domingo, junho 21, 2015

Treta da semana (atrasada): Não percebe.

Gabriel Silva escreveu no Blasfémias que «Não se percebe» porque há tantas greves no Metro de Lisboa. Já contam 47 em cinco anos. «Mas se uma empresa é assim tão má que tenha justificado em 5 anos tanta greve, não será mesmo melhor mudar de patrões? Não deveriam as 46 greves anteriores serem um poderoso argumento para os trabalhadores querem a concessão a outros gestores?» (1) Sim. É razoável assumir que o objectivo da greve é mudar algo que está mal na gestão. Mas percebe-se que a greve seja contra a concessão da exploração a privados se se perceber que o problema está precisamente nesse tipo de gestão.

Em muitos casos, vender bens ou serviços úteis é lucrativo. Quando o útil e o rentável andam de mãos dadas, a iniciativa privada é a melhor forma de distribuir o esforço e os proveitos. Basta deixar cada um decidir por si como quer aplicar o seu dinheiro, seja a adquirir o que deseja seja a tentar ficar mais rico, e a coisa resolve-se pelo melhor. É o caso de barbearias, fábricas de bolachas, cinemas e lojas de pronto a vestir, por exemplo. Mas, noutros casos – tendencialmente nas coisas mais importantes – acontece o contrário e o lucro é avesso à utilidade. Hospitais, escolas, esquadras de polícia e tribunais são alguns exemplos de actividades nas quais ter o lucro como principal objectivo degradaria muito a utilidade do serviço.

O metropolitano de Lisboa é um serviço deste tipo. Beneficia muito mais gente do que apenas quem paga bilhetes. Beneficia estabelecimentos aonde clientes se desloquem de Metro, empresas com empregados que tenham de atravessar Lisboa para trabalhar e toda a gente que se desloque em Lisboa, mesmo que de autocarro ou de automóvel. Além disso, este benefício todo não pode ser financiado apenas pelos bilhetes de quem viaja de Metro. Não chega e, se se aumenta o preço dos bilhetes, menos gente anda de Metro e lá se vai o benefício. Tal como escolas, esquadras e hospitais, os sistemas de transportes colectivos devem ser pagos principalmente pelos impostos para que o custo possa ser melhor repartido, e de forma mais justa, por todos aqueles que beneficiam indirectamente destes serviços e infraestrutura.

No entanto, nestes últimos anos o Metro de Lisboa tem sido gerido como se fosse uma loja de roupa ou um salão de jogos, dando primazia à diferença entre o dinheiro que entra e o que sai. Isto é mau para todos e só se agrava pela concessão da exploração comercial a privados. É importante perceber que grande parte da despesa, incluindo juros das dívidas contraídas para a construção das linhas, obras e até a manutenção dos comboios, continua a cargo do Estado. Aos privados caberá a tarefa de, em regime de exclusividade, cobrar bilhetes, gerir os trabalhadores e meter a diferença ao bolso. Assume-se que o Metro funcionará melhor se o objectivo do gestor for maximizar o lucro dos accionistas em vez optimizar o transporte de pessoas mas esta premissa é muito duvidosa.

É claro que as greves do Metro não se devem somente – nem principalmente – ao interesse público. Há outros factores importantes, desde a influência da CGTP aos receios dos trabalhadores, que serão as primeiras vítimas da conversão deste serviço público em negócio privado. Mas, em todo o caso, o problema fundamental é o de que a empresa privada, visando o lucro dos accionistas, é muito diferente da empresa pública criada para prestar um serviço à população. O transtorno causado por cada greve do Metro devia tornar claro para todos de que lado da divisória esta empresa deveria estar.

Infelizmente, muita gente partilha a perplexidade do Gabriel Silva e não percebe esta diferença. Julgam que o lucro é o único critério para avaliar uma empresa. Mas isso só serve para empresas que não façam nada de essencial. Essas é que podem ficar nas mãos de privados livres de decidir como as querem gerir e de as encerrar se não derem lucro. Com serviços importantes não se pode fazer o mesmo, e isto é um factor importante na atractividade de empresas como a TAP, a Carris ou o Metro. Os investidores privados sabem que, mesmo que não consigam tirar dividendos dessas empresas abandonando a sua missão original e orientando-as para o lucro, se a coisa der para o torto o Estado terá de comprar de volta as empresas ou as concessões que vendeu porque não são empresas que se possa deixar falir. Não é difícil de perceber porque é que os trabalhadores não querem que a empresa fique a cargo de quem até pode lucrar afundando-a. Nós também não devíamos estar satisfeitos com estas privatizações.

