sexta-feira, julho 31, 2015

Demarcação.

A defesa do aborto como um direito incondicional exige distinguir, por algum critério, o feto que ainda não conta do feto que já tem direitos. Como os atributos que nos tornam pessoas – personalidade, auto-consciência, capacidade de raciocínio, memória biográfica e afins – só surgem gradualmente após o parto acaba por não haver critérios adequados que sirvam o propósito de colocar a fronteira à volta das dez semanas. Mas este é o problema menor. O erro principal nisto é avaliar o acto ao contrário, derivando direitos antes de deveres.

Dizer que eu tenho o direito de que não me matem em virtude de atributos como auto-consciência e afins é uma simplificação conveniente mas fundamentalmente errada. Se eu estiver fechado numa sala com um leão esfomeado eu não tenho qualquer direito de não ser morto porque falta ao leão o necessário para que seja eticamente imputável e tenha um dever moral de não me matar. Terei o direito de não ser morto se estiver num quarto com uma pessoa armada que, pelos seus atributos, já tem o dever de não me dar tiros. É desse dever que surge o meu direito de não ser morto. Ou seja, o direito à vida não advém automaticamente dos atributos do objecto em si, até porque valores não brotam espontaneamente de meros factos. O direito à vida, ou qualquer outro, deriva da avaliação ética daquele acto cometido por aquele agente sobre aquele sujeito naquelas condições. É por aí que temos de começar.

Para isso temos de considerar factores como as limitações cognitivas do agente, a sua liberdade para escolher entre as várias opções e a relação causal entre a sua escolha e os efeitos que dela resultarem. Vou assumir que os primeiros são constantes e focar apenas os efeitos e a sua relação causal com a decisão, dando alguns exemplos concretos. Vou chamar feto-antes ao feto que ainda não tem os atributos considerados necessários para ter direitos e feto-depois ao que já os tem, assumindo apenas que esses atributos têm algo que ver com a mente mas sem me preocupar com quais sejam em detalhe. O primeiro exemplo será o de retirar ou não os olhos a um feto-antes. O que está em causa são décadas futuras de cegueira ou visão, conforme a opção, e essa grande diferença será claramente efeito da decisão de retirar ou não os olhos. Por isso, avaliando o acto, concluímos que é eticamente inadmissível cegar um feto em qualquer estado de desenvolvimento, seja antes ou depois da linha de demarcação. O método inverso, de começar pelos atributos e direitos do feto, chega à mesma conclusão mas revela já um problema. Apesar do feto-antes não ter quaisquer direitos, se o cegarmos então o feto-depois surgirá cego. Como esse tem o direito de não ser cego não é admissível cegar o primeiro, pois tal afectaria o segundo. O estranho aqui é defender que não é legítimo cegar nenhum dos fetos ao mesmo tempo que se defende que só um deles tem o direito de não ser cego.

No caso do aborto as conclusões divergem. Se começarmos por avaliar o acto concluímos o mesmo que no caso anterior. Matar o feto-antes é inadmissível porque toda aquela vida que seria vivida se não o matássemos não será vivida se o matarmos, e isto claramente por causa da opção de o matar. Mas se começarmos pela atribuição de direitos podemos considerar que, ao contrário da cegueira, a morte só conta na altura em que o feto-antes é morto e como nunca surge sequer um feto com direitos então não há problema. Ou seja, apesar do feto-antes não poder ser cego porque o feto-depois tem o direito de não ser cego, o feto-antes pode ser morto mesmo que o feto-depois tenha o direito de não ser morto porque nunca chega a existir um feto com os atributos necessários para ter direitos.

Consideremos então a possibilidade de retirar ao feto-antes tudo aquilo que, nessa abordagem dos direitos, iria conceder o direito à vida. Seja auto-consciência, raciocínio, memória, o que for. Amputamos uma parte do cérebro em formação e garantimos que esse feto irá crescer fisicamente normal mas num estado vegetativo permanente, desprovido de qualquer atributo de pessoa. Será até uma fonte conveniente de órgãos para doação, se algum parente próximo precisar. Avaliando o acto, a conclusão é a mesma. Há uma diferença enorme entre as duas alternativas. Por um lado, uma vida plena e, por outro, uma vida em estado de vegetal. E essa diferença tem por causa principal a nossa decisão de obliterar parte do cérebro do feto. Por isso, é inadmissível fazer isto a qualquer feto. Mas se começarmos pelos atributos e direitos, concluímos que, tal como no caso do aborto, como nunca chega a surgir nada que possa ter direitos não se viola direitos de ninguém e o acto será admissível. Mesmo sabendo que aquele corpo de vinte anos está ali a babar-se virado para a parede em vez de no cinema com a namorada só porque decidimos amputar-lhe parte do cérebro no início do seu desenvolvimento. Eu proponho que isto está errado. Não proponho que esteja errado por causa deste exemplo, que serve só para ilustrar o problema. Proponho que está errado porque os direitos são reflexo de deveres que resultam da avaliação ética dos actos e, por isso, é um erro tentar avaliar os actos começando por atribuir ou negar direitos*. Os exemplos servem apenas para ilustrar o disparate que daí resulta.

