decisão dos nossos representantes eleitos, em conformidade com a Constituição, e o cumprimento destas regras é fiscalizado pela polícia. A recusa do meu ISP em me fornecer o endereço do “tugaanimado.net” só porque alguém no MAPiNET mandou não pretende resolver um problema tão grave nem goza da mesma legitimidade. É que, mesmo com o excesso de velocidade a matar centenas de pessoas e a deixar inválidas para a vida mais uns milhares todos os anos, não se inclui nos automóveis dispositivos que bloqueiem o acelerador ou desliguem a viatura se a velocidade máxima legal for ultrapassada. Assumimos que quem compra um carro que chega aos 240km/h é que se responsabiliza pelo que faz e exigimos que sejam os tribunais a decidir o que é ou não é crime. Para defender interesses de um punhado de comerciantes, Eugénio propõe medidas que nem para evitar centenas de mortes por ano se admite tomar. Isto é tão disparatado que até dá vontade de ir ao tugaanimado descarregar uma temporada inteira das Winx, em Português, só para o chatear.

O secretário geral do MAPiNET afirma também que «ao ‘esbarrarem’ com um aviso de que o site está bloqueado, só contorna as regras quem quer de facto violar a lei no que diz respeito aos direitos de autor». E com isto junta os dois problemas mais salientes de aplicar ao domínio digital um sistema de coutadas e monopólios criado para objectos físicos. Em primeiro lugar, o crime tem de se estender muito além do que foi originalmente pensado. Dantes, «violar a lei no que diz respeito aos direitos de autor» seria vender cassetes pirata na feira ou montar um emissor clandestino de TV. Hoje, é violação dos direitos de autor partilhar sequências de bits, emprestar ebooks com DRM, divulgar hiperligações ou até visitar sites contra a vontade do MAPiNET. Como no domínio digital não é possível restringir a cópia sem censura, porque copiar é simplesmente transmitir informação de um lado para o outro, qualquer acto trivial e corriqueiro pode ser uma violação. O que leva ao segundo problema, que motivou este memorando. A justiça, como a concebemos, não consegue lidar com “crimes” que praticamente toda a gente cometa quase todos os dias, muitos até sem saber. Em rigor, reencaminhar um email para várias pessoas sem autorização do autor viola os direitos exclusivos de distribuição da obra escrita e pode dar até três anos de cadeia. Como não pode haver um julgamento para cada site visitado, ficheiro partilhado ou email reencaminhado, é preciso “agilizar” a justiça dando aos comerciantes o poder de declarar criminoso quem lhes incomodar o negócio.

O secretário geral do MAPiNET «lamenta que as pessoas pensem que "a pirataria é um ato de menor importância”» Eu também. Porque aquilo a que chamam “pirataria” extravasa o âmbito do comércio de cópias, para o qual estes monopólios foram concebidos, e invade áreas tão importantes como a privacidade, a liberdade de trocar informação e os princípios de um Estado de direito, no qual culpa e castigo são determinados por juízes e não por vendedores a julgar em causa própria. A “pirataria” não é um acto de menor importância. É o exercício de direitos muito mais fundamentais e importantes do que o negócio dos mapinetas.

*Muito atrasada... nos últimos meses tenho tido pouco tempo para cuidar aqui do quintal. Mas, se quiserem saber com que tenho andado entretido, podem ver aqui como usar Python para automatizar processamento de dados ou aqui um pouco sobre aprendizagem automática (que, infelizmente para os meus alunos, só é automática depois de se aprender).

1- Sapo TEK, A pirataria online tem os dias contados em Portugal? Acordo facilita bloqueio de sites pelos operadores
2- Google developers, Configure your network settings to use Google Public DNS
3- SapoTEK, MAPiNET deixa duras críticas a todos os que contornam o bloqueio de sites piratas
4- Pordata, Acidentes de viação com vítimas, feridos e mortos – Continente