1- Gabriel Silva, Não se percebe

8 comentários:

  1. Estou de acordo com tudo o que diz sobre o metro que, como prestador de um serviço publico, deve efectivamente ser equiparado a um hospital ou a uma esquadra de polícia. Não estou de acordo em estender esse conceito à TAP que, no meu entender, não presta um serviço público e pode ir para o estrangeiro ou mesmo à falência sem que isso traga alguma consequência de maior para os portugueses.

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  2. Ludwig,

    Diz «[...]Mas isso só serve para empresas que não façam nada de essencial. Essas é que podem ficar nas mãos de privados livres de decidir como as querem gerir e de as encerrar se não derem lucro. Com serviços importantes não se pode fazer o mesmo[...]»

    Eu não concordo. Aliás, não percebo porque estes tipos de serviço tenham de ser só estado ou só privados.
    Na minha opinião, o desejável é que o estado possa ter empresas e essas empresas possam e devam competir com as empresas privadas, pelos mesmos clientes/utentes e no mesmo mercado. Não creio que seja desejável que o estado seja monopolizador de serviços, mas ao mesmo tempo considero que o estado não deve abrir mão de ter serviços e indústrias que são de base, e por isso de importância estratégica.

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  3. Carlos,

    Se um dono privado da TAP decidir vender os aviões e investir em hotéis em Barcelona ou algo assim, o impacto que isso terá na economia portuguesa vai muito além dos aviões ou dos bilhetes de avião. Com o peso que o turismo tem na nossa economia, para Portugal até compensa perder dinheiro nos bilhetes de avião porque cada inglês ou alemão que viaje para cá deixa cá muito mais do que o preço do bilhete.

    Por isso, se o dono privado da TAP decidir encerrar o negócio por não lhe dar dinheiro o Estado português terá de intervir. É isso que provavelmente vai acontecer, tal como acontece na generalidade dos países em que as companhias aéreas nacionais são nominalmente privadas mas beneficiam de subsídios e isenções fiscais.

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    1. Esse raciocínio estaria certo se os turistas viessem a Portugal só por causa da TAP e, se a TAP deixasse de existir, muitos turistas deixassem de vir, o que não me parece corresponder à realidade. Por um lado a grande maioria dos turistas não vem a Portugal pela TAP e por outro, se a TAP deixasse de existir, o Estado português não precisaria de intervir porque as outras companhias iriam aumentar os seus voos para Portugal e o número de turistas não ia baixar significativamente.

      É certo que cada inglês ou alemão que viaje para cá deixa cá muito mais do que o preço do bilhete mas é muito menos certo que o prejuízo para a economia nacional causado por alguns turistas deixarem de vir por a TAP ter desaparecido seja maior que o custo de manter a TAP.

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    2. Concordo com o Carlos. O post está bem escrito e justificado, no entanto não entendo a TAP como um serviço essencial ou com as ramificações sócio-económicas que (muito bem) atribuis à Carris ou ao Metro de Lisboa. Em tempos poderá ter tido essa função, mas acho que é evidente que assim já não o é.

      As funções são diferentes. Como diz o Carlos, não é pela TAP que os turistas vêem a Lisboa. E se uma percentagem ínfima de viajantes escolhe uma companhia pelo seu registo de segurança e qualidade, a verdade é que a maioria de nós aceitaria viajar de balão se isso fosse €20 mais barato.

      Ora, se há mercado competitivo é o do transporte aéreo. Temos o exemplo recente dos Açores onde a liberalização dos vôos vai trazer (pelo que parece, por agora) «aumento de 40% em relação à oferta actual» e «uma "redução efectiva" das tarifas» [1]. É difícil justificar como é que o Turismo açoreano não vai ganhar com Easyjets e Ryanairs a virem directas do R.U. ou da Alemanha.

      Não me parece que os países desenvolvidos que privatizaram as companhias de bandeira tenham ficado mais mal servidos e tenho dúvidas de que haja alguma rota da TAP que seja comercialmente deficitária, mas ainda assim estratégica para os desígnios nacionais (por ventura para Timor? Corrijam-me se estiver errado). De qualquer maneira, se assim for, o Estado pode exigir (e/ou subsidiar) a manutenção dessas rotas.