Resta o problema dos espermatozóides. Muita gente acha necessário fundamentar a avaliação nos atributos do objecto da acção para evitar ter de proteger os gâmetas, que também têm o potencial de resultar numa vida consciente e com direitos. Além disto ser uma aldrabice, porque se vamos fundamentar a ética conforme o que é mais conveniente então mais vale deitarmos fora a ética e fazermos o que nos dá na gana, é desnecessário porque um factor importante para avaliar um acto é a relação causal entre a escolha e os seus efeitos. Já escrevi sobre isso antes** mas voltarei ao problema num próximo post.

*Um erro que não surge apenas nestes exemplos mas também, historicamente, em todos os casos de escravatura, racismo, genocídios, discriminação e afins, onde se começou igualmente por decidir que um certo grupo não tinha direitos porque lhe faltava certos atributos em vez de pensar nos actos em si e na sua legitimidade. Passa-se o mesmo agora com os direitos dos animais também.
**Várias vezes, mas aqui vai uma relativamente recente: Dawkins, a filosofia, e o aborto.

27 comentários:

  1. Ludwig,

    «Se eu estiver fechado numa sala com um leão esfomeado eu não tenho qualquer direito de não ser morto porque falta ao leão o necessário para que seja eticamente imputável e tenha um dever moral de não me matar.»

    O teu direito de não ser morto não tem a ver com a inimputabilidade do leão, nem com o dever moral de não matar. O teu direito de não ser morto não está condicionado aos deveres de outrem, nem, neste caso, aos do leão. O teu direito de não ser morto sobreleva toda e qualquer factualidade ou ponderação de interesses, por consubstanciar uma irredutível afirmação ontológica, que não cede, nem logicamente, nem teleologicamente, a qualquer necessidade. Tu tens o direito, por exemplo, de não seres morto por um raio, ou por uma doença. Diria que o teu direito de não seres morto, em última instância, é aquilo sem o que nada mais tem valor.
    O Direito sempre assim foi, agora como no tempo da escravatura e em toda a parte. Essa natureza (“fundante”, “fundamentante”, “universal”) do Direito confere-lhe a força e o poder axiológico-normativo que faltam tantas vezes à força e ao poder coercivo, político-militar. Aqueles radicam na consciência, enquanto estes derivam do poder de facto ou do direito positivo ditado pelas circunstâncias. Neste sentido, afirmar que o direito à vida é inviolável significa que é um direito que não está na disponibilidade de ninguém, nem dos poderes, nem do próprio. É a razão sem a qual não há razão. Do mesmo modo, não existe o direito de matar, nem o direito de não morrer. Não tens o direito de matar nem o direito de não morrer e ninguém, nem nenhum poder o tem e não o pode conferir.

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  2. Carlos,

    «Tu tens o direito, por exemplo, de não seres morto por um raio, ou por uma doença.»

    Parece-me uma afirmação incorrecta. Seja X um animal qualquer que, por suposição, não tem esse direito de não ser morto por um raio ou por uma doença que eu alegadamente tenho. Que diferença é que isso faz? Se não faz nenhuma então não há justificação qualquer para postularmos essa categoria.

    O que podemos dizer é que há gente com o dever de me tratar se eu estiver doente e que não tem o dever de tratar, por exemplo, um caracol ou uma barata se estiverem doentes. É isso que me dá mais direitos no SNS, por exemplo. Mas, novamente, são direitos que derivam (como todos) de deveres de terceiros.

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  3. Ludwig,

    Os direitos de que estamos a falar (e não são todos, como dizes) não derivam de deveres de terceiros. O que sucede é o inverso, os deveres derivam dos direitos. Esta diferença não é apenas uma questão de linguagem.
    E quanto ao caracol ou barata, se não está instituído um dever de os tratar, isso não é porque eles não tenham direitos.

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  4. Carlos,

    «os deveres derivam dos direitos»

    Isto não faz sentido. Se estás num sítio onde não há ninguém que tenha deveres para contigo -- uma ilha deserta, por exemplo -- não há nada a que tenhas direito. Nem comida, nem vida, nem antibióticos, nem segurança social, nem voto, nem auxílio do consulado, nem nacionalidade, nem educação nem coisa nenhuma. Só tens direitos na medida em que houver alguém que tenha deveres para contigo.

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  5. Ludwig,

    «Nem comida, nem vida, nem antibióticos, nem segurança social, nem voto, nem auxílio do consulado, nem nacionalidade, nem educação nem coisa nenhuma. Só tens direitos na medida em que houver alguém que tenha deveres para contigo.»

    Independentemente do sítio, ilha, prisão, ou cadeira elétrica, não perdes o direito à vida, porque ninguém to tira. Por exemplo, as vítimas de homicídio não perderam o direito à vida. Os outros direitos a que te referes são um corolário, algo constituído no desenvolvimento da ideia de Direito e são suscetíveis de ficarem por realizar, não porque inexistam, mas porque não se cumprem.

    A criança que nasce numa gruta de um deserto, ainda sem qualquer consciência do que a rodeia e do que está a acontecer, é titular de direitos, não por lhe serem reconhecidos (que não são a maior parte das vezes), nem por beneficiar deles, mas porque, além da vida (que lhe pode ser de facto negada) existe um património natural, universal, histórico, cultural, que ninguém tem o direito de lho negar (mas acontece com demasiada frequência).

    Se estamos mal de Direito e de direitos, pior andaríamos se para existirem alguém o houvesse de reconhecer.

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  6. «Independentemente do sítio, ilha, prisão, ou cadeira elétrica, não perdes o direito à vida, porque ninguém to tira. Por exemplo, as vítimas de homicídio não perderam o direito à vida.»

    É verdade que alguém que foi assassinado por outra pessoa tinha, nessas condições, direito a viver e esse direito foi violado. Mas isto apenas porque a pessoa que assassinou tinha o dever de não assassinar e desrespeitou esse seu dever. É esta a relação entre deveres e direitos que faz estes últimos derivarem dos primeiros.

    Mas a pessoa que escorrega nas escadas e parte o pescoço não teve violado o seu direito à vida. Simplesmente o direito à vida não é algo que se aplique a essa situação porque nessa situação não há da parte daquilo que causou a sua morte – pouco atrito, rigidez das escadas, força da gravidade, etc – qualquer dever de não atentar contra a vida da pessoa.

    O direito não é uma coisa. Não é uma substância, uma cor ou sabor. É simplesmente o dever visto do outro lado. O teu direito que eu não te mate é o meu dever de não te matar. O teu direito a assistência médica é o dever dos médicos te assistirem. O teu direito a não morreres electrocutado com um raio numa tempestade não existe porque não há dever nenhum do raio poupar a tua vida.

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    1. "O teu direito a não morreres electrocutado com um raio numa tempestade não existe porque não há dever nenhum do raio poupar a tua vida."

      Se houver uma pessoa que cria ou provoca os raios, existe o direito de não morrermos electrocutados.

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  7. Ludwig,

    insisto numa distinção que te tem passado ao lado: Direito e direitos. Fontes dos direitos. Não confundamos deveres de médicos ou de polícias ou de empreiteiros com dever de não matar. Neste último caso, aliás, eu faria uma consideração: o "não matarás" dos Dez Mandamentos não é um dever é um "não direito": não tens o direito de matar. Enquanto não tiveres claro na tua mente que deveres e direitos não são sempre duas faces da mesma moeda, vais divertir-te à porta do local onde decorre o espetáculo. A questão é ter ou não ter o direito de... Se não tens o direito de... Estás em apuros. A questão não é ter ou não ter o dever de...Onde fundamentas um dever?

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    1. Carlos,
      apresenta-nos um exemplo de um direito sem um dever.

      No caso de "não matarás", o que chamas de "não direito", trata-se de um dever moral (julgo que é no contexto moral ou ético que o que o Ludwig está a referir-se, por isso não percebo qual é a confusão).

      http://www.defnarede.com/d.html :
      "O dever moral de um agente é aquilo que ele tem a obrigação de fazer.", ex: "o dever de não mentir"

      http://www.defnarede.com/d.html :
      "Um direito é uma pretensão legítima a uma coisa. Se as pessoas têm direitos morais, então é errado privá-las daquilo a que elas têm direito para benefício dos outros."