      É pouco provável que alguém substituísse o Metro, mas se a TAP deixasse de existir facilmente um competidor entraria no mercado se se justificasse comercialmente – e tal justifica-se. O argumento que usas relativamente ao subsídio dos bilhetes seria válido se 1) o turismo precisasse desse incentivo – por agora não precisa – e 2) se fosse por aí que a TAP não fosse competitiva (não é).


      [1] - http://www.cmjornal.xl.pt/cm_ao_minuto/detalhe/oferta_de_voos_para_os_acores_aumenta_40_no_primeiro_ano_de_liberalizacao.html

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  4. António,

    « não percebo porque estes tipos de serviço tenham de ser só estado ou só privados.»

    Não é essa a minha posição. Há casos em que têm de ser só do Estado. Tribunais ou Parlamento, por exemplo. Alguns devem ser só privados. Barbearias, por exemplo. Mas muitos podem, e devem, ser de ambos. Escolas, hospitais, transportes públicos, tudo isso pode ser tanto público como privado.

    A minha posição é que, em todos os serviços importantes para o funcionamento da sociedade, o Estado deve garantir o suficiente para que a coisa aguente mesmo que os privados aumentem os preços ou fechem as portas. Por exemplo, é legítimo haver hospitais privados mas deve haver hospitais públicos suficientes para toda a gente que precisar. Porque uma coisa é um hospital para tratar gente e outra bem diferente é um hospital para dar lucro aos accionistas. O mesmo para escolas ou redes de transporte público.

    Assim, se algum privado quiser fazer mais túneis e montar um negócio como o Metro, deve poder fazê-lo, sujeito apenas ao ordenamento do território e regras que limitem o impacto ambiental. Mas não se deve privatizar o Metro que temos porque se o fizermos ficamos sem nenhum fora das mãos dos privados e é importante demais para isso.

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    1. Ludwig,

      Se reparares, eu também não defendo que se privatize o Metro, a CP ou a TAP. Simplesmente, digo que não devem existir zonas exclusivas do estado, com a excepção da justiça, segurança e defesa - como dizem James Robinson e Daron Acemoğlu em "Porque falham as nações?", o estado deve ser o único detentor de força, e um estado cuja força esteja em causa, é um estado falhado.

      De qualquer forma, concordo com o que diz Carlos Cardoso. Não vejo porque sendo um negócio que pode e deve estar sujeito à concorrência, os transportes sejam predominantemente do estado - CP, TAP e SATA são bons exemplos de empresas que sempre viveram sem concorrência.
      O que defendi é que a concorrência também é boa para o estado, mas só no caso o estado estar dispostos a ir à luta. O que vejo em muitas das declarações dos nossos governantes e dos aspirantes a governantes é um discurso de "OU exclusivo", e não de inclusão e de concorrência saudável.

      No mesmo livro "Porque falham as nações", Robinson e Acemoğlu, defendem que os estados que prosperam são os que incentivam à concorrência, que por sua vez leva a produtos e serviços mais competitivos e mais inovadores, que trazem mais beneficio não só aos donos das empresas, como também às pessoas que os consomem. Afinal, quem quer comprar um produto ou serviço pior, ou mais caro, ou até ambos? Eu identifico muito do nosso Portugal nos aspectos maus que os autores dizem levar aos países falhados e por isso pobres. Um estado dominador de toda a economia leva aos arranjos e ao que os autores chamam de "economia extractiva", que por sua vez leva à pobreza da maioria e à riqueza de uns quantos.

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  5. Um pouco ao lado no tópico mas parece-me que os gestores do Metro, CP e empresas de autocarros até podem financeiramente desprezar os dias de greve.
    As receitas de passes mensais estão garantidas e imagino que os dias de greve tenham custos menores, logo será algo proveitoso...

    Quanto à TAP, não transporta só turistas e há rotas que está obrigada a fazer quer haja ou não passageiros, para garantir a integridade territorial (Madeira e Açores, este arquipélago menos por haver a SATA) e a ligação às comunidades no estrangeiro. Nos últimos 15 ou 16 anos, os contribuintes não tiveram quaisquer despesas com a TAP, por imposição da UE relativamente a empresas de aviação estatais, mas agora vão passar a ter já que certos voos terão de ser subsidiados para que se continuem a fazer por interesse nacional. Por outro lado, à semelhança de outras empresas de aviação, talvez aumente o rendimento líquido de milhares dos seus trabalhadores passando a pagar-lhes em Malta ou na Holanda, reduzindo o encaixe do Estado com IRS e SS.

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