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  8. Pedro Couto,

    «apresenta-nos um exemplo de um direito sem um dever»

    A questão do Ludwig é ao contrário.

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  9. Carlos,

    «Onde fundamentas um dever?»

    Deveres e direitos não são aspectos da realidade que possamos inferir por observação. Não são matéria de facto. São resultado de juízos de valor que têm de ser acerca de algo factual.

    Por isso é que defendo que o fundamental aqui – o ponto de partida – é a subjectividade. Que há seres que sentem, têm consciência do que lhes acontece ou até de que existem é algo que podemos concluir pelas evidências e por inferência à melhor explicação, sem juízos de valor. É isso que permite o juízo de valor mais básico da ética que é o de que o que eu faço deve ter em consideração os efeitos que eu causo no que outros sentem.

    É desse juízo de valor que surgem conclusões acerca do que devo ou não fazer – ou seja, dos meus deveres – e são esses de veres que, quando vistos do outro lado, constituem direitos.

    E tu, onde é que tu fundamentas deveres e direitos? Achas que juízos de valor brotam espontaneamente da natureza?

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  10. Isto é tudo muito engraçado mas nenhum destes argumentos é aplicável neste caso. As tretas pseudo filosóficas só começam a fazer mais ou menos sentido quando estamos efetivamente a falar de pessoas. Não estamos a falar de pessoas. De todo.

    Direitos e deveres aplicam-se a pessoas, não a coisas que poderiam ser pessoas mas que por acaso não são. O facto de não serem mesmo pessoas parece estar a escapar a muita boa gente. Estamos a falar de uma coisa que, no limite, às 10 semanas, tem tipo 3 centímetros e é incapaz de processar dor.

    Gente cientista (com cursos e tudo!) fez os estudos e a avaliou a coisa e arranjou o limite razoável das 10 semanas. Não se trata de os fetos se transformarem magicamente em pessoas quando chegamos às 11 semanas, trata-se de uma aproximação (tal como os adolescentes não se tornam magicamente adultos quando chegam aos 18 anos) que se tem revelado muito útil e mais do que razoável.

    É porque, se vamos dizer que uma mulher que está grávida há uma semana está a carregar algo que é moralmente equivalente a um organismo completamente formado, então temos obrigatoriamente que considerar moralmente condenável todo um outro monte de coisas. Temos que começar a analisar todo e qualquer cluster de células e averiguar exatamente qual é a sua posição no mundo (o que inclui os gâmetas, embora gostem de fingir que não).

    Depois, a recusa em aceitar o aborto como parte da solução de alguns problemas sociais faz mais mal do que bem. Num mundo ideal o aborto não é particularmente relevante a não ser para corrigir alguma infelicidade estatística, mas nós não vivemos num mundo ideal. As taxas moderadoras e as novas medidas vão afetar desproporcionalmente as mulheres mais pobres. As mulheres que tiveram menos acesso à educação serão aquelas que fazem parte de uma fação da população mais pobre e, consequentemente, estarão mais em risco de ter uma gravidez indesejada. Por que é que é melhor que estas mulheres tenham crianças? Se, apesar de tudo, as decidirem criar provavelmente irão faze-lo sozinhas e com a despesa acrescida de criar uma criança nunca vão conseguir quebrar o ciclo de pobreza e qualquer filho que tenha vai herdar tudo isso. Se decidir dar a criança para adoção mesmo assim terá que passar por 9 meses de pressão física e psicológica, sendo que pode ter que ficar de baixa e contrair um monte de problemas de saúde engraçados. Para não falar dos problemas que pode enfrentar no local de trabalho.

    Por que é que isto é melhor do que simplesmente abortar? Não é. Está provado que não é e insistir nisto mesmo depois do referendo e de se ter visto que não é nada de especial, que o mundo ainda gira, é só uma prova clara de que as mulheres terem completo controlo da sua própria saúde reprodutiva deixa muita gente desconfortável.

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  11. Misandra,

    «As tretas pseudo filosóficas só começam a fazer mais ou menos sentido quando estamos efetivamente a falar de pessoas. Não estamos a falar de pessoas. De todo. »

    Se eu regar um gato com gasolina e lhe pegar fogo, estou a cometer um acto eticamente condenável ou não? E o gato é pessoa?

    Já agora, o que acha da ideia de retirar parte do cérebro aos fetos para que eles nunca cheguem a sentir nada nem ser pessoas, e assim criar corpos humanos para doação de órgãos. Parece-lhe bem?

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  12. Os gatos têm sistemas nervosos complexos e são capazes de processar dor. Usei pessoa porque estamos a falar de fetos de pessoa. Um feto de gato também não é um gato no mesmo sentido que se eu arrancar uma semente a pontapé não estou a deitar a cortar uma árvore.

    Retirar parte do cérebro aos fetos nem sequer faz sentido neste contexto, estamos a falar de querer levar a criança a termo versus não querer. Se querem levar a criança termo então faz-se os possíveis para que seja saudável, se não acabou aí e pronto. Não há mais discussão a ter aqui sobre isso, independentemente das piruetas retóricas que se queira dar à coisa. Para além disso, nem sequer tenho a certeza de que às 10 semanas os fetos tenham as estruturas no cérebro que lhes quer tirar (o que só torna a questão ainda mais hilariante).

    Agora, se estamos a falar se é moralmente condenável usar fetos em pesquisa científica (que inclui fazer um monte de coisas desagradáveis) então a resposta é a mesma: não é.

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  13. Ludwig,

    «Deveres e direitos não são aspectos da realidade que possamos inferir por observação. Não são matéria de facto. São resultado de juízos de valor que têm de ser acerca de algo factual.»

    Falas de cor. Um dos problemas do nosso tempo, penso eu, é o problema de "as coisas" entrarem pelos sentidos (mormente olhos e ouvidos) e sairem pela boca (ou pela ponta dos dedos no teclado), sem passarem pelo cérebro. Não é um ataque pessoal. Ninguém está a salvo desta limitação da natureza humana. Todos ganharemos se lutarmos contra esta epidemia (poluição?).

    A tua noção de realidade deixa de fora realidades que não podemos omitir. O que é realidade para ti, e mantens-te fidedigno quanto a isso, é muito restritivo. Direitos e deveres não são realidades? E se fossem apenas aspetos da realidade, não os inferimos por observação? Não são matéria de facto? São matéria de quê?

    São juízos de valor? Que são juízos de valor?

    Direitos e deveres não são juízos de valor. Os próprios juízos que resultam da aplicação de critérios jurídicos, não são juízos de valor. São subsunções de factos às normas (gerais e abstratas).

    «É isso que permite o juízo de valor mais básico da ética que é o de que o que eu faço deve ter em consideração os efeitos que eu causo no que outros sentem.»

    Não é um juízo de valor é um corolário lógico: os meus direitos relativamente aos outros têm correspetivos direitos dos outros. Se não é corolário lógico é o quê? Ninguém aceitará racional e esclarecidamente que uma pessoa defina direitos para si que, em geral e abstrato, não sejam ou não possam ser direitos para os outros.
    O princípio da igualdade é incontornável e não é um juízo de valor.

    «É desse juízo de valor que surgem conclusões acerca do que devo ou não fazer – ou seja, dos meus deveres – e são esses de veres que, quando vistos do outro lado, constituem direitos.»

    O que tu deves ou não fazer, tem muitas facetas, religiosas, morais, jurídicas... Pode haver conflito de deveres religiosos, morais e jurídicos. Mas, no fim, o que deves ou não fazer, és tu quem decide, ponderando vantagens e inconvenientes de vária ordem. Isto não corresponde necessariamente a direitos da outra parte.

    O teu sentido do dever pode não coincidir, nem de perto, com o teu sentido dos teus direitos, mormente deveres religiosos, morais e do trato social.
    Isso não impede que, da panóplia de deveres religiosos, morais e do trato social, possas "escolher". O mesmo não se aplica aos deveres jurídicos.

    «E tu, onde é que tu fundamentas deveres e direitos? Achas que juízos de valor brotam espontaneamente da natureza?»

    Se juízos de valor brotam da natureza? Certamente, da natureza humana. Espontaneamente? Um pouco.
    Mas para mim, a questão não é essa, como já referi.

    Os deveres e direitos, em geral e abstrato, têm muitos fundamentos e muitas fontes.
    No plano jurídico, que normalmente é o que interessa mais, a historicidade das normas traduz-se numa dinâmica e numa dialética entre o direito constituído e o direito constituendo.
    Evidentemente que, por razões de segurança e de certeza jurídica, há um direito constituído em cada momento (que pode ser diferente no momento seguinte).

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  14. Misandra,

    «Retirar parte do cérebro aos fetos nem sequer faz sentido neste contexto, estamos a falar de querer levar a criança a termo versus não querer.»

    Eu estou a falar do problema mais fundamental de como podemos decidir se um acto é eticamente permissível ou inadmissível. A prática de restringir arbitrariamente o contexto para não ter de pensar melhor nas coisas parece-me asneira.

    Isto tem de incluir, por exemplo, a possibilidade de matar o bebé à nascença, ou matar o feto uma hora antes do parto, ou uma semana antes do parto, ou tirar-lhe os olhos às 10 semanas, ou tirar-lhe o cérebro, etc. Qualquer sistema que só funcione num destes casos, para os outros, tenha de se dizer «Não há mais discussão a ter aqui sobre isso» é um sistema claramente inadequado e mal pensado.

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  15. Carlos,

    «São juízos de valor? Que são juízos de valor?»

    Decisões acerca do que é melhor e pior (são sempre decisões; melhor e pior não é algo que exista por si).

    «Direitos e deveres não são juízos de valor.»

    Então são o quê? Explica-me como se observa um direito sem fazer qualquer juízo de valor. Um átomo, uma activação neurológica ou até a sensação de dor são coisas que se pode inferir do que se observa sem ter de decidir acerca do que é melhor ou pior, com base apenas no poder explicativo objectivo dos modelos que criamos. Mas não me parece possível concluir acerca de direitos ou deveres sem decidir algo como “A é melhor do que B”. Se fosse possível a ética seria hoje apenas mais um ramo da engenharia.

    «O teu sentido do dever pode não coincidir, nem de perto, com o teu sentido dos teus direitos, mormente deveres religiosos, morais e do trato social. »

    Claro. Os meus direitos não são os meus deveres. Isso é óbvio. Mas não é isso que estou aqui a defender. O que estou a defender é que os meus direitos são os deveres de outros para comigo e os meus deveres são os direitos que outros podem legitimamente reclamar de mim. E tudo isto resulta de um juízo de valor acerca dos actos que podemos decidir fazer.

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  16. Não estou a restringir arbitrariamente o contexto, só há aqui um contexto e ele já está muito bem definido. Não fui eu que o defini sequer.

    O aborto está ligado a vários conceitos muito claros, os quais incluem a autonomia corporal da mulher, até quando é que é razoável terminar a vida do feto (recorrendo a argumentos biológicos e, de certa forma, políticos) e as vantagens sociais da coisa.

    Fala-se sempre em terminar a vida do feto e não noutra coisa qualquer porque é isso que interessa. Não se fala em se é válido mutilar o feto propositadamente antes das 10 semanas porque isso literalmente não interessa a ninguém. Não é uma discussão produtiva nem relevante (como se pode ver, inclusivamente, nesta thread). Presumo que em teoria sim, pode-se mutilar o feto à vontade até às 10 semanas porque estamos a falar de um cluster de células mal-amanhado, mas ninguém fala nisso porque há zero interesse em faze-lo. Na vida real o que acontece é: se querem uma criança então ela será levada a termo e será feito tudo para que ela nasça saudável, se não querem e o feto tem menos de 10 semanas então pode ser abortado. Só isto. Não é difícil de compreender. Se alguma destas coisas é particularmente problemática então gostava, por favor, que mo apontassem claramente sem o tipo de artifício retórico pretensioso que tem sido usado até agora.

    Ir buscar argumentos super rebuscados ao fundo do barril por causa de algum bias contra mulheres que se possa ter não é produtivo nem relevante. Nenhuma das questões levantadas (matar o bebé à nascença, ou matar o feto uma hora antes do parto, ou uma semana antes do parto, ou tirar-lhe os olhos às 10 semanas, ou tirar-lhe o cérebro, etc....) é minimamente coerente ou relevante. O assunto é muito claro, só tenta desvia quem quer.

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  17. Misandra,

    Não se trata de ir buscar argumentos ao fundo do barril, trata-se de apresentar uma questão ética que no meu entender é importante pois revela uma lacuna na lei/opinião científica.

    Se a sociedade em geral está OK em abortar até às 10 semanas porque o feto não é pessoa, então também está OK em cortar-lhe uma perna porque não é pessoa. Simples.

    E no entanto, ao feto com 10 semanas + uns quantos dias é-lhe conferido protecção pois agora já pessoa.

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  18. São argumentos do fundo do barril uma vez que estão a ser usados de maneira ridícula para descarrilar o que poderia ser uma discussão séria.

    Se se pode cortar a perna a um feto com 10 semanas? É claro que pode. Até se pode fazer pior. Mas se se quer que uma criança resulte desse feto qual é a aplicação lógica da coisa? Nenhuma. É uma questão que só surge quanto há este tipo de desonestidade intelectual.

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  19. Ludwig, recapitulando o único aspecto sóbrio da tua especulação :)

    É verdade que não conhecemos uma fronteira temporal, única, que separe o pedaço embrionário eticamente irrelevante de um outro estado ontogénico onde passamos a presumir algum vestígio de valor existencial subjectivo, vagamente humano ou sequer animal. Por isso o prazo estabelecido das dez ou doze semanas para a IVG, que apresentas sistematicamente como arbitrário e infundado, não pretende fazer a demarcação dessa fronteira que não conhecemos. O prazo estabelecido serve para nos manter no perímetro do pedaço de células e garante-nos apenas que a fronteira real com o ser humano, difusa e debatível, se encontra algures no futuro. Ou seja, a fronteira que demarcamos não é descritiva, mas caucionária. E a tua alegação de que não há “critérios válidos” que a suportem só pode ser uma graça. Não me lixes, tá?

    Mesmo que te empenhes em designações exóticas para as fases da gestação e dramatizes cenas com alicates a arrancar perninhas e ferros em brasa a furar olhinhos às crianças, o “problema” do aborto assenta numa simples linha do tempo. As tuas acções são eticamente relevantes ou eticamente irrelevantes em função do tempo, porque o sujeito alvo das tuas acções deixa de ser um e passa a ser outro. E destruir um conjunto de células embrionário existencialmente nulo não é um problema ético, por mais que símbolos ou emoções nos façam ajoelhar na irracionalidade.

    Tudo o que disseres sobre direitos e deveres deve observar este “petit rien”.

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  20. Bruce,

    O problema com essa tua abordagem é a de exigir uma distinção metafísica entre o organismo da espécie homo sapiens que não é uma pessoa e cujo futuro não conta e a do organismo da espécie homo sapiens que é pessoa e cujo futuro conta, razão pela qual não se pode matar assim que entra nessa categoria.

    Dizer que o problema está na fronteira ser mal definida e debatível é como dizer que os negros podem ser escravizados e o problema está só em definir exactamente a partir de que tom de pele os podemos escravizar, mas se for suficientemente escura não há crise. É absurdo.

    O problema principal de matar um feto de 20 semanas, ou de 30 semanas, ou um recém nascido, é eliminar toda a vida futura que esse ser teria se não o matássemos. A definição metafísica do que é “esse ser” é irrelevante porque temos uma clara linha de causalidade que faz essa diferença entre matar e não matar, pelo que o rótulo não importa. Às 10 semanas estamos exactamente na mesma situação. Qualquer distinção metafísica que se queira fazer é eticamente irrelevante.

    Tudo o que disseres sobre direitos e deveres deve observar este “petit rien”.

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  21. Verificar que um embrião não acomoda as estruturas biológicas necessárias para ser sequer um animal é tudo menos metafísico, Ludwig. A tua demonstração de que existe um futuro de uma pessoa quando nem sequer o animal existe é que requer um tipo de análise que nem eu nem tu dominamos, parece-me.

    « Dizer que o problema está na fronteira ser mal definida e debatível é como dizer que os negros podem ser escravizados»

    Podes explicar-me esta dedução em passos mais detalhados? É que eu estou-me nas tintas para os embriões mas não consigo arrancar os sujeitos à ética, conforme defendes no post. Tu queres as normas sem os sujeitos porque te dá jeito para defender almôndegas, mas isso não existe. Ou melhor, existe, mas não é ética. Quando vês um embrião e dizes: “- Olha, um negro!”, estás noutro campeonato bastante mais metafísico (digamos assim) que o da maioria das pessoas que se preocupam com problemas reais, porque é precisamente a aderência aos factos e o conhecimento rigoroso dos sujeitos relevantes para as nossas acções que produz a ética contra o racismo e outros naipes da crueldade.

    E repara que eu não disse que “o problema está na fronteira ser mal definida”, nem me candidatei ao cálculo absurdo da hora e do minuto exactos a partir do qual um conjunto de células de valor subjectivo nulo passa a ter valor subjectivo. O que eu comentei é que a dificuldade em encontrar a hora e o minuto exactos é o único aspecto dos teus posts sobre o aborto que me parece sério, mesmo que esteja longe de questionar a validade prudencial das doze semanas inscritas na lei.

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  22. Errata:

    Para mim é igual ao litro, mas fica a correcção. Escrevi doze semanas quando na verdade são dez.

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  23. Bruce,

    «Verificar que um embrião não acomoda as estruturas biológicas necessárias para ser sequer um animal é tudo menos metafísico, Ludwig.»

    Metafísico pode não ser. Mas é um grande disparate. O embrião de Homo sapiens é da mesma espécie que os pais. Biologicamente não há margem para dúvidas aí. Não há sistema taxonómico segundo o qual um organismo mude e espécie (muito menos de reino) durante o seu desenvolvimento.

    «Para mim é igual ao litro, mas fica a correcção. Escrevi doze semanas quando na verdade são dez.»

    Para ti e para todos porque, na verdade, não há diferença nenhuma relevante entre as dez, as doze, as quinze, as vinte ou o recém nascido. Mas acerca disso vai um post em breve.

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  24. Homo sapiens, dizes.

    Deixa-me então propor-te a história do Armindo, o Homo sapiens exemplar que tomou um vermelho por verde e cravou a cabeça num autocarro. Coma profundo.

    Na falta de sinais de consciência, os médicos assumem que ele entrou em estado vegetativo e uma máquina segura-o à vida. Ninguém contesta que o Armindo é um valor a preservar, sejam quais forem os custos operacionais da tecnologia de ponta porque ele (o Armindo) encontra-se em estado (estado) vegetativo. Infelizmente, e ao fim de vários anos com alguns sinais de agravamento e nenhum de recuperação, mesmo a deontologia médica mais conservadora regista que o Armindo em estado vegetativo já não existe. O que passou a existir, por força da evidência e não por averiguações metafísicas, foi um corpo em decomposição retardada artificialmente. Para que não haja dúvidas: deixou de ser (ser) o Armindo e passou a ser (ser) um corpo de valor desprezível, apesar de absolutamente vivo e de absolutamente Homo sapiens. Interruptor para baixo, fim da história.

    O erro de substituir o ser que merece consideração ética (o humano) por outro ser que sirva apenas a taxonomia não tem uma única perna para andar. Se o teu sujeito eticamente atendível fosse o Homo sapiens, como defendes, o coma irrecuperável era apenas um contrato para a eternidade com o hospital mais próximo. As camas não tinham vegetais, mas fósseis. Felizmente são já poucos os médicos que confundem o sujeito A com o sujeito B dentro do mesmo Homo sapiens.

    E estou apenas a apontar-te a tua incoerência mais discreta, entre dois sujeitos no mesmo grupo de células. Se voltarmos aos embriões que queres à força tomar por armindos as tuas normas tornam-se ainda mais gasosas.

    (vou estar sem net nos próximos dias, não é uma deserção)

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  25. Bruce,

    O Armindo é um bom exemplo. O que é que os médicos precisam de saber para decidir se desligam a máquina ou não? Não precisam de saber quantos amigos o Armindo tem. Nem quantas vezes foi ao cinema. Nem se é bom a matemática ou se gosta de futebol. Precisam de saber apenas se tem futuro. É esse o único critério que conta aqui: se o Armindo alguma vez vier a pensar, sentir, sonhar, ser como nós, então vale a pena mantê-lo ligado à máquina e deixá-lo melhorar. Se não, então não há nada a fazer pelo Armindo e desliga-se a máquina.

    Nesses «vários anos com alguns sinais de agravamento e nenhum de recuperação» não decorreu nenhum processo de transformação metafísica de um Armindo-pessoa-que-conta para um Armindo-corpo-sem-valor. Foi simplesmente o tempo que, no teu cenário, os médicos precisaram para concluir que o Armindo ficou irreversivelmente perdido no momento em que marrou contra o autocarro. O resto não foi nada de metafísico. Foi apenas devido a limitações epistémicas da parte dos médicos.

    E tudo isto seria válido mesmo que o Armindo fosse um recém nascido que, por um problema neurológico, tivesse um atraso no seu desenvolvimento e precisasse de mais uns meses para chegar ao estado normal de um recém-nascido. Também aqui o que contaria seria o futuro do Armindo e não o passado porque, obviamente, não é acerca do passado que estariam a decidir.